Constitucional mudou de rumo na PMA e isso preocupa Marcelo

Marcelo Rebelo de Sousa diz que a declaração de inconstitucionalidade tem de ser respeitada e cabe ao Parlamento decidir se volta a legislar sobre a matéria. Em mais de dois anos de mandato, o chefe de Estado nunca enviou qualquer diploma para o TC. Decisão do TC divide constitucionalistas.

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LUSA/JOSE SENA GOULAO

O Presidente da República está preocupado com a mudança de rumo do Tribunal Constitucional (TC) em matéria de Procriação Medicamente Assistida (PMA). Esta sexta-feira, na Ovibeja, Marcelo Rebelo de Sousa foi cauteloso com as palavras, quando disse que o TC “decidiu soberanamente” sobre a matéria, mas o PÚBLICO sabe que ficou espantado, e mesmo preocupado, com a instabilidade das decisões daquele tribunal superior, após duas decisões contraditórias sobre o mesmo assunto.

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O Presidente da República está preocupado com a mudança de rumo do Tribunal Constitucional (TC) em matéria de Procriação Medicamente Assistida (PMA). Esta sexta-feira, na Ovibeja, Marcelo Rebelo de Sousa foi cauteloso com as palavras, quando disse que o TC “decidiu soberanamente” sobre a matéria, mas o PÚBLICO sabe que ficou espantado, e mesmo preocupado, com a instabilidade das decisões daquele tribunal superior, após duas decisões contraditórias sobre o mesmo assunto.

"Recordarão que eu vetei a lei com várias observações, depois promulguei-a apesar de algumas observações, que foram depois retomadas pelo TC, mas o TC foi depois sobretudo buscar matéria anterior, reviu a sua jurisprudência para apreciar matéria que vinha do começo do século", disse. Estava dado o toque àquilo que mais o preocupa, a inversão da posição sobre normas já apreciadas pelo mesmo tribunal em 2009 e então consideradas conforme a Constituição.

O próprio TC reconhece a mudança de posição em relação ao anonimato dos dadores, a qual justifica “também” com “a importância crescente que vem sendo atribuída ao conhecimento das próprias origens”, ou seja, ao património genético.

Mas mesmo que assim não fosse, a maioria dos juízes considerou agora - “diferentemente da ponderação feita no acórdão n.º 101/2009” - que o anonimato “merece censura constitucional, devido a impor uma restrição desnecessária aos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade das pessoas nascidas em consequência de processos de PMA com recurso a dádiva de gâmetas ou embriões, incluindo nas situações de gestação de substituição”.

É exactamente esta mudança de rumo que preocupa o Presidente, que receia haver leituras ideologizadas da lei e que o TC não assegure a estabilidade das suas decisões, mostrando não ser um órgão de continuidade.

Certo é que o próprio Presidente da República levantou a dúvida sobre o anonimato dos dadores quando promulgou as alterações à lei da PMA, em Junho de 2016, na mesma altura em que vetou a primeira versão da lei da gestação de substituição. “Não deixa de suscitar perplexidade, num regime que se pretende inovador e aberto, a manutenção do anonimato, que impede o conhecimento da paternidade, quando vários Estados europeus não só o admitem, como já reverteram anteriores regimes de anonimato. E outros Estados adoptam duplo sistema, com possível autorização de identificação”, escreveu então Marcelo.

No entanto, “apesar dessa oportunidade perdida”, promulgou as alterações à lei, incluindo a manutenção da garantia de anonimato que já recebera luz verde do TC em 2009. Não colocou, portanto, em causa a segurança jurídica das decisões daquele tribunal.

Questionado agora sobre se a decisão do TC lhe agradou, disse apenas que “o Presidente da República não pode ter estados de espírito em relação a decisões dos tribunais”. “As decisões dos tribunais são como são, faz parte da separação de poderes não estar a pronunciar-me sobre a decisão do TC”, sublinhou. Esta “tem de ser respeitada” e agora “cabe ao Parlamento, se quiser, voltar a legislar sobre a matéria e ponderar em que termos é que isso será feito”, disse ainda.

Certo é que, ao fim de dois anos em funções, Marcelo Rebelo de Sousa ainda não exerceu o seu direito de pedir a fiscalização da constitucionalidade de qualquer diploma, nem a título preventivo, antes da sua entrada em vigor, nem posteriormente (fiscalização sucessiva). Isto apesar de já ter exercido o seu veto político sete vezes, a primeira das quais menos de três meses depois de tomar posse – e precisamente em relação à lei da gestação de substituição.

