Jacques Rozier, cineasta da eterna juventude
É uma lenda viva, um dos últimos sobreviventes da geração da nouvelle vague, mesmo que tenha um feito percurso individual e algo marginal. Um grande cineasta da juventude é um dos Heróis do Indielisboa. Retrospectiva a partir de hoje.
Jacques Rozier é um dos cineastas evocados nesta edição do IndieLisboa, com direito a retrospectiva integrada na secção Herói Independente, co-programada, como desde há anos é habitual nas grandes retrospectivas do festival, com a Cinemateca Portuguesa, em cujas salas decorrerão todas as sessões do ciclo. Não é um nome muito conhecido do espectador comum, e nunca nenhum dos seus filmes foi estreado comercialmente pela distribuição portuguesa. A sua obra é relativamente curta, quantitativamente, mas dilatada no tempo: vai do final dos anos 40 (uma curta-metragem, hoje aparentemente perdida e portanto não vista no ciclo) a 2012 (Revenez Plaisirs Exilés, um “filme-ópera” baseado em Lully e feito para a televisão francesa. Sim, Rozier, sendo mais um caso de cineasta irregular em termos de produção, “bissexto” como se costuma dizer, é também mais um caso de espantosa longevidade criativa: tem hoje 92 anos, é esperado em Lisboa para acompanhar o ciclo e encontrar-se com os espectadores, o que a confirmar-se será não apenas um ponto alto do festival, mas um ponto alto do 2018 cinematográfico português.
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Jacques Rozier é um dos cineastas evocados nesta edição do IndieLisboa, com direito a retrospectiva integrada na secção Herói Independente, co-programada, como desde há anos é habitual nas grandes retrospectivas do festival, com a Cinemateca Portuguesa, em cujas salas decorrerão todas as sessões do ciclo. Não é um nome muito conhecido do espectador comum, e nunca nenhum dos seus filmes foi estreado comercialmente pela distribuição portuguesa. A sua obra é relativamente curta, quantitativamente, mas dilatada no tempo: vai do final dos anos 40 (uma curta-metragem, hoje aparentemente perdida e portanto não vista no ciclo) a 2012 (Revenez Plaisirs Exilés, um “filme-ópera” baseado em Lully e feito para a televisão francesa. Sim, Rozier, sendo mais um caso de cineasta irregular em termos de produção, “bissexto” como se costuma dizer, é também mais um caso de espantosa longevidade criativa: tem hoje 92 anos, é esperado em Lisboa para acompanhar o ciclo e encontrar-se com os espectadores, o que a confirmar-se será não apenas um ponto alto do festival, mas um ponto alto do 2018 cinematográfico português.
Porque o homem é uma lenda viva, um dos últimos sobreviventes da geração da “nouvelle vague”, mesmo que (tal como Paul Vecchiali, um dos homenageados do ano passado) tenha um feito percurso individual e algo marginal que não se deve confundir com o eixo central do movimento – mesmo que com ele tenha convergido, sobretudo no caso dessa extraordinária obra-prima que é Adieu, Philippine, de 1962, a sua primeira longa-metragem e um dos momentos mais maravilhosos daquele “jovem cinema francês” do princípio dos anos 60.
É que Rozier, para começar, é mesmo um grande cineasta da juventude. Da juventude definida precisamente enquanto escalão etário, com todo o “substracto” sociológico inerente (caso mais uma vez de Adieu, Philippine, que segue rapazes e raparigas entre Paris e a Córsega até ao momento em que eles, os rapazes, tem que cruzar o Mediterrâneo e seguir para a guerra na Argélia), mas também como força da natureza, anárquica e irresponsável. Nesse sentido, e por muito que haja a ligá-lo aos seus contemporâneos (o Truffaut dos 400 Golpes, o Godard mais anarca como o do À Bout de Souffle, os filmes de Verão de Eric Rohmer, o gosto pela efabulação às voltas sobre si mesma de algum Rivette), há ainda mais a aproximá-lo dos pais fundadores do “anarquismo sentimental” do cinema francês, Jean Vigo e Jean Renoir (parentesco aliás visível ainda no modo como Rozier se apropria da “técnica cinematográfica”, que nele, e sobretudo nesses primeiros filmes, é tão “selvagem” como naquele Renoir do Boudu ou do Déjeuner sur l’Herbe).
Peguemos, por exemplo, no mais antigo filme de Rozier hoje subsistente, Rentrée des Classes, de 1956 (27 de Abril e 4 de Maio, Cinemateca). É, desde logo, um filme para que não há adjectivos bastantes – digamos, para simplificar, que se nos pedissem para escolher as cinco melhores curtas-metragens da história teríamos bastante trabalho para seleccionar quatro delas, mas a quinta seria garantidamente Rentrée des Classes. É um maravilhoso olhar sobre a infância, e sobre a sua associação com a natureza, através do percurso casa-escola, cheio de desvios, algures na ruralidade francesa, em espantosa comunhão com a floresta, com os rios, com os animais, e onde até um réptil tão frio como uma cobra de água pode ser mais uma sugestão de um universo a fervilhar de vida. Esse filme é de 1956, portanto ainda no countdown para a nouvelle vague, mas várias outras curtas apanham, e de certa forma documentam, o apogeu da nouvelle vague. É o caso, essencial, de Paparazzi, de 1963 (mostrado nas mesmas sessões de Rentrée des Classes), que para usar terminologia contemporânea descreveríamos como um making of do Desprezo de Godard. O seu foco é Brigitte Bardot e a atenção desmesurada dos fotógrafos italianos durante as cenas rodadas em Capri, filmados nos penhascos, como mirones, à espera do momento certo para apanhar a vedeta francesa tão pouco vestida quanto possível. É uma extraordinária cápsula do “espírito do tempo”.
Como é Adieu, Philippine (dias 26 e 27), com os seus jovens à espera de irem para a guerra, em deambulações e namoricos entre Paris e a Córsega, num filme que consegue a proeza de ser ao mesmo tempo hilariante e melancólico, esfuziante e triste, mas sempre abocanhar tudo com um lust for life incrível – inúmeros detalhes, como o travelling a acompanhar duas raparigas ao longo duma avenida parisiense com um tango a bombar na banda sonora em off, são o condimento dessa lascívia, e a garantia de que o filme é, ainda hoje, uma extraordinária explosão de juventude.
Mas se depois deste élan inicial Rozier se tornou um cineasta de produção irregular – também, ao que parece, por igualmente cultivar a “anarquia” enquanto método de trabalho – houve ainda lugar a pelo menos duas obras maiores, Du Côté d’Orouet,de 1971 (dia 28), típico filme “sobre nada” a não ser o verão, as férias, a praia, as historietas inconsequentes, as raparigas e os seus vestidos coloridos, um prazer imenso, e Maine Océan, de 1986 (dia 2), filme semi-português (Paulo Branco na produção, Acácio de Almeida na fotografia) e outro filme de mar, passado entre navios e ilhas, e onde o sentido musical de Rozier (que estava lá desde o princípio) começa a ter outro tipo de solidez estrutural que desembocará porventura nos “filmes-ópera” (L’Opera du Roi, de 1988, para além do mencionado Revenez Plaisirs Exilés) que são os seus últimos trabalhos (mostrados no dia 4).
Enfim, mais haveria a dizer, sobre este e outros títulos incluídos no ciclo. Mas, sobretudo pensando no espectador estranho a Rozier, esperamos ter deixado pistas suficientes para o fazer querer partir à descoberta de um cineasta único e extraordinário.