O vício das ondas que vence o medo
Desde há uns anos, a Nazaré transformou-se na meca dos surfistas mundiais das ondas gigantes. Agora, dizem, é tempo de retribuir. Por isso, juntaram-se e criaram formas de dar a provar este mar.
“Quem tem canhão, tem medo”, dizem-me em tom jocoso, adivinhando o nervoso miudinho que, depois de uns dias a achar que nada havia a temer, se tinha adensado quando faltavam apenas umas horas para a experiência. As previsões do estado do mar não ajudavam: “Vai estar grande”, alertar-me-ia outro amigo. “Está três metros de oeste com período de 15” – sabe-se lá o que isto quer dizer, mas também não pergunto com medo da resposta… – “dá ondas de seis no canhão… seis de surfista, que é mais de gente” – e aqui, eu, gente, sinto-me tudo menos apaziguada. “Tenta não morrer”, remata. Para a próxima, é melhor não perguntar nada a ninguém.
O desafio é simples: ir até à zona do canhão da Nazaré com quem o trata por tu: o norte-americano Garrett McNamara, que colocou as ondas da vila portuguesa no mapa internacional do surf quando, em 2011, surfou uma vaga de 23,8 metros, inscrevendo o seu nome no Livro dos Recordes do Guinness (marca que acabaria por suplantar dois anos depois numa onda de 30 metros). McNamara, porém, não enfrentou o desafio de levar impreparados jornalistas para o mar sozinho e chamou um verdadeiro exército de pesos-pesados para o acompanhar: entre outros, Hugo Vau, actual detentor do recorde depois de vencer a onda mais alta (35 metros, a 17 de Janeiro deste ano), o norte-americano Toby Cunningham, o italiano Alessandro Marcianò ou o lisboeta Sérgio Cosme, todos presentes no Surfer Wall, projecto museológico, criado em 2016, que pode ser visitado no Forte de São Miguel Arcanjo.
Mas comece-se pelo início. E, depois do discurso de “nunca ninguém se arrependeu de ter ido; apenas de não o ter feito”, segue-se a primeira prova hercúlea: enfiar o corpo num fato que, à primeira vista, diria que nunca me serviria. Aliás, nem consigo imaginar como deslizar por tão apertada entrada. Uma perna ainda vá… Ambas? Lembro-me da minha primeira vez na neve, em que o cansaço de calçar as botas foi tal que quando cheguei, por fim, às pistas acabei por cair para o lado – hiperventilar antes de uma actividade física de tamanha envergadura, já aprendi, não é uma boa ideia. Mas, com mais um puxão daqui e outro dali (e uma mãozinha da parceira do Diário de Notícias – que a camaradagem no mar começa em terra), estou finalmente pronta para seguir para o cais, de fato bem justinho para manter o corpo quente e de colete salva-vidas bem apertado, que isto é seguro mas o grau de imprevisibilidade é considerável.
Por todo o grupo, na maioria constituído por jornalistas, convidados para usufruir de uma experiência que pode ser vivida por qualquer um (“mas é melhor com o tempo mais ameno”), treme-se. De frio, certamente. Ainda que não me livre do pensamento “onde estava eu com a cabeça quando achei que isto era uma boa ideia”. Já não há volta. Ouvem-se risos nervosos e lê-se a coragem em rostos de expressão quase vazia. Há ainda quem tenha optado por um fato impermeável apenas para não molhar a roupa que manteve por baixo, deixando claro desde logo que dos barcos não sai. Não será um problema… A bordo destes também há divertimento. Já eu sinto-me preparada para abraçar qualquer actividade – ou quase… Mas seguimos bem acompanhados: além da inapta tropa de repórteres, Rita de Melo Ribeiro, que terá sido a primeira mulher portuguesa a entrar no mar de prancha, e o actor Afonso Vilela que, ainda que não tenha “a experiência deles”, referindo-se aos nossos anfitriões, soma três décadas de paixão pelas ondas. Ao menos, neste barco alguém sabe ao que vai.
