Auditoria não poupou críticas, mas mudanças tardam em se ver
Inspectores da Segurança Social identificaram numerosas irregularidades e queixaram-se de ter sido condicionados. Passados três anos as medidas correctivas anunciadas por Santana Lopes não têm resultados claros
Não são simpáticas as conclusões da auditoria da tutela à Misericórdia de Lisboa. Desde meras irregularidades formais na contratação de bens, serviços e empreitadas até à existência de indícios criminais que foram participados ao Ministério Público há lá de tudo: até acusações de condicionamento do trabalho dos inspectores da IGMTSS. Ainda no decurso da auditoria, a instituição tomou algumas medidas correctivas, mas passados dois há anos há alguns sinais de que a mudança não terá sido a prometida.
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Não são simpáticas as conclusões da auditoria da tutela à Misericórdia de Lisboa. Desde meras irregularidades formais na contratação de bens, serviços e empreitadas até à existência de indícios criminais que foram participados ao Ministério Público há lá de tudo: até acusações de condicionamento do trabalho dos inspectores da IGMTSS. Ainda no decurso da auditoria, a instituição tomou algumas medidas correctivas, mas passados dois há anos há alguns sinais de que a mudança não terá sido a prometida.
A lista de irregularidades detectadas na auditoria aos procedimentos de contratação pública da SCML, entre 2012 e 2014, é longa. Algumas delas, que só agora deverão ter sido comunicadas ao Tribunal de Contas - visto que o próprio relatório indica que a participação será feita “após homologação” -, implicam responsabilidades financeiras para os responsáveis. Caso o tribunal venha a confirmar as infracções, os mesmos terão de repor nos cofres da Misericórdia os valores indevidamente pagos aos fornecedores. Outras determinariam a nulidade dos contratos celebrados, coisa que não sucederá tendo em conta o tempo já decorrido.
Uma amostra exígua
Partindo de uma exígua amostra de 45 contratos - grande parte deles referenciados nos vários artigos do PÚBLICO que revelaram, em 2014, parte destas situações -, num total próximo dos 1100, os auditores concluíram o seguinte: muitos dos contratos celebrados por ajuste directo deveriam ter sido objecto de concurso público; foram feitas adjudicações a quem não reunia os requisitos legais para ser contratado; foram admitidas propostas de diferentes empresas, para um mesmo fornecimento, assinadas pela mesma pessoa; foram feitos pagamentos adiantados que a lei não permitia; a esmagadora maioria dos contratos foram ilegalmente pagos antes de serem sujeitos a publicação obrigatória no portal Base; o sistema de controlo interno revelou-se insuficiente, permitindo que fossem contratadas empresas legalmente impedidas de o ser; e a contratação excluída das regras da contratação pública, por vezes sem fundamento legal, passou de 30 contratos em 2012 para 140 em 2014. Além disso não havia instrumentos de gestão e apoio à decisão, relatórios periódicos de avaliação e monitorização, ferramentas de agregação e consolidação de informação, nem plano de prevenção de riscos de corrupção.
Fora das conclusões dos auditores ficou, porém, a existência revelada pelo PÚBLICO de uma teia de empresas controladas pelas mesmas pessoas, entre as quais Fernando Catarino, um conhecido militante do PSD de Lisboa, que eram sistematicamente convidadas a fornecer os mais variados serviços à instituição, sobretudo na área da saúde. Em muitos casos, as únicas firmas convidadas a apresentar propostas de preços pertenciam a esse grupo, sendo-lhes adjudicada uma enorme fatia dos contratos, em prejuízo das regras da concorrência.
Ainda que tais factos sejam omitidas no relatório da auditoria por impedimento legal, os mesmos foram reportados ao Ministério Público ainda no decurso da auditoria. No final de 2016, dando continuidade à investigação que já tinha em curso, a PJ realizou buscas na sede da Misericórdia, além de nove buscas domiciliárias, uma delas à residência de Helena Lopes da Costa, administradora da SCML e ex-deputada do PSD, e duas em escritórios de advogados. De acordo com a Procuradoria-Geral da República, este inquérito judicial continua em curso, não tem arguidos constituídos e está em segredo de justiça.
As queixas dos auditores
Reportando-se à execução da auditoria no terreno, o relatório indica que ela “foi condicionada pela SCML, uma vez que os tempos de disponibilização da informação solicitada não se mostraram razoáveis, dificultando a articulação com os diversos intervenientes nas matérias auditadas e a obtenção dos necessários esclarecimentos”. Em concreto, adianta que logo no início do seu trabalho, no princípio de 2015, os auditores tiveram de esperar cinco meses para lhes ser entregue a lista de contratos celebrados entre 2012 e 2014. Quanto ao tempo médio de disponibilização dos processos de contratação solicitados, ele foi de 28 dias.
Por outro lado, “os processos entregues encontravam-se deficientemente organizados e sem elementos essenciais para a sua análise”. Relevante é também o facto de não ter sido facultado aos inspectores o acesso à plataforma de contratação pública electrónica que suportou os processos de contratação. “Em alternativa, a SCML optou por facultar documentos por si extraídos da referida plataforma, facto que não permitiu mitigar a ausência de pleno acesso aos registos informáticos”, lê-se no relatório. Finalmente, os responsáveis pela auditoria afirmam que “a SCML denotou grandes dificuldades em promover os necessários esclarecimentos, o que teve consequências ao nível do estudo e análise das matérias auditadas”.
No exercício do contraditório, Santana Lopes, o então Provedor da Santa Casa, explicou as condicionantes apontadas com o facto de os serviços de aprovisionamento da instituição terem sofrido, no final de 2014, “uma profunda reestruturação, com o objectivo de aperfeiçoar os mecanismos de controlo interno dos procedimentos aquisitivos, na óptica da transparência e responsabilização de cada departamento e serviço”. Neste contexto, alegou, “são compreensíveis e legítimas as dificuldades sentidas pela SCML em prestar todos os elementos solicitados pela equipa de auditoria”.
A reestruturação a que Santana Lopes se refere foi decidida logo após a publicação das notícias do PÚBLICO de Novembro de 2014 e decorreu em paralelo com um inquérito interno aos factos aí revelados. Em consequência desse inquérito foram instaurados cinco processos disciplinares a funcionários e dirigentes dos serviços, mas todos eles foram arquivados por não terem sido dados como provados factos passíveis de sanção.
O que é que mudou na SCML?
No dia 23 de Janeiro deste ano, a administração da Misericórdia, agora presidida pelo socialista Edmundo Martinho, foi notificada do relatório final da auditoria homologado por Vieira da Silva e em Março comunicou à IGMTSS, como a lei manda, as medidas tomadas para cumