"O mundo era maior e nós não sabíamos"

Voltar ao ponto onde viram surgir uma luz ao fundo do túnel foi o que fizeram dez homens e mulheres do teatro, que recuaram 44 anos para celebrar a Revolução no sítio onde estavam quando perceberam que algo ia mudar. A liberdade agora é. Veio e mudou a vida de todos os que viveram essa transição e definiu o percurso dos que a receberam como dado adquirido. Sem lápis azul, dez actores e actrizes do Porto contam-nos, do sítio onde o viveram, como começou o seu 25 de Abril.

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Júlio Gago

Foi na Guiné-Bissau que Júlio Gago soube que a Revolução estava na rua. Cumpria uma pena de três anos e quatro meses de prisão militar e dois anos de degredo militar por ter desertado quando foi destacado para Angola.

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Foi numa sala, acompanhado pelo capitão do regimento onde estava a cumprir pena, com a rádio ligada na BBC, que viu o primeiro comunicado do Movimento das Forças Armadas. Os momentos seguintes foram de festa.

Anos antes, em 1970, seguira para Paris, onde esteve exilado. Regressou mais tarde a Portugal para fazer a recruta e a especialidade. “Achávamos importante aprender a manejar armamento. Quando fui mobilizado para Angola, desertei, entrei na clandestinidade e percorri o país com identidade falsa até ao dia em que fui preso”, recorda.

Foi detido a 12 de Maio de 1972 na Casa de Reclusão Militar do Porto, onde voltou agora connosco para nos mostrar onde começou o seu 25 de Abril. Consigo traz uma foto tirada já na Guiné. A PIDE chegou a lá ir para o interrogar. Há um tenente-coronel que diz que o seu caso era de ordem militar e que por isso deveria ser tratado como desertor. “Foi o que me safou dos interrogatórios da PIDE”, conta.

Na Guiné já não cumpriu a pena até ao fim. Contudo, só a 2 de Maio de 1974 é que chegou a ordem de libertação. Para voltar a Portugal ainda teve de esperar um mês. Não havia lugar nos aviões.

 

 

 

 

Emília Silvestre 

Era uma manhã de aulas como as outras no Liceu Carolina Michaelis, quando Emília Silvestre e as colegas de turma são avisadas na sala de aula de que a escola tinha de fechar. Algo se passava. Ninguém percebia muito bem o quê. Sabia-se apenas que havia militares na rua. No primeiro liceu feminino do Porto havia um sentimento geral de medo e de alguma expectativa.

Na altura, com 14 anos, ao longo do dia, já em casa, foi percebendo que algo grande estava a acontecer. As conversas que ia ouvindo entre adultos deram-lhe algumas pistas. Os pais estavam eufóricos e vivia-se um clima de festa.

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Nos dias seguintes há uma palavra que se repete: liberdade. “Foi como se passássemos de um dia completamente nublado, com chuva e trovoada, para um dia de sol e brilhante. Finalmente podia-se falar”, é a imagem que guarda dessa transição.

Abriram-se portas. Politizou-se e no 1º de Maio já saiu à rua. Pouco tempo mais tarde aproveita um curso do Teatro Experimental do Porto, leccionado pelo dramaturgo e professor chileno Roberto Merino, e dá os primeiros passos na segunda arte. Aos 15 anos já trabalhava como profissional.   

“Sem o 25 de Abril, não seríamos as mesmas pessoas”, diz. Passaram 44 anos desde a Revolução e voltou a uma das carteiras da escola que cinco anos após esse dia passou também a receber rapazes.

António Capelo

É ao gabinete onde trabalhava, de uma fábrica de Espinho, agora devoluta, que António Capelo regressa para recordar uma data que traçou um novo destino para a sua vida. Como já o fazia na altura, leva consigo um livro. Há 44 anos, tinha acabado de fazer 18 anos e dividia o dia entre a fábrica de cordas, onde trabalhava para pagar os estudos, e a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde tinha iniciado um percurso académico.

