Tribunal Constitucional chumba normas da lei da gestação de substituição

Juízes consideram o quadro jurídico demasiado aberto, sem definição dos limites do contrato entre os beneficiários e a gestante e declaram inconstitucional a impossibilidade de a gestante de substituição não poder revogar o contrato até à entrega da criança.

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Nuno Ferreira Santos

O Tribunal Constitucional (TC) chumbou várias normas da lei da gestação de substituição, mas protege os contratos já celebrados. Até ao momento o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) autorizou dois casais a recorrerem a este método, mas existem outros sete pedidos em apreciação.

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O Tribunal Constitucional (TC) chumbou várias normas da lei da gestação de substituição, mas protege os contratos já celebrados. Até ao momento o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) autorizou dois casais a recorrerem a este método, mas existem outros sete pedidos em apreciação.

O pedido de fiscalização foi feito no ano passado por vários deputados do CDS e do PSD. Esta terça-feira, o TC emitiu um comunicado onde afirma que a gestação de substituição, "só por si, não viola a dignidade da gestante nem da criança nascida em consequência de tal procedimento nem, tão-pouco, o dever do Estado de protecção da infância". No entanto, considera que alguns aspectos particulares da diploma legal lesam "princípios e direitos fundamentais consagrados na Constituição".

A primeira crítica do TC é relativa à "excessiva indeterminação" da lei no que toca aos limites da autonomia das partes do contrato de gestação de substituição, assim como aos limites às restrições admissíveis dos comportamentos da gestante. Ou seja, os juízes consideram, por unanimidade, que o quadro jurídico é demasiado aberto e permite negociações sobre condições da gravidez que podem ser excessivas.

Por isso, defendem que é necessário densificar e concretizar as regras de conduta dos beneficiários e da gestante de substituição, até para que o CNPMA possa definir os critérios de autorização prévia dos contratos a celebrar entre pais biológicos e a gestante de substituição.

O segundo ponto crítico refere-se ao facto de a gestante não poder revogar o consentimento prestado no contrato em que abdica de direitos fundamentais até à entrega da criança. Para a maioria dos juízes do Palácio Ratton, esta restrição constitui uma "violação do direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e do direito de constituir família".

Em terceiro lugar, é apontada a "insegurança jurídica para o estatuto das pessoas gerada pelo regime da nulidade do contrato de gestação de substituição", ou seja, as crianças geradas ao abrigo destes contratos que sejam anulados posteriormente ficam impedidas de serem reconhecidas juridicamente como filhos dos casais que recorreram à PMA, o mesmo sucedendo com estes quanto ao reconhecimento da sua paternidade.

Neste ponto, que foi votado por unanimidade, critica-se ainda o facto de a lei não diferenciar as causas invocadas para declarar a nulidade do contrato em função do tempo ou da sua gravidade. Os direitos violados são o da identidade pessoal e o princípio da segurança jurídica.

Já quanto à regra do anonimato de dadores e da gestante de substituição, o TC reconhece que tal não afronta a dignidade da pessoa humana, como alegavam os deputados que pediram a fiscalização da lei. No entanto, considerou que a opção legal de estabelecer como regra, "ainda que não absoluta, o anonimato dos dadores" e das gestantes de substituição, neste caso como regra absoluta, "merece censura constitucional, devido a impor uma restrição desnecessária aos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade das pessoas nascidas” através deste método. Ou seja, são as crianças que ficam sem direito a saber quem são os seus progenitores biológicos.

O TC só não dá razão aos peticionários quanto à dispensa da averiguação oficiosa da paternidade. No caso em que a beneficiária é uma mulher "que, independentemente do estado civil e da respectiva orientação sexual, tenha recorrido sozinha às técnicas de PMA", o TC concorda com a dispensa da averiguação oficiosa da paternidade. Isto porque, "mesmo conhecendo a identidade do dador, este não pode ser tido como progenitor da criança nascida". Desta forma considera que não foram violados os parâmetros constitucionais invocados no pedido de fiscalização: o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da igualdade e o direito à identidade pessoal.

Lei mantém-se em vigor, mas não pode ser aplicada

Com esta decisão, a lei mantém-se em vigor, mas a eliminação das normas declaradas inconstitucionais impede a sua aplicação na prática, até que o diploma seja alterado no Parlamento para corrigir os pontos inconstitucionais. O que agora está previsto em regulamentação terá de ser introduzido na lei, obrigando a que esta seja novamente discutida pelos deputados.

No entanto, e porque desde que a lei entrou em vigor, em Agosto de 2016, já foram aprovados dois casos de gestação de substituição pelo CNPMA, o TC limitou os efeitos da sua decisão de modo a salvaguardar as situações em que já se iniciaram o procedimentos terapêuticos, incluindo a recolha de gâmetas e a criação de embriões.

