“Continuamos a um acidente de distância de uma crise grave no euro”
Paul Mason diz que houve uma mudança na Europa, mas que foi forçada pelo medo e que não impede uma nova crise na zona euro.
Paul Mason é comentador económico e político e autor do livro PostCapitalism. O jornalista britânico, uma das vozes à esquerda mais críticas da política económica europeia durante a crise do euro, diz que o risco é agora mais político do que económico e aconselha a Esquerda a aliar-se ao centro com um programa de reforma limitado para a Europa. “Não se pode querer rasgar os tratados todos, tem de se tentar definir quais são as quatro ou cinco prioridades”, defende.
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Paul Mason é comentador económico e político e autor do livro PostCapitalism. O jornalista britânico, uma das vozes à esquerda mais críticas da política económica europeia durante a crise do euro, diz que o risco é agora mais político do que económico e aconselha a Esquerda a aliar-se ao centro com um programa de reforma limitado para a Europa. “Não se pode querer rasgar os tratados todos, tem de se tentar definir quais são as quatro ou cinco prioridades”, defende.
Foi a estratégia de austeridade que resultou ou a saída da austeridade?
Não sei tudo o que se passou em Portugal, mas posso dizer que há um paralelo interessante com a Irlanda, que com um Governo de direita escapou de forma relativamente fácil à crise, apesar de estar perante um desastre no seu sistema financeiro. Portugal, por sua vez, conseguiu escapar à crise com um Governo de centro- -esquerda. O que isso me diz é que em todo o lado, menos na Grécia, teria sido possível sair da crise aplicando apenas uma política económica que não fosse punitiva. O problema sistémico continua a estar na governação da zona euro, no Tratado de Lisboa e os critérios de Maastricht e na sua obsessão com os mercados livres e a austeridade.
A entrada de Mário Centeno para presidente do Eurogrupo não é um sinal de mudança?
Há uma mudança, mas forçada pelo medo. No ponto mais alto da crise tornou-se óbvio que os políticos alemães estavam preparados para ver os países literalmente falirem, fosse por terem os seus bancos a fechar ou por terem 14% da população a votar num partido fascista. Em vez de aplicarem as regras de forma flexível e de suportarem no centro da Europa alguns dos custos da crise, preferiram deixar a periferia suportar todos os custos, colocando o euro em causa. Mas entretanto entrou em funcionamento o factor medo. Tornou-se evidente a subida da extrema-direita da Europa de Leste, em partes da Alemanha, na Grécia, na Itália, e então chegaram à conclusão de que era preciso fazer alguma coisa. Este “alguma coisa” é menos austeridade e menos pressão sobre Governos como o português. Mesmo em relação à Grécia, penso que iremos ter um alívio efectivo da dívida. Esse é um passo importante. Ainda assim, o tratado de Maastricht continua a ser o mesmo, o Banco Central Europeu ainda é muito influenciado pelo Bundesbank e isso faz com que, nos meus momentos de maior pessimismo, ainda pense que isto pode destruir a zona euro. No entanto, a acontecer, já não será por uma ruptura económica como temíamos em 2011 ou durante a crise grega de 2015. É mais provável que seja algum tipo de destruição política. É apenas preciso que em algum sítio onde exista o euro um partido da extrema-direita, ou mesmo da extrema-esquerda como Melanchon em França, chegue ao poder. Continuamos a um acidente de distância de uma crise grave no euro.
As propostas de Macron podem mudar alguma coisa?
As propostas são boas, desde que se aceite que tem de haver uma Europa a duas velocidades. Existe a ilusão, principalmente na cabeça de Jean-Claude Juncker, de que toda a Europa pode fazer isto. Para que a Europa se reforme, é preciso que se venha a assistir a algo que parecerá uma revolução política na Alemanha. Os alemães vão ter de começar a aceitar que a arquitectura criada pelo Tratado de Lisboa não é apropriada para uma Europa nos meados do século XXI e que é necessária uma união bancária, transferências orçamentais e benefícios sociais que tornem o mercado de trabalho mais equilibrado. Se na Alemanha é difícil, na Europa de Leste não há maneira de as elites o aceitarem. E, por isso, vamos ter de os deixar para trás, se for necessário. E já não estamos perante um problema económico, é antes um problema de coesão política.