Na madrugada de 25 de Abril de 1974, à chegada ao local de trabalho, encontra uma porta fechada. Nesse dia não se trabalhou. A caminho para lá já sabia que algo tinha acontecido. Não tinha a consciência política que ganhou depois, mas sabia que o mundo, em Portugal, girava noutra direcção: “Tinha consciência social para perceber que há ricos e pobres. Isso não fazia sentido nenhum na minha cabeça.” Marcava essa data o início de algo novo.

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“Foi um dia muito marcante, porque a partir daí a minha vida mudou completamente. Comecei a perceber que havia outras possibilidades”, recorda. Deixou a fábrica, pôs os estudos em suspenso e foi parar ao teatro. Em Espinho, passou por algumas companhias amadoras e fundou a cooperativa Nascente, que ainda hoje existe. A partir daí dedica uma vida inteira às artes do espectáculo.

“Foi uma data importante, não só pela idade que tinha, mas também pelo que representou em termos sociais. De repente, percebi que era possível descobrir um mundo novo”, afirma.

Mário Moutinho

Há um amigo que de madrugada avisa Mário Moutinho que já estava a acontecer. Tinha chegado a hora de virar a página, algo que o actor, na altura quase com 28 anos, esperava há muito. Estava na casa dos pais, onde agora vive uma irmã, e a partir do momento em que  recebeu a boa nova agarrou-se ao rádio para ir acompanhando o desenrolar dos acontecimentos a partir da Rádio Clube Português. Assim o fez até a rua o chamar para a Avenida dos Aliados, onde já lá estava um mar de gente, numa altura em que a sala de visitas do Porto passava por um período de obras.

Algumas pedras da calçada, soltas, serviram de arma de arremesso durante “umas escaramuças” que existiram ao longo do dia. Os cafés das imediações recorda-se de os ver cheios. Era lá que iam parar os jornais, que naquele dia saíram em edições duplas ou triplas. Na rua estavam também militares.

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Atento à realidade política da época, viveu esta data “inesquecível” com “uma enorme felicidade”: “Tenho alguma dificuldade em descrever o que senti.”

Uns anos mais tarde foi com o filho, na altura com 15 anos, a uma retrospectiva histórica da Revolução dos Cravos. “Queria explicar-lhe o que foi aquele dia e não consegui. Estava de tal maneira emocionado que se tornou impossível. Foi um dia extraordinário e de grande felicidade para mim”, recorda.

Rosa Quiroga

É a uma paragem de autocarro actualmente temporariamente desactivada, perto do Liceu Rainha Santa Isabel, que Rosa Quiroga regressa para reviver o seu 25 de Abril de 1974. Na manhã desse dia, a mesma paragem não estava desactivada, mas pouco faltava para o estar. Foram horas de espera pelo autocarro que a levaria a casa após ter recebido a notícia de que naquele dia as aulas não iam decorrer como era habitual. Não esperou sozinha. Estava com outros amigos que tinham as mesmas dúvidas que a assolavam. O que teria acontecido?

Algo de bom seria. O semblante de quem passava fazia transparecer uma “atmosfera positiva”. Ainda que não soubesse ao certo o que se estava a passar, havia quem no grupo de amigos talvez soubesse. Recorda as histórias de uma amiga, filha de um militante do PC na clandestinidade, que em segredo lhe dizia que ali perto, da sede da PIDE, na Rua do Heroísmo, saíam na penumbra da noite alguns cadáveres para o Cemitério do Prado do Repouso.

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Fosse o que fosse que estivesse a acontecer, seria um evento inédito para que o liceu encerrasse pela primeira vez. Inédito e seguramente positivo. A família não escondia “alguma excitação”. Mau não seria.

