Manuel Pinho e a casa que Garrett fez
Um dia se saberá se é verdade e que ligação têm (ou não) estes indícios com a Operação Marquês de que é arguido José Sócrates, que trouxe Manuel Pinho para o seu governo.
Toda a gente se lembra de como Manuel Pinho, ex-ministro da Economia, saiu da política: com dois dedos a imitar corninhos, em pleno Parlamento, que o forçaram à demissão pouco depois. O episódio deu origem a uma das melhores manchetes da história da imprensa portuguesa, “Ministro da Economia tramado pelos indicadores” — os indicadores, sim, só que não eram os indicadores económicos.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Toda a gente se lembra de como Manuel Pinho, ex-ministro da Economia, saiu da política: com dois dedos a imitar corninhos, em pleno Parlamento, que o forçaram à demissão pouco depois. O episódio deu origem a uma das melhores manchetes da história da imprensa portuguesa, “Ministro da Economia tramado pelos indicadores” — os indicadores, sim, só que não eram os indicadores económicos.
Já menos gente se lembra de quando Manuel Pinho chegou à política. Foi sob a sombra de uma polémica que interessou apenas aos amantes de Lisboa e aos coca-bichinhos das coisas históricas: Manuel Pinho era o proprietário que se preparava para demolir uma casa onde Almeida Garrett viveu (e na qual morreu) e que estava devidamente assinalada com uma placa lembrando esse facto. O projeto foi (inacreditavelmente) aprovado pela Câmara de Lisboa de Santana Lopes, e depois também pela de Carmona Rodrigues. Quando Pinho chegou ao governo a casa de Garrett estava ainda de pé, mas nem o estado nem o governo impediram a demolição. E o primeiro-ministro de então, José Sócrates, tampouco fez sentir ao seu subordinado que ser ministro da República e demolir a casa de Garrett era coisa que não se podia permitir.
Tudo legal, portanto. Mas é história que nunca esqueci. Quem compra a casa onde Garrett viveu e morreu, e sabe disso, e decide demoli-la, não pode para mim ser boa rês. Concedo que isso será, se calhar, só para mim e uns quantos. Mas quem assim age não pode ao mesmo tempo ser homem que se apresente num governo como defensor do interesse público. E isso já é um problema para nós todos.
Porque aquilo de que eu quero aqui falar não é da casa onde Garrett morou, mas antes — consulte-se o título da crónica — da casa que Garrett fez. Ora, a casa que Garrett fez (e muitos como ele, antes e depois dele, fizeram) não tem nada a ver com a casa física onde Garrett morou. Trata-se antes da casa metafórica onde cabemos nós todos e que tem mudado de nome e forma jurídica com a história, e que hoje se chama República Portuguesa. Todos ouviram falar do Garrett escritor. Menos conhecem o Garrett político, que foi exilado e lutou pelo liberalismo contra o absolutismo, que foi embaixador numa altura em que Portugal não tinha dinheiro para lhe pagar, que foi deputado e ministro dos negócios estrangeiros. A casa que ele e outros como ele fizeram é simplesmente o bom nome de um país que vai resistindo contra os golpes de camartelo que lhe vão dando.
Notícias recentes sugerem a possibilidade de que os golpes que Manuel Pinho deu na casa que Garrett fez foram ainda piores do que os que mandou dar na casa onde Garrett viveu. Segundo documentos do “Caso EDP”, de que Manuel Pinho é arguido, o ex-ministro da Economia deteria três empresas off-shore (sob os nomes de Tartaruga, Blackwade e Mandalay) através das quais terá recebido mais de um milhão de euros do universo empresarial-familiar Espírito Santo, incluindo meio milhão em transferências mensais de cerca de 15 mil euros enquanto era ministro.
Isto está sob investigação. Um dia se saberá se é verdade e que ligação têm (ou não) estes indícios com a Operação Marquês de que é arguido José Sócrates, que trouxe Manuel Pinho para o seu governo.
Mas não parece tolerável que este caso, mesmo no condicional, não mereça comentário por parte dos nossos políticos. Em particular dos que se sentaram com Manuel Pinho no Conselho de Ministros. Que raio, é possível dizer-se que se respeita a presunção de inocência e que se espera que isto não seja verdade porque, caso fosse verdade, seria uma repugnante violação das obrigações dos governantes perante os governados. Mais: os cidadãos precisam de ter a garantia de que no futuro qualquer suspeita destas levará um primeiro-ministro a confrontar um ministro sobre a possibilidade de ele ser “um homem do banqueiro X ou da empresa Y” e a demiti-lo se não se considerar esclarecido. E que se um primeiro-ministro não o fizer, os outros ministros se demitirão por considerarem que não podem partilhar um governo com quem viva sob a suspeita de servir a outro amo que não a República. Essas garantias têm de chegar já, e têm de valer para as eleições futuras.
Caso contrário teremos de ser nós a fazer valer esses princípios. Escreveu Garrett quando foi candidato a deputado: “raras vezes o superior prevarica se no subalterno não encontra a necessária condescendência para o ajudar”. Chegou a altura de se perceber que a nossa condescendência acabou.