E qual deve ser a posição da esquerda?
Há dois ou três anos eu teria dito que o principal adversário da esquerda era o neoliberalismo e o centro político, onde estão Merkel e Macron. Mas agora, diria que o principal adversário é a extrema-direita. E se necessário e possível, tem de se tentar criar alianças entre os Governos de esquerda como o português e o grego com os Governos do centro, como os de Merkel e Macron.
Com que tipo de propostas?
A esquerda deve ter um programa de reforma limitado para a Europa. Um bom exemplo é aquilo que foi proposto pelo Podemos em Espanha. Não se pode querer rasgar os tratados todos, tem de se tentar definir quatro ou cinco prioridades. A primeira terá de ser retirar os critérios de Maastricht, aceitar que os países tenham défices, que se financiem para investir, e que a política monetária possa ser expansionista até que seja necessário. E depois há outras questões como permitir ajudas de Estado às empresas ou garantir que a Comissão Europeia vai defender as economias na guerra comercial que aí vem. Os EUA e a China estão a impor novas taxas alfandegárias uns aos outros. Se a Europa diz que não gosta de taxas e que quer o comércio livre, as suas economias vão acabar por ser prejudicadas.
O centro político aceitaria essas ideias?
Talvez não, mas está à procura de respostas. E sabe que o seu maior pesadelo é a sua própria natureza. Isto é particularmente claro na Áustria, onde havia partidos de direita muito bem estabelecidos nas pequenas cidades do interior e que, de um momento para o outro, mudaram. E é isso que acontece aos partidos conservadores quando ficam sob pressão da sua própria base. Eles deixam de defender o centro, a Europa e a imigração, para passar a atacar todas estas coisas. E a grande questão é se isso vai acontecer também à elite alemã. Começam a ver-se os primeiros sinais nos partidos que apoiam Merkel, a CDU e o CSU. Este último, em particular, tem muitas pessoas que estão preparadas para se aliarem à extrema-direita, como aconteceu na Áustria. Aliás, penso que se a extrema-direita alemã não estivesse mais à direita do que a austríaca, a tentação para uma aliança ainda seria maior.
Mas a esquerda tem algum papel a desempenhar nisto?
A esquerda tem de alertar o centro que o seu principal problema é a sua propensão para se movimentar para a direita quando está sob pressão de um eleitorado que não gosta de imigrantes e que quer o seu país de volta.
Merkel irá evitar que isso aconteça na Alemanha?
Não deposito muitas esperanças em Merkel. Um dos estereótipos em relação aos alemães é que seguem as regras totalmente até que se torna evidente que elas não funcionam e aí fazem um gesto romântico e quebram as regras. Foi exactamente o que Merkel fez com os refugiados. Primeiro seguiu as regras e depois fez um inexplicável gesto romântico. Não se pode gerir a Europa desta forma, é melhor mudar as regras a tempo e evitar gestos românticos, que, neste caso, permitiram que entrassem dois milhões de pessoas em dois anos e meio e que foi o fenómeno que criou uma perturbação na democracia alemã.
Tanto na Europa como nos EUA as economias estão agora a crescer, o desemprego baixou e há quem comece a dizer que, afinal, foi apenas mais uma crise e tudo regressou agora ao normal. Estamos a assistir a um regresso à normalidade?
É verdade que vemos as economias a crescer, mas é preciso ter em conta que isso se deve, em larga medida, ao facto de os balanços dos bancos centrais se terem expandido tanto e tão rapidamente. E apesar de os bancos centrais agora estarem a começar a retirar os seus estímulos, ainda se sente o efeito da política expansionista. O crescimento que se sente é nas grandes cidades e uma pessoa anda pelas ruas e vemos cafés novos, lojas de roupa novas, mas estes novos estabelecimentos são o produto do dinheiro barato que os bancos centrais têm vindo a garantir. Um café e uma loja de roupa não são, infelizmente, inovações do século XXI. Não se pode construir o século XXI só com isto. Ainda assim, a verdade é que conseguimos comprar algum tempo. Temos de pensar que o problema não está resolvido e que aquilo que temos actualmente é apenas uma ponte.
É aqui que muito políticos e banqueiros centrais pedem que se façam reformas estruturais...
