A incrível viagem até ao delta do Okavango
Documentário da National Geographic leva-nos numa emocionante expedição que começa no delta do Okavango, no Botswana, até à nascente do rio Cuito, em Angola, e de volta outra vez. O filme resume uma aventura de quatro meses que nos desperta os sentidos e traz a certeza de que tudo está ligado neste Universo.
Vemos, ouvimos, sentimos e quase cheiramos um lugar onde ainda ninguém tinha chegado antes. O documentário “No Okavango”, produzido pela National Geographic, é sobre uma expedição inédita de um grupo de exploradores até à nascente do rio Cuito, em Angola, que alimenta o maior delta interno do mundo, o delta do Okavango, em Botswana. O filme de mais de uma hora estreou-se este fim-de-semana no Festival de Cinema Tribeca, em Nova Iorque, nos EUA. Dia após dia, a história avança devagar por terra e água. Há riso, choro, pés feridos, dança, silêncio, rugidos e vários barulhos animais, água, muita cor, fogo, sustos, perigo, solidão, muito arroz com feijão e outras peripécias. E, no fim, sobra a vontade de tentar agarrar um pedaço de água numa mão fechada, como faz o inesquecível guia Tumeletso “Water” Setlabosha.
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Vemos, ouvimos, sentimos e quase cheiramos um lugar onde ainda ninguém tinha chegado antes. O documentário “No Okavango”, produzido pela National Geographic, é sobre uma expedição inédita de um grupo de exploradores até à nascente do rio Cuito, em Angola, que alimenta o maior delta interno do mundo, o delta do Okavango, em Botswana. O filme de mais de uma hora estreou-se este fim-de-semana no Festival de Cinema Tribeca, em Nova Iorque, nos EUA. Dia após dia, a história avança devagar por terra e água. Há riso, choro, pés feridos, dança, silêncio, rugidos e vários barulhos animais, água, muita cor, fogo, sustos, perigo, solidão, muito arroz com feijão e outras peripécias. E, no fim, sobra a vontade de tentar agarrar um pedaço de água numa mão fechada, como faz o inesquecível guia Tumeletso “Water” Setlabosha.
No princípio, estamos debaixo de água. Há um crocodilo a agitar a cauda e um elefante submerso que parece cair sobre nós, com as enormes patas redondas na nossa direcção. Depois, vimos à tona. Aliás, a história deste filme constrói-se à volta da água, dentro, fora, nas suas redondezas. O convite para acompanhar a expedição ao Okavango parte de Steve Boyes, ornitólogo que dirige esta “operação de salvamento” da vida selvagem após notar que algo está a mudar no delta.
A mancha azul ramificada que parece a raiz de uma árvore no Botswana vê-se do céu. O delta de Okavango é um oásis de água doce com um deserto à volta. Há menos água e a terra está a secar rapidamente em volta, constatou. Ou seja, cada vez menos água e mais deserto. O investigador sul-africano descruza os braços, abandona a família e o conforto do lar e reúne uma equipa para chegar até à principal fonte que alimenta esta região. A água que chega ali nasce no Norte de Angola, vem no leito do rio Cuito. É preciso chegar até lá.
Assim, o plano é chegar à nascente e descer esta estreita cama de água até ao delta outra vez. Pelo caminho, é preciso ver e registar o que se passa num território onde ninguém quis ir antes. Ouve-se a voz de Steve Boyes em “off” nos primeiros minutos do documentário. Diz que a sociedade moderna vive ou no passado ou no futuro, que estamos desligados uns dos outros, que há poucos momentos na nossa vida que nos trazem até ao presente. Há poucos e raros momentos como o que vai mostrar na próxima uma hora e 33 minutos. “Desde que os humanos surgiram na Terra, 77% de toda a vida selvagem foi destruída – 10% dessa perda ocorreu desde 1990”, avisa uma frase escrita. As imagens, as vozes, os sons, as personagens que estão neste filme fazem com que seja mais do que um documentário. Entramos a bordo desta aventura no Okavango.
