Procriação Medicamente Assistida: filhos vão poder saber quem foram os dadores

Chumbo do Tribunal Constitucional das normas de gestação de substituição impõe o fim da confidencialidade em todas as técnicas de PMA relativa aos dadores de esperma, ovócitos ou embriões.

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JOAO GUILHERME / PUBLICO

No momento de votar a inconstitucionalidade de algumas normas da lei da gestação de substituição, nem todos os juízes do Tribunal Constitucional (TC) concordaram com o fim do sigilo que, desde a Lei da Procriação Medicamente Assistida (LPMA), aprovada em 2006, protegia os dadores anónimos de esperma, ovócitos ou embriões e que, a manter-se, se aplicaria também à gestação de substituição.

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No momento de votar a inconstitucionalidade de algumas normas da lei da gestação de substituição, nem todos os juízes do Tribunal Constitucional (TC) concordaram com o fim do sigilo que, desde a Lei da Procriação Medicamente Assistida (LPMA), aprovada em 2006, protegia os dadores anónimos de esperma, ovócitos ou embriões e que, a manter-se, se aplicaria também à gestação de substituição.

Mas o desaparecimento da regra do anonimato dos dadores prevaleceu mesmo no acórdão que chumbou algumas normas da lei da gestação de substituição aprovada em 2016 e, por arrasto, põe em causa alguns aspectos da lei de 2006. O fim do sigilo dos dadores e da identidade das gestantes de substituição foi decidido em nome do direito dos filhos a conhecerem as suas origens “enquanto elemento fundamental da construção da identidade”. Tal aplica-se a dadores portugueses e de países onde também não existe anonimato, mas não a dadores de países onde vigore o direito à confidencialidade, como a Espanha, de onde é proveniente grande parte dos gâmetas masculinos ou femininos utilizados nas técnicas de procriação medicamente assistida (PMA) em Portugal, explica o professor de Direito de Coimbra, Rafael Vale e Reis.

O acórdão, com data de 24 de Abril, determina “que mal se compreende, hoje”, que a regra continue a ser o anonimato por esta “constituir (...) uma afectação indubitavelmente gravosa dos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade”. E qualifica de “desnecessária tal opção”, mesmo no que respeita à salvaguarda do “direito a constituir família” e do “direito à intimidade da vida privada e familiar”. Para proteger tais direitos, o TC admite “o anonimato dos dadores e da gestante de substituição apenas — e só — quando haja razões ponderosas para tal”, a avaliar caso a caso.

“Não estávamos à espera”, diz Rafael Vale e Reis. A posição do TC é “revolucionária” e, sustenta o professor, tem efeito a partir de agora. “Tudo se passa como se não existisse a norma do anonimato dos dadores, como se fosse inválida a partir do momento em que foi aprovada desde 2006. O TC podia ter limitado os efeitos dizendo que o fim do anonimato vigorava só a partir de agora. Não o tendo feito, é como se o anonimato” nunca tivesse existido.

Portugal fica assim com um regime semelhante ao que passou a prevalecer nos últimos 15 anos no Reino Unido e Holanda e ao que sempre existiu em países nórdicos como, por exemplo, a Suécia. “A solução do TC não é para transformar estas pessoas [dadores ou gestantes de substituição] em mães e pais do ponto de visto jurídico”, esclarece. “É apenas para os filhos terem hipótese de as conhecerem.” O jurista prevê que uma nova regulamentação da lei venha estabelecer a idade a partir da qual uma pessoa está “habilitada a solicitar informação” sobre “quem é o dador do material biológico a partir do qual foi gerado”.

“Não há império da genética”

André Dias Pereira, presidente do Centro de Direito Biomédico, acolhe a decisão, que para ele é um sinal de que “não há império da genética”, que “a gestação também tem valor”. “Aqueles nove meses revelam-se bem importantes do ponto de vista ético e jurídico”, exemplifica o jurista que é ainda membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.

O direito (ou não) ao anonimato de dadores de gâmetas para a PMA foi um dos motivos que levaram alguns juízes do TC a votarem vencidos, como aconteceu, por exemplo, com Maria Clara de Sottomayor. Na sua declaração de voto, disse discordar “da prevalência (...) da verdade biológica sobre a verdade afectiva e social, tanto mais que a lei define, de forma inequívoca, que um dador não é um pai nem é titular dos direitos e deveres próprios da paternidade”.

Sottomayor também rejeitou a analogia feita nos casos de procriação medicamente assistida e gestação de substituição com os direitos dos filhos adoptados a saberem quem são os pais biológicos. No caso dos adoptados, “os pais biológicos fazem parte da sua história”, o que não tem “qualquer paralelo ou semelhança com o conhecimento de um dador, que apenas quis com o seu gesto ajudar um casal com problemas de fertilidade e que nunca teve qualquer relação com a criança, nem a entregou ou abandonou”.

Redução de doações

O Conselho Nacional de PMA irá analisar o acórdão do TC amanhã e só depois disso “emitirá uma posição oficial sobre o mesmo”. Para já, Eurico Reis, membro do conselho, prevê uma descida “a pique” das doações, como diz ter acontecido no Reino Unido, onde o anonimato dos dadores desapareceu em 2004. “Os dadores não querem ser pais nem mães. Os dadores querem ajudar outros a serem pais e mães.”

Diz não saber o que irá acontecer aos bancos anónimos de esperma ou ovócitos congelados. Mas acrescenta: “Não podemos obrigar as pessoas que fizeram a doação no pressuposto de ser em sigilo a quebrar esse sigilo.”