Dias depois já os rapazes podiam ir esperar as raparigas à escola, já se liam livros e viam-se filmes que até então estavam vedados à população. De repente, descobre-se: “O mundo era maior e nós não sabíamos.”

João Paulo Costa

Em Abril de 1974, no mundo de João Paulo Costa já havia um espaço guardado para o teatro, que partilhava com o encantamento pela música que ouvia numa sala da casa da Fonte da Moura, onde vivia com os pais. Era o Dark Side of the Moon, dos Pink Floyd, um dos discos de eleição para ouvir com um grupo de amigos ligados às artes que gravitavam pelo extinto Café Fonte da Moura, na entrada para a Avenida da Boavista. Alguém o tinha trazido de fora. Naquele tempo, não era música fácil de cá encontrar. A flauta também era um instrumento que fazia parte da sua vida.

Porque as artes não davam de comer a ninguém, o curso de Engenharia era uma via para preparar um futuro construído e planeado dentro das balizas padronizadas pela época.

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Foi ao chegar à Faculdade de Ciências, na Praça dos Leões, onde agora funciona a reitoria, que recebeu a boa nova. Uma prima que estudava Ciências Políticas, “mais esclarecida”, disse-lhe que na capital estava em curso um golpe de Estado.

Segue para a casa dos pais, para se reunir com os amigos naquela sala reservada para passar as mais recentes novidades do rock dos anos 70. Naquele dia serviu para ir ouvindo diversas emissoras de rádio que pudessem trazer mais novidades. Antes das novidades, ouvia-se o hino das Forças Armadas, que ecoava entre a Rádio Clube Português e a Emissora Nacional.

Apesar de uma certa tensão, a alegria era maior: “Havia uma grande vontade de mudança.”

José Leitão

A revolução não se fez a dormir, mas foi durante o sono que José Leitão recebeu a notícia de que a liberdade estava a chegar. Na verdade, foi desse sono que o acordaram para lhe dar conta dos desenvolvimentos. Estava a dormir, mas em missão.

“Na altura era militante do Partido Comunista, mas não estava referenciado pela PIDE. Antes do 1 de Maio era habitual prenderem sindicalistas e gente ligada ao partido para evitar manifestações”, conta. Para que isso não acontecesse eram muitos os que dias antes saíam de casa para se esconder noutros lares.

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Um camarada que seguia essa norma foi parar a casa de José Leitão. Chamava-se Libertário, nome apropriado para o que veio a acontecer neste dia.

Eram 7h30 e ouviu alguém bater na porta do quarto: “Ó Zé, acorda que há uma revolução.” A resposta saiu em modo reactivo: “Ó Libertário, vai à merda e deixa-me dormir.” Pensava que era a brincar.

Quando percebeu que não era, seguiu de comboio de Ermesinde para o Porto. Foi ao banco onde trabalhava na altura – o teatro ainda não era uma prioridade – e as portas estavam fechadas. A tarde foi passada em grupo perto da redacção do Comércio do Porto, nos Aliados, para que se pudesse ir sabendo todas as novidades que pudessem chegar.

O dia acabou na PIDE, no Heroísmo, onde foram libertados os que ainda lá estavam. “Já não me recordo se saíram todos naquele dia, mas alguns saíram”, conta.

Jorge Pinto

Na noite de 24 de Abril de 1974 um grupo de clientes habituais estava, como era costume, no Majestic, em Santa Catarina. Fazia parte desse grupo Jorge Pinto, na altura no Teatro Experimental do Porto (TEP), com a peça Woyzeck, do alemão Georg Büchner, em cena. Já tarde, parte do grupo segue para uma sala na mesma rua para bater umas cartas. Não foi o destino do actor, que preferiu ir para casa.

Até ali nada fazia adivinhar o que se ia seguir. Já de manhã, a caminho para o TEP, no rádio do carro apercebeu-se de algum burburinho, mas sem que ficasse claro o que estava a acontecer. É ao passar no Campo 24 de Agosto, quando vê no chão a marca das lagartas de um tanque, que começa a dar-se conta de algo estranho.