Sim, é verdade, mas as únicas reformas que eles conseguem imaginar são as que antes já correram mal. Esse é o meu grande problema com os liberais. As reformas que são precisas — e que são as que estamos a defender na esquerda social-democrata britânica — são as de uma maior ajuda do Estado, mais intervenção estatal, mais benefícios sociais, salários mais altos e uma economia mais diversificada, com Estado, mercado e outros agentes fora do mercado, como a produção cooperativa. O problema é esta tecno-euforia em que vivemos. As pessoas vêem empresas como Facebook, Amazon ou Alibaba a crescer tanto que pensam que o futuro vai ser brilhante. Mas, na realidade, a não ser que construamos uma economia de alto crescimento, altas qualificações e alto valor acrescentado, o futuro não será brilhante.
A política de Trump de descida de impostos e proteccionismo comercial pode resultar?
Num sistema económico global em que os problemas da crise são passados muito facilmente para os mais pobres, consegue-se fazer muito afastando-nos um pouco desse sistema global. Além de deixar de se preocupar com a dívida pública e de deixar toda a gente viver do crédito, aquilo que Trump pretende fazer é trazer os empregos de volta para a América através de uma guerra comercial. Isso pode funcionar, mas não funciona para todos. O historiador económico Charles Kindleberger disse sobre os anos 30 que, quando toda a gente aumenta os obstáculos ao comércio, o que estão a fazer é diminuir o tamanho da tarte. É um jogo de soma negativa. E neste caso, se os EUA o fizerem, rapidamente os outros começam também a fazer.
Ainda assim, pode resultar no curto prazo?
A Alemanha nazi conseguiu abolir o desemprego em cinco anos. Quando se está disposto a tomar medidas radicais, é possível que se consiga trazer vantagens para a própria população, mas isso será feito passando a factura do desemprego para outros.
Está a defender a globalização?
Temos de tentar manter o sistema global. Mas a verdade é que já passou do seu auge e temos de ser sinceros em relação a isso. A discussão em torno do Tratado Transatlântico esbateu-se, mas tenho a certeza que há muitas pessoas na Comissão Europeia que gostavam de trazer a ideia de volta e precisamos de dizer não. Porque a globalização, para sobreviver, também tem de servir as populações dos países desenvolvidos. Sei que isso é difícil de aceitar quando se olha para os últimos 30 anos de desenvolvimento na América Latina e na Ásia, que foi algo bastante positivo. Mas não podemos continuar a empobrecer as classes trabalhadoras e a classe média do hemisfério Norte porque isso acabará por rebentar na nossa cara.
No seu livro de 2015 mostra alguma esperança no efeito da economia da partilha. Está satisfeito com os desenvolvimentos desde aí, com empresas como a Uber ou a Airbnb?
Nunca usei exactamente a expressão “economia de partilha” porque não queria ligá-la a essas empresas, que estavam numa fase inicial do seu desenvolvimento. Sempre me pareceu que havia algo de estranho com a Uber e com a Airbnb: elas não eram exactamente empresas tecnológicas, eram tentativas de criar um monopólio de obtenção de receitas. Na prática, se nos tornarmos na única empresa de táxis da cidade, podemos começar a receber uma receita económica por causa disso. Isso não é inovação e não é uma economia de partilha. Para mim, uma economia de partilha verdadeira é aquela que é baseada na ausência de propriedade. E nós estamos a assistir agora ao surgimento das chamadas plataformas de cooperativas, em que aqueles que fazem o trabalho da Uber ou Airbnb são plataformas sem objectivos lucrativos que permitem que os pequenos produtores e inovadores interajam directamente com os seus clientes.
O mesmo se aplica a empresas como o Facebook ou a Google?
Também existe um grande problema com essas empresas, porque todos os efeitos positivos dessas redes vão para eles. E aqui, penso que o Estado deve intervir, definindo regras para que esta nova economia, mais cooperativa, floresça. É o mesmo que aconteceu no século XIX com as fábricas. O Estado disse: nós gostamos das empresas, trazem muita riqueza, mas vamos deixar de permitir que haja crianças a trabalhar nas fábricas. Elas responderam que isso ia acabar com o seu modelo de negócio, mas a verdade é que 30 anos depois já não havia crianças nas fábricas.