Tana Toraja, uma cultura cuja vida gira em torno da morte

Passando despercebida ao viajante comum, Tana Toraja é o local ideal para quem procura uma imersão cultural digna de um documentário, graças aos seus extravagantes funerais

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Tana Toraja, localizada na região montanhosa da ilha Sulawesi, na Indonésia, é um dos segredos culturais mais bem guardados do país. Aqui habita uma das tribos mais autênticas e culturalmente ricas de toda a ilha, fascinando-nos com a crença animista Aluk Todolo ou “Caminho dos Antepassados”, segundo a qual a morte de uma pessoa é o evento mais importante da sua vida.

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Tana Toraja, localizada na região montanhosa da ilha Sulawesi, na Indonésia, é um dos segredos culturais mais bem guardados do país. Aqui habita uma das tribos mais autênticas e culturalmente ricas de toda a ilha, fascinando-nos com a crença animista Aluk Todolo ou “Caminho dos Antepassados”, segundo a qual a morte de uma pessoa é o evento mais importante da sua vida.

Passando despercebida ao viajante comum, Tana Toraja é o local ideal para quem procura uma imersão cultural digna de um documentário, graças aos seus extravagantes funerais, conhecidos como Rambu solo, e uma excelente alternativa às ilhas mais famosas da Indonésia. Foi lá que, em 2014, dediquei algum tempo da minha viagem pelo país.

O aeroporto de Makassar foi o meu ponto de chegada à ilha, onde já me esperava o meu guia dos próximos dias. Depois de uma viagem de autocarro de cerca de oito horas, cheguei à cidade de Rantepao, a capital de Tana Toraja. Era tempo de dormir um pouco para recuperar energias e começar a explorar esta cultura que prometia ser completamente absorvente.

Em Tana Toraja, uma pessoa não é considerada morta, mas sim doente, até à sua cerimónia fúnebre. Esta é realizada muitas vezes semanas, meses ou anos após a morte, o tempo suficiente para que a família do falecido possa recolher os recursos necessários para cobrir as despesas do funeral, um evento que dura por vários dias. Durante o período de espera, o corpo do falecido, actualmente preservado em formol, é envolto em várias camadas de pano e mantido na Tongkonan — casa tradicional — sendo visitado pela sua família, que inclusivamente lhe leva comida.

Naquele dia, tive a sorte de poder assistir a um destes funerais. Era já o último dia, tendo sido precedido, nos dias anteriores, por danças tradicionais, cânticos, lutas de búfalos e sacrifício de búfalos e porcos. Chegada ao local, estava prestes a começar o cortejo dos convidados, familiares e amigos de todo o lado, que podiam inclusivamente vir de países distantes, que se apresentavam devidamente vestidos de preto. Já as crianças, familiares do falecido, vestiam os trajes tradicionais.

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Local da cerimónia fúnebre Miriam Augusto

Fui apresentada à prima do falecido a quem entreguei a minha oferenda. Poderia ter sido um búfalo ou um porco, ficaria muito mais bem vista, mas o orçamento deu para um volume de tabaco que foi recebido com agrado. O facto de haver uma estrangeira a assistir à cerimónia, só por si, já atribuía importância ao acontecimento. A banda sonora era composta pelos grunhido de porcos presos, pelos sons das pessoas a conversarem e pelo anúncios emitidos pelos altifalantes, divulgando as oferendas dos convidados a toda a comunidade presente. Terminado o cortejo e acomodação dos convidados nas estruturas construídas para o efeito, era altura de servir bolinhos acompanhados de chá, momento para o qual fui convidada.

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Restos mortais em túmulo típico Miriam Augusto

Tentava trocar algumas palavras com duas das familiares quando, entretanto, se deu um reboliço. Aproximei-me do anunciante de oferendas que, de olhos esbugalhados e sorriso orgulhoso, se virou para mim e disse “Now, they’re going to shop!”, enquanto fazia o sinal de corte no pescoço. Ia começar um dos momentos mais altos destas cerimónias — o sacrifício de búfalos. Acredita-se que a alma do falecido permanece em torno da vila até ao momento em que o primeiro búfalo é sacrificado; em seguida, o seu espírito pode começar a sua viagem até Poyo, a terra das almas, ou vida após a morte. Segundo o povo Toraja, Deus criou o homem, a terra e o búfalo para viverem em perfeita harmonia. Em vida, o homem deverá cuidar do búfalo para que ambos possam trabalhar a terra. Na morte do homem, para recompensá-lo por ter sido bem tratado e alimentado, o búfalo deverá ser sacrificado para levar a alma do homem ao céu. Por isso, quanto maior o estatuto social do falecido — classe média ou nobre — maior a quantidade de búfalos sacrificada, chegando, muitas vezes, às centenas.

A prima do falecido, puxando-me pela mão, quis garantir que eu ficava na primeira fila. Assisti a dois sacrifícios e pedi para sair. Do outro lado, sacrificavam-se porcos. Perguntaram-me se queria assistir, mas educamente neguei, juntando-me a outros familiares, enquanto degustava mais uns bolinhos e chá. Terminados os sacríficos, começou o desmanchar dos animais e a distribuição da carne que, após cozinhada, alimentava as centenas de convidados, no chamado “banquete funerário”.

Entretanto, voltaram a chamar-me. A família, orgulhosa pela celebração que proporcionava, queria garantir que eu não perdia nenhum dos grandes momentos. Entre o choro da viúva, colocava-se o caixão numa réplica da tongkonan para ser enterrado, mas não no chão. O seu lugar de descanso final era uma das cavernas no topo de uma falésia! Terminada a cerimónia, uma efígie de madeira representando o falecido, o tau-tau, foi colocada na parte externa da caverna, onde o seu espírito entrará continuando a viver e mantendo assim o elo entre os vivos e os mortos.

Para alguns torajanos, a relação com o falecido continua numa cerimónia chamada Ma'nene', retirando os corpos do seu repouso final, mudando-lhes a roupa e limpando-os, bem como aos seus os túmulos. Foi por esses originais túmulos, perdidos no meio da maravilhosa paisagem de Toraja, que andei, fascinada com esta singular cultura, durante a tarde deste e o dia seguinte.

A titulo de curiosidade, quando partilhei com o meu amigo Guto, de Bali, que ia a Toraja, a sua reacção foi de quem se arrepiava dizendo “A terra onde os mortos andam!”. Há de facto rumores de que, num ritual antigo, os xamãs faziam um feitiço ao corpo do falecido no final da sua cerimónia fúnebre, fazendo com que este “andasse” no seu túmulo. Pelos vistos, o rumor mantém-se e vai além das ilhas na Indonésia.