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À medida que se aproximava do centro da cidade, reparava que havia algo diferente no comportamento das pessoas. Apesar de todos os sinais, “as pessoas andavam com um ar alegre e não assustado”.

Foi quando chegou às antigas instalações do TEP, onde voltou passado 44 anos, que em conversa com outros actores juntaram as peças. Decidiram cancelar o espectáculo daquela noite e foi para a rua festejar. “De repente, toda a gente queria comunicar alguma coisa. Todos queriam ter uma participação activa, essencialmente humana, nalguma coisa”, recorda.

Ainda guarda um bilhete da peça que naquela noite não foi à cena. Não foi naquela noite, mas foi-o noutras depois e já com o texto integral, sem censura.

Adelaide Teixeira

“Devo a minha vida de actriz ao 25 de Abril”, é assim que Adelaide Teixeira sublinha a importância da Revolução no seu trajecto. Já fazia teatro amador antes, mas após o casamento deixou de frequentar os ensaios.

Aos 30 anos, afastada dos palcos, com três filhos, vivia uma vida “muito dura, muito difícil, cinzenta, destrutiva, apagada, conservadora e tudo o que se pode dizer de negativo”.

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Quando levava dois dos seus filhos à escola de Pereiró, onde também andou, viu uma luz ao fundo do túnel. A escola estava fechada. Estava em curso a Revolução. Tudo mudou daí para a frente.

“Tive três filhos e são o melhor que me aconteceu na vida. Porém, costumo dizer que o 25 de Abril ainda foi melhor do que isso.” Explica: “Com os partos tive muita dor física, para a liberdade outras pessoas lutaram e eu só usufruí desse milagre.”

Foi nessa altura que se emancipou – separou-se, voltou ao teatro e passou as noites a debater política até altas horas lá para os lados da Praça da Liberdade. Metaforicamente, tem uma forma de descrever esta mudança: “Foi o dia mais feliz da minha vida. Vivia numa cave escura sem sol e, de repente, mudei-me para uma casa com janelas a toda a volta, com vista até ao fim do mundo. Gosto muito mais de mim e da vida agora do que gostava naquela altura.” 

Fernando Moreira

Fernando Moreira tinha apenas seis anos quando sem querer foi parar à praça para onde muitos dos portuenses se dirigiram no dia da Revolução dos Cravos. A memória que tem foi forjada com a ajuda do relato da mãe que ao longo dos anos o ajudou a reconstruir os acontecimentos daquele dia. Era muito novo, teme que as imagens que guarda possam ter sido, de certa forma, adulteradas por essa reconstrução.

Nascido no Porto, vivia com os pais em Paredes, de onde são originários. Vinha regularmente à Invicta a consultas médicas por força da sua condição de asmático. Quando não vinha com o pai, chegava com a mãe de camioneta, que parava no antigo centro de camionagem frente à Praça Almeida Garrett, junto aos Paços do Concelho.

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No dia 25 de Abril de 1974 veio numa dessas camionetas. Como de costume, seguiram até ao Bolhão, onde paravam antes de seguir para o consultório que ficava na Rua de Sá da Bandeira. Tinha acabado de passar por uma multidão de gente que já estava na rua. Há uma imagem que ficou gravada. A dada altura recorda-se de ter assistido a um arrufo. Levantavam-se as pedras da calçada, pretas e brancas, para que servissem de arma de arremesso. É essa imagem simbólica que guarda: “Há uma simbologia muito forte nessa troca entre pedras negras e brancas. Uma espécie de confronto entre dois lados.” Considera que o confronto marcou uma viragem de comportamento.  

Esse dia foi assinalado de forma especial em data que não era vulgar para a família. “A minha mãe nasceu a 25 de Abril. Mal sabia que a Revolução ia ser no dia do seu aniversário”, conta.