Efeitos da decisão do Constitucional

Mas que efeitos terá na prática esta decisão do TC, no que ao fim do anonimato dos dadores diz respeito? Uma criança concebida em 2006, por exemplo, passou a ter direito a conhecer o seu pai ou a sua mãe biológicos? Entre os juristas, as opiniões dividem-se.

Paulo Saragoça da Matta diz-se espantado por os juízes do Palácio Ratton não terem precavido a questão. Tendo os dadores dado o seu material biológico no pressuposto da confidencialidade, o acórdão em questão é “ele próprio violador dos princípios subjacentes à Constituição no que respeita aos direitos de personalidade”, defende, uma vez que estes homens não queriam ser pais.

“Os efeitos de bomba atómica desta decisão podem ser atenuados por via de uma correcção legislativa”, diz por seu turno o professor de Direito de Coimbra Rafael Vale e Reis. Tal como Saragoça da Matta, o docente também reconhece efeitos retroactivos ao acórdão. Mas como as primeiras crianças nascidas deste tipo de dádiva, adianta, ainda só terão 12 anos não é expectável que comecem já à procura das suas origens – o que dá tempo aos deputados para criarem um novo regime legal. Em que termos? “Estabelecendo como norma geral a revelação da identidade do dador, com efeitos retroactivos, mas permitindo que em situações ponderosas os tribunais possam decretar a confidencialidade”.

Este especialista diz que a questão pode ser ainda mais complicada se se levar em linha de conta que, por falta de dadores, Portugal tem importado muito material biológico de Espanha, país onde a identidade é secreta. Com estas novas regras não será fácil continuar a importá-lo daí.

Para o constitucionalista Tiago Duarte a posição que vingou entre os juízes do Constitucional não gera problemas de maior. “Há um equívoco quando se diz que vai permitir conhecer o pai ou a mãe. Não vai: vai permitir conhecer o dador. A pessoa nascida da procriação medicamente assistida não é filha do dador”.

A verdade é que mesmo alguns dos conselheiros do Palácio Ratton que votaram vencidos escreveram, nas suas declarações de voto, ser muito problemático permitir que o levantamento do anonimato dos dadores tenha efeitos retroactivos. “Põe em causa a segurança jurídica e os direitos dos dadores à privacidade e à intimidade da vida familiar, sem que traga qualquer vantagem relevante para as pessoas concebidas por procriação medicamente assistida, as quais tendem a valorizar, sobretudo, o papel dos pais, os únicos com quem têm relações familiares e afectivas, e não o contributo genético do dador”, argumentou Clara Sottomayor.

Na mesma linha, Catarina Sarmento e Castro conclui: “O levantamento do sigilo na dádiva de gâmetas ou embriões, em nome de uma defesa exacerbada de um direito à curiosidade, poderá abrir uma caixa de Pandora com consequências galopantemente gravosas para os direitos dos dadores, com reflexo especial (…) para o caso daqueles que doaram, ainda, em situação de anonimato reconhecido”.

"Continuará tudo na mesma"

Em contracorrente, o constitucionalista Reis Novais diz que o anonimato dos doadores afinal se mantém. Como? “Por alguma razão, o pedido do CDS e pelo PSD para o tribunal se pronunciar não abrangia a fiscalização das normas da lei que consagram a confidencialidade”, explica. Como tal, nesse particular a deliberação não produz efeitos: “Continuará tudo na mesma até o Parlamento mexer na lei”.

Mas o facto de o Constitucional ter pelo menos indicado um caminho não obrigará os deputados a segui-lo, sob pena de nova declaração de inconstitucionalidade? Reis Novais pensa que não: “Tenho a certeza de que o Constitucional não irá opor-se à manutenção do anonimato para os casos do passado”.

Idêntica posição tem o constitucionalista Jorge Miranda: entende que, salvo melhor opinião, este acórdão protege a confidencialidade de quem doou material biológico até hoje.

“O que é surpreendente é que esta questão surja 12 anos depois” de a lei estar em vigor, comenta o professor da Faculdade de Direito de Lisboa Jorge Duarte Pinheiro.