Esta limitação dos efeitos foi decidida por unanimidade, "com fundamento em imperativos de segurança jurídica e em cumprimento do dever do Estado de protecção da infância" .

Eurico Reis, que até Março foi presidente do CNPMA e que é actualmente relator dos processos de autorização de celebração do contrato de gestação de substituição, mostrou-se muito crítico da decisão tomada pelo TC. "A legislação desaparece, a regulamentação desaparece. Podemos derrubar um edifício, derrubando um pilar", apontou, referindo-se ao chumbo das normas respeitantes à gestação de substituição.

Uma das que acredita que poderá mais impacto negativo é a questão relacionada com o tempo de arrependimento da mulher que cede o útero. A lei prevê que a gestante possa arrepender-se até às dez semanas de gestação, prazo idêntico ao da interrupção voluntária da gravidez.

"A balança não pode pender excessivamente para um lado ou para outro. Alargar excessivamente o prazo de arrependimento vai constituir uma forma de não existirem contratos. As dez semanas são um prazo razoável. O que vemos é uma manifestação de motivações não jurídicas. Nenhuma Constituição pode nem deve ir a este nível de detalhe", diz ao PÚBLICO o juiz-desembargador.

Questionado sobre os sete processos que estão em avaliação, Eurico Reis admite que "podem ficar irremediavelmente prejudicados", deixando de existir fundamento jurídico para continuarem.

Para o magistrado, esta decisão do TC "é a interpretação de um grupo de pessoas que projectam as suas concepções ideológicas". "O simples facto de agora se considerar inconstitucional uma coisa que em 2009 foi entendida como claramente constitucional, que é a questão da identidade civil dos dadores, demonstra perfeitamente isto. As decisões dos tribunais são para serem cumpridas, mas como vivemos numa sociedade livre temos o direito de emitir opiniões sobre a decisão dos tribunais."

Para Eurico Reis a quebra do sigilo do dador vai levar ao afastamento dos mesmos. "Vão acabar com os dadores portugueses. Foi o que aconteceu nos EUA e nos países nórdicos quando afastaram o sigilo da identidade. Os dadores não querem ser pais nem mães, querem ajudar outros a serem-no. Não estão a proteger a família, estão a julgar contra a família", aponta.

"Retrocesso vergonhoso"

O responsável considera que esta medida vai obrigar a um aumento da importação de ovócitos e esperma e com isso da despesa. Esta solução já é usada em muitos centros de PMA públicos, dado que o número de dadores nacionais é insuficiente para dar resposta às necessidades, sejam eles casos de mulheres solteiras ou casadas com outras mulheres, casais heterossexuais ou na gestação de substituição quando um dos membros do casal for infértil.

Para Claúdia Vieira, presidente da Associação Portuguesa de Fertilidade, a decisão do TC "é um retrocesso vergonhoso". "Tentámos fazer tudo para sensibilizar os juízes para olharem para a questão de outra forma. Depois da promulgação da lei por parte do Presidente da República não estávamos à espera deste revês."

As reacções dos casais que podiam beneficiar da gestação de substituição fizeram-se logo sentir através das redes sociais. "As pessoas estão em estado de choque, desesperadas e consideram que mais uma vez estão a ser empurradas para a clandestinidade e que lhes foi tirado o direito à família", resume.

Mas há ainda a questão da identidade do dador, cujo impacto pode ser ainda maior, alerta Cláudia Vieira. "Se hoje já é difícil a dádiva, não sei que efeitos [esta decisão] vai ter.”

"Dúvidas tinham razão de ser"

A líder do CDS, Assunção Cristas, mostrou-se satisfeita com a decisão do TC. "Esta é uma decisão politicamente relevante porque mostra que as nossas dúvidas tinham razão de ser", apontou, lembrando que "quando a lei foi publicada o CDS ficou com muitas dúvidas e inquietudes" que motivaram o pedido de fiscalização da constitucionalidade da legislação.

"Procurámos levantar o máximo de dúvidas possíveis para dar a oportunidade ao TC de se pronunciar, sabendo que tem mais tempo para fazer uma análise aprofundada. Achamos que era importante ter essa clarificação, importante que os juízes se pudessem pronunciar com toda a tranquilidade sobre temas tão complexos que tocam na dignidade da pessoa, nos direitos das crianças, no direito das pessoas conhecerem a sua proveniência genética. Hoje o tribunal deu-nos razão", afirma.

Já o BE, que avançou com o processo no Parlamento que veio a dar origem à lei, depois de debatida num grupo de trabalho criado para o efeito, não se quis pronunciar para já sobre o chumbo do TC.