Lino Bogalho, da empresa Nazaré Water Fun, dá o briefing, depois de estarmos todos sentados nos assentos azul-turquesa do Sprum, um jetboat que se estreou há um ano nas águas nazarenas: “E se a certa altura acharem que vão saltar borda fora isso é NORMAL”, sublinha. “Haverá uma altura em que terão água pela cintura, o barco vai encher de água… NORMAL!”. Tudo normal, portanto, ainda que o aperto que sentimos no estômago nos indique que isto é tudo menos normal… Há quem jure que irá entrar em pânico, quem prometa gritos e quem mantenha uma postura imperscrutável. Nos 12 lugares disponíveis, temos estreantes para todos os gostos. “Isto não devia ter cintos?”, pergunta alguém. “Não se preocupem. Se voarem do barco, uma das motos de água apanha-vos.” Demasiado tarde para fugir; entretanto, já zarpámos e o baptismo faz-se poucos segundos depois com um afundanço que nos deixa logo molhados e a saborear o sal do Atlântico Norte. No fundo, é como andar de kart ou estar dentro de um automóvel no campeonato de drift: há peões, afundanços, acelerações poderosas, travagens à queima-roupa. Sem perigo – ainda que de cada vez que o mar nos abrace os pensamentos se gelem. E naquela curva mais apertada, confesse-se, não se resiste a fechar os olhos (que seria a táctica mais usada durante o dia para vencer o medo).
Cavalgar ondas
Enquanto driblamos as águas ainda no conforto do porto, outros já seguiram para mar aberto. E é com eles que vamos ter logo a seguir num dos barcos de apoio. Pelo sim pelo não, escolho um lugar na popa, onde se sente menos a ondulação. Mas, à medida que o oceano se abre e a confiança cresce, depressa mudo para um espaço onde se pode viver e testemunhar melhor as experiências. À vez, vamos sendo levados às ondas da praia do Norte. Afinal, não há vagas de três nem de seis metros, mas o vento não permite grandes antevisões da direcção que a ondulação toma. Ainda assim, depressa se percebe que ninguém está aqui disposto a correr riscos, sobretudo o nosso divertido anfitrião. A gargalhada de McNamara atravessa marés e chega-nos quase como um tranquilizante, enquanto o ouvimos sobre esta enorme depressão geológica que permite a formação de ondas gigantes.
Quando já praticamente toda a gente foi (e, importante!, voltou), reúno forças para viver a experiência: pode-se fazê-lo montado numa prancha de surf puxada pelo jet ski, num sled – uma espécie de prancha de bodyboard agarrada à mota de água – ou simplesmente à pendura.
Prefiro a última e sou levada por Toby Cunningham, que em 2003 quebrou o recorde mundial de ondas gigantes no México e que actualmente vive na Nazaré seis meses por ano. Esclareço-lhe os meus receios, mas para Toby este é apenas uma espécie de “passeio no parque”. Depressa ruma às ondas – “temos que ir tirar uma foto”, desafia-me. E há alternativa?, ainda penso… Não há nem é suposto existir. Vamos, por isso, em ritmo acelerado, aproveitando algumas ondas e evitando outras, numa experiência tão radical quanto espiritual (para o comum dos mortais como eu, sublinhe-se). Não tanto, porém, como aquela que levou um repórter de imagem à praia, após a mota do experiente Hugo Vau se ter virado. Nada que os demovesse e, sem que tivéssemos tido tempo de perceber o incidente, já ambos estavam de volta à acção – e com uma aventura e peras para relatar e, graças à boa-vontade da câmara submersa, mostrar.
Está frio e, enquanto os barcos se vão enchendo de corpos enregelados a exibirem lábios quase roxos, há quem não resista a tanta movimentação e acabe mesmo por ir “borda fora”. Nada de estranho e nada que não se trate depressa: “O truque é olhar o horizonte”, aconselham-nos.
Entretanto, o jetboat vai recolhendo quem quer repetir a experiência em mar aberto, e o divertimento a bordo é visível e audível. Já eu só penso em voltar a “cavalgar ondas”, mas está quase na hora do regresso. “E posso regressar de mota de água?”. Claro que sim. Tenho como guia o italiano Marcianò que, desde há uns anos, também elegeu a Nazaré como a sua casa de Inverno. Mas a nossa viagem não é a direito... Vamos, antes, aproveitando toda e qualquer onda, subindo até à crista e apanhando a boleia salgada, voltando atrás quando assim se justifica – e justifica-se muitas vezes...
Já quase toda a gente voltou a terra. Excepto nós, outra mota com pendura e o Sprum. E, entre brincadeiras, vamos adiando o fim. Já sem ponta de medo e com a clarividência de que estar aqui, neste mar, com estas pessoas, a viver todas estas sensações só pode ser descrito como um privilégio que, ao fim de apenas umas horas, já sentimos como quase um vício.
A Fugas esteve na Nazaré a convite da Mercedes-Benz Portugal