Portugueses, os maus da fita
Cláudia Silva escreve que “os portugueses foram os primeiros a escravizar pessoas levadas de África para as Américas”. Terá sido assim?
Talvez os leitores mais novos não saibam, mas no tempo do cinema mudo os filmes tinham sempre um personagem que dava corpo a todas as maldades e perfídias: era o mau da fita. O cinema cresceu, foi perdendo essa visão maniqueísta e muito ingénua das coisas, mas a expressão ficou para designar os vilões, aqueles que personificam e exercem todo o mal.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Talvez os leitores mais novos não saibam, mas no tempo do cinema mudo os filmes tinham sempre um personagem que dava corpo a todas as maldades e perfídias: era o mau da fita. O cinema cresceu, foi perdendo essa visão maniqueísta e muito ingénua das coisas, mas a expressão ficou para designar os vilões, aqueles que personificam e exercem todo o mal.
Recentemente, a investigadora Cláudia Silva escreveu um artigo no PÚBLICO no qual, dando voz a uma ideologia actualmente muito difundida, procura mostrar que os portugueses foram de certa forma os maus da fita. Porquê? Por duas razões interligadas: em primeiro lugar porque, afirma, “foram os primeiros a escravizar pessoas levadas de África para as Américas”. Em segundo lugar porque “foram também os primeiros a chamarem aos africanos escravizados negros (...). Os espanhóis entraram no negócio de tráfico de pessoas posteriormente e também usaram a palavra negro para descreverem os africanos feitos escravos (...). Dada esta herança linguística, as línguas portuguesa e espanhola estão recheadas de expressões idiomáticas que carregam na sua história a escravidão, e que estão intrinsecamente carregadas de sentidos negativos e opressores”. Ou seja, os portugueses (e depois os espanhóis) teriam, na visão da investigadora, escravizado os africanos que levaram para as Américas e adoptado designações discriminatórias e humilhantes, como “negro”, que se embeberam nas línguas ibéricas e, depois, passaram para outras línguas, como o inglês, por exemplo, dando origem ao infamante nigger. Portugueses (e espanhóis) teriam, desse modo, iniciado um caminho que, para Cláudia Silva, abriu a porta ao racismo e edificou uma terminologia que ainda hoje persegue as pessoas africanas e afro-descendentes.
No final do seu artigo, a investigadora reconhece que poderá ser “exagerado ou despropositado” usar assim a etimologia, mas considera que isso é útil para provocar “reflexão”, “mudança social” e para “fazer barulho para despertar a consciência das pessoas”. Muito haveria a dizer sobre a origem, a história e os significados das palavras “negro” e “preto”, mas para já não vou seguir uma estrada que a própria autora admite poder ser exagerada ou despropositada. Vou focar-me apenas na primeira acusação de Cláudia Silva, isto é, a de que “os portugueses foram os primeiros a escravizar pessoas levadas de África para as Américas”, que é uma ideia mais subterrânea e mais corrosiva pois, enunciada assim, pode levar os leitores a pensar que os portugueses escravizavam pessoas supostamente livres que posteriormente transportavam para o outro lado do Atlântico.
Terá sido assim? Cláudia Silva usa, no seu texto, uma informação que foi buscar aos historiadores norte-americanos Linda Heywood e John Thornton. Nada a objectar quanto à fonte, pois Thornton é um investigador fiável e credível (e a sua mulher Linda Heywood também). Mas terá a articulista lido o mais conhecido livro de Thornton intitulado Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400-1800? Terá lido com atenção o que o autor diz da página 43 à 97 desse seu livro? É que, se leu, esqueceu-se de acrescentar que Thornton é justamente a pessoa que melhor mostra que os africanos já tinham um enorme número de escravos antes da chegada dos portugueses. O historiador norte-americano é, também, aquele que melhor explica por que razão os tinham e o que mais fortemente sublinha que os africanos não foram forçados a participar no comércio da escravatura contra sua vontade. Mais: na época do tráfico transatlântico, como Thornton diz — e cito —, “os europeus não pilharam a África, nem como invasores nem, de forma indirecta, como agentes de uma economia mais avançada”. Isso, acrescento eu, virá posteriormente, a partir do último quartel do século XIX, no tempo do colonialismo e da chamada “Corrida a África”. Antes, e por norma, eram os africanos que forneciam pessoas já escravizadas aos compradores ocidentais.
O que, para esses ocidentais, colocava questões. O problema que inquietou juristas, filósofos e membros do clero foi precisamente o de saber se as pessoas que os africanos entregavam e os negreiros adquiriam na costa de África eram realmente escravas, isto é, se eram pessoas escravizadas em circunstâncias que então se consideravam legítimas, como a guerra justa, o endividamento ou a prática de crimes graves, ou se, pelo contrário, se tratava de pessoas livres que os mercadores africanos tinham capturado à má-fila para depois as venderem aos negreiros em Luanda, Benguela e noutros pontos da costa. Para os portugueses e outros ocidentais o problema era saber se era (ou não) legítimo manter aquelas pessoas em escravidão.
Mas como decidir? Aqui no mundo ibérico, essa questão preocupou gente como Tomás de Mercado, Luis de Molina ou o padre Manuel Ribeiro da Rocha, que escreveu um tratado sobre o assunto (Ethiope resgatado, 1758). Claro que, havendo tantas e tão fundamentadas dúvidas quanto à legitimidade do comércio negreiro, o ideal seria que, num gesto cautelar e de caridade cristã, se adquirissem escravos para os salvar da morte e, de seguida, os libertar. Isso foi várias vezes sugerido, mas, alegava-se, não era razoável nem realizável. Quais seriam os comerciantes e capitães de navio com forças e meios suficientes para irem à costa de África comprar negros que depois libertariam sem receberem pelo menos o equivalente do que despendiam e dos riscos que corriam? Quais seriam os estados dispostos a indemnizar ou compensar essas pessoas e a abdicar de um negócio considerado absolutamente imprescindível para a prosperidade das Américas? Parecia utópico.
Curiosamente, foi de certa forma essa utopia que, no fundo, acabou por acontecer quando, na era do abolicionismo, um após outro, os Estados ocidentais foram decretando o fim do tráfico de escravos e, depois, o fim da escravidão. Foi esse o percurso que foi seguido pela Grã-Bretanha, a Holanda, a Dinamarca, a França, os Estados Unidos e os restantes países ocidentais, incluindo Portugal. Mas há pessoas que, ainda assim, continuam a achar que os antigos portugueses (e outros povos ocidentais) foram, de uma ponta à outra, os maus da fita.