O filme começa com o extenuante arranque da viagem que parece ter tudo para ser um fracasso. Por momentos, acredita-se que aquele grupo de cientistas acompanhados por guias não vai conseguir aguentar dias a içar canoas carregadas com centenas de quilos por terra, com cabos de aço presos aos seus corpos como se fossem gado. Há corpos cansados, frases de desânimo, pés e mãos feridas. Uma dura e imprevista prova física. Parece impossível. No ponto de partida da viagem, onde chegaram por jipe, depararam com o sítio alagado onde nasce o rio Cuito. Um bom início num lugar remoto. Mas, depois perdem o rasto ao leito do rio que se dilui por baixo dos seus pés, numa terra que parece esponja, e que só volta a ganhar a forma de um canal de água mais à frente. Muito mais à frente. Para chegar até lá, os exploradores arrastam as canoas durante vários dias pelo chão. Devagar. Após oito horas de esforço contínuo, olham para trás e conseguem ver o sítio onde começaram nesse mesmo dia. Isto durante mais de um mês. “Estamos partidos.”
Obviamente, não desistem. Nem aqui, nem nunca. Nem quando o rio se some debaixo dos seus pés, nem quando surgem as árvores caídas na água presas pelas margens do rio a bloquear a passagem das canoas, nem quando um hipopótamo vira uma das canoas e faz mergulhar os exploradores assustados nas águas, nem quando passam por áreas queimadas que substituíram o verde da floresta por um chão preto, nem quando param no rio, indignados, a observar uma estranha e contínua linha de fogo.
O enigma da terra queimada e do fogo acaba por ser desvendado, mais à frente no documentário. Acontece quando, numa curva do rio, encontram um pequeno grupo de mulheres que vieram pescar. Os cientistas são então guiados até uma pequena aldeia que não recebia qualquer “visita” há dezenas de anos. Conversam. Com a ajuda de Adjany Costa, a bióloga angolana que é a única mulher na expedição e que esteve em Portugal recentemente numa conferência da National Geographic, comunicam. Ficamos a saber que são os homens da aldeia que ateiam fogo à floresta para encurralar os animais e caçar. É a única fonte de proteínas que têm. Mas não é carne que pedem quando são questionados por Adjany Costa. “O que pediriam ao governo se viesse aqui alguém?”, pergunta-lhes a bióloga durante a visita à pequena aldeia. Sem perder tempo, alguém responde: “Óleo, sal, abrir estradas, enfermeiro e um professor.” Por esta ordem.
As filmagens pelo rio abaixo mostram um mundo diferente, puro, duro e selvagem. Arrebatador. Para os que vivem presos na cidade, é difícil acreditar que esta terra pertence ao mesmo planeta. Chegam ao leito do rio quando já passaram 43 minutos do documentário. Aplausos, riso e o salto de fé a ganhar novo impulso. Curva, contracurva, agora é “só" descer o rio. Pelo caminho, contabilizam-se todos os sinais de vida, regista-se a distribuição de abundância de todas as criaturas.
Water, a ponte entre exploradores e natureza
E, pelo caminho, também quase ficamos íntimos dos membros desta equipa. De Steve Boyes, que já foi uma criança magrinha, com problemas digestivos e óculos grossos, que cresceu a ver o mundo através de binóculos, usando (e é ele quem o diz) “a natureza como o seu refúgio”. E ainda parece ser, acrescentamos nós. “Fui explorador toda a vida, talvez isso nasça com as pessoas.” Olhar os pássaros tornou-se um vício. Steve é o motor desta expedição, mas não sem alguns problemas na engrenagem. Estes super-heróis que arriscam a vida para salvar a vida do (e no) planeta Terra não são personagens inventadas para um filme. São humanos. E o documentário produzido e realizado por Neil Gelinas não esconde isso. Vemos, por exemplo, Steve Boyes a emocionar-se quando se apercebe de que está no meio de Angola, num território imenso e deserto, esgotado. A angústia de estar a perder as primeiras palavras do seu filho ganha espaço num corpo exausto. Quando saiu de casa, há já algumas semanas, o filho dizia um ou duas palavras e agora já diz 30. “É algo que nunca vou recuperar.”
