“Não penso que Picasso tenha sido um abusador”

O actor espanhol Antonio Banderas é o protagonista da nova série Genius: Picasso, do canal National Geographic, sobre o mestre do cubismo e arquétipo do "coleccionador de mulheres".

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Há uma cena estranha, mesmo um pouco perturbadora, no primeiro episódio da série Genius: Picasso, que esta quinta-feira estreia no canal National Geographic. Enquanto Pablo Picasso pinta Guernica empoleirado num escadote, uma das mais famosas obras do século XX, há duas mulheres que lutam no chão do estúdio do artista que personifica o cubismo. Dora Maar e Marie-Thérèse Walter, ambas envolvidas amorosamente com Picasso, esgatanham-se, batem-se, enquanto Picasso sorri, continuando a pintar Guernica, numa indiferença misógina.

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Há uma cena estranha, mesmo um pouco perturbadora, no primeiro episódio da série Genius: Picasso, que esta quinta-feira estreia no canal National Geographic. Enquanto Pablo Picasso pinta Guernica empoleirado num escadote, uma das mais famosas obras do século XX, há duas mulheres que lutam no chão do estúdio do artista que personifica o cubismo. Dora Maar e Marie-Thérèse Walter, ambas envolvidas amorosamente com Picasso, esgatanham-se, batem-se, enquanto Picasso sorri, continuando a pintar Guernica, numa indiferença misógina.

Nestes meses marcados pelo movimento MeToo, depois das denúncias em catadupa de casos de abuso e violência sexual que começaram em Hollywood com o poderoso produtor Harvey Weinstein, perguntámos a Antonio Banderas, o actor espanhol a quem cabe o papel de protagonista se tinha reflectido sobre se a relação do génio espanhol com as mulheres não poderia ser vista como um problema, ou se o assunto tinha sido discutido pela equipa. “Não penso que Picasso tenha sido um abusador. As mulheres sofreram, sim; ele era infiel a todas, sim. Mas ele não o escondia”, responde Banderas ao PÚBLICO numa entrevista colectiva com jornalistas em Málaga, onde a série de dez episódios teve a sua ante-estreia mundial — uma homenagem à cidade onde Picasso nasceu em 1881 e onde o próprio actor nasceu em 1960. “O problema é que Picasso queria tudo. E sabe porquê? Porque podia. Era demasiado famoso, demasiado talentoso, demasiado respeitado, demasiado rico, tudo demasiado cedo. Picasso nunca matou a criança que havia dentro dele. Via um bolo e queria logo aquele bolo. Era a excitação da coisa nova que ele queria agarrar.”

A luta entre Dora Maar e Marie-Thérèse Walter — duas das suas musas mais conhecidas, retratadas em inúmeros quadros — está lá “porque aconteceu”, afirma o realizador Kenneth Biller, também autor do guião e criador da série. “Fizemos muita pesquisa e parece ter sido um episódio importante”, explica o norte-americano. “Estávamos a tentar dramatizar o triângulo em que ele vivia. Estávamos a tentar dramatizar o que parece inspirá-lo. De certa maneira, podemos dizer que o conflito alimenta a sua arte.” A cena quer ilustrar o que lutou, mesmo consigo próprio, para fazer a obra-prima Guernica (1937), que pinta em quase oito metros de tela os horrores da Guerra Civil Espanhola, através do bombardeamento da cidade basca pela aviação alemã. “Ele contou esta história muitas vezes a muitas pessoas. Chamou-lhe uma das suas ‘memórias escolhidas’. Parece que a competição entre aquelas duas mulheres o excitou e o inspirou de forma a conseguir continuar a trabalhar.”

Ken Biller reconhece que a equipa que fez Genius: Picasso falou da possibilidade de a figura do pintor ser mal-interpretada neste momento pós-MeToo — a quinta-essência do artista boémio que coleccionava mulheres umas atrás das outras. “Sim, falámos sobre isso. E o que decidimos foi contar a história da forma mais honesta que podíamos. Fizemos uma investigação exaustiva e há várias descrições e retratos de Picasso. Alguns são muito negativos, enquanto outros são demasiadamente positivos. A verdade estará, como geralmente acontece, entre os dois. Mas decidimos que íamos contar a verdade, não se tratava de o representar como um herói, nem como um vilão, nem glorificá-lo, nem denegri-lo, tão-só encontrar o retrato mais verdadeiro e deixar a audiência decidir. Parte da audiência pode achar aquele momento [da luta] divertido, outra pode ficar perturbada.”

Quanto às actrizes na cena, Samantha Colley (Maar) e Poppy Delevingne (Walter), preferem falar do movimento Time’s Up, a plataforma criada por várias estrelas de Hollywood para combater o assédio e a discriminação sexual na profissão e noutros sectores, do que do momento #MeToo e da série de denúncias que provocou. “Eu teria muito cuidado em rotular Picasso como um monstro. Ele não era isso”, afirma Samantha Colley. “Esta cena são duas mulheres independentes que têm tomates para lutar uma com a outra. Rejeito que as mulheres sejam sinónimo de vítimas. Picasso não as obrigou a nada. Acho que é uma coisa perigosa, complicada, e isso afasta a nossa atenção das verdadeiras vítimas, aquelas que foram genuinamente abusadas.” Dora Maar, uma fotógrafa surrealista, uma activista, sabia como Picasso era, um mulherengo, que tinha relações com mulheres décadas mais novas, defende Samantha Colley, que na série anterior também fazia de outra mulher abandonada por um génio, desta vez Einstein: “Ela vai para a relação com os olhos abertos. Sabia de Marie, sabia de Olga, a primeira mulher de Picasso. Acho que em Dora Picasso encontrou uma espécie de igual intelectual. Discutiam muito sobre arte e política. Muitas das pinturas que fez dela têm uma certa intensidade.”

Na maior parte dos retratos que Picasso fez de Dora Maar, vêmo-la a chorar, angulosa, ao contrário da luminosa, e redonda, Marie-Thérèse Walter.

Picasso dizia que as mulheres “são máquinas de sofrimento”. Mas é difícil, defende Antonio Banderas, saber exactamente o que Picasso pensava além do que dizia. “Tentei perceber o que sentia. Às vezes é preciso ler nas entrelinhas. Se lermos o livro de Françoise Gilot, [A Minha vida com Picasso], vemos que ela o amava, o admirava, mas ao mesmo tempo deu-lhe muitos murros nestas páginas.”

O PÚBLICO viajou a convite da National Geographic