Adjany Costa também tem destaque nesta história. As primeiras imagens mostram a bióloga a recordar os primeiros anos de vida em plena guerra civil. Os dias que passou fechada numa casa de banho com quase 20 pessoas da sua família, a dormir por turnos e a sair, a rastejar, só para ir buscar comida. Sobreviveu. A guerra acabou e mudou Angola. “A nossa história diz-nos que só o agora importa. Estamos vivos agora. Consegues fazer dinheiro agora? Podes ter filhos agora? Então faz isso agora”, conta, avisando que “à medida que Angola cresceu, o mesmo aconteceu com a ameaça ao Okavango”.
Na floresta, vemos a mulher, lado a lado com os homens da expedição, a puxar canoas, a mostrar os pés em sangue, a duvidar daquele plano cheio de imprevistos e obstáculos inesperados, a desejar um hambúrguer com batatas fritas perante mais uma refeição de arroz e feijão. Mas também a vemos a sorrir, a festejar as vitórias, deslumbrada com a natureza, entusiasmada com as amostras que recolhe das águas. O projecto, lembra no final, permitiu identificar mais de mil espécies, entre mamíferos, aves, peixes e répteis e “24 novas espécies potencialmente novas para a ciência”.
No entanto, uma das personagens mais marcantes desta viagem é o guia Water, que talvez sobressaia neste documentário porque é uma espécie de braço selvagem que une os exploradores e a natureza. Chamam-lhe Water porque nasceu na água, a meio de uma viagem que a mãe fazia entre duas aldeias. O seu nome é Tumeletso “Water” Setlabosha. Water é o segundo “capítulo” do documentário. Rimos quando Water canta na chegada ao leito do rio Cuito após dias a içar canoas por terra, ou quando dança antes de entrar no delta, de volta a "casa". Deliciamo-nos quando nos mostra como seguir e conversar com um pássaro, ele assobia e o pássaro responde, para que lhe mostre onde está um apetitoso pedaço de mel. E há regras a cumprir neste ritual cúmplice. “É preciso sempre deixar um pouco de mel para o nosso amigo, se não, na próxima vez, ele guia-nos até ao perigo.” Há um código que temos de cumprir na natureza, ensina-nos Water.
No início do filme, o guia exibe, sorridente, o seu neto e jura que viver no delta é “maravilhoso”. “Somos pessoas do rio”. Tudo e todos dependem da água. E, constata, a água está a desaparecer, o delta está a encolher. As aves refugiam-se nas zonas mais saudáveis mas já há sinais de perigo. Aos 14 minutos do documentário surge o primeiro plano triste: uma girafa tombada no chão. Há mais. Vamos ter o cheiro a morte quando Adjany Costa encontra um monte de carcaças de elefantes. Vemos o efeito dos incêndios que cobriram a floresta com um denso e deserto tapete preto, sem sinais de vida.
Mas, apesar dos momentos que revelam as ameaças deste especial lugar remoto, o que mais temos neste filme é cor. Desde o azul-turquesa das águas às penas dos pássaros, passando pelos rugidos dos elefantes. Um cenário inesquecível que acompanha uma longa viagem de quatro meses com um final feliz (com lágrimas). Sim, no fim, quando os exploradores terminam aquela que será a primeira de muitas expedições para salvar o mundo selvagem de Okavango, é difícil conter as lágrimas.
“Todos os átomos do meu corpo mudaram com esta expedição. Tenho 27 anos e encontrei esse lugar a que chamam casa”, diz Adjany Costa. Steve Boyes também mudou: “No final da descida do rio tudo era diferente. Eu era parte da água. Apercebi-me de que tudo estava vivo, tudo. E tudo está ligado. Desde as térmitas, às árvores, animais e plantas. Está tudo ligado. As ligações e a diversidade são os dois pilares que mantêm o nosso mundo.” Já passou uma hora e 26 minutos quando surge o capítulo do “dia final”. No meio do delta do Okavango, Adjany chora, Steve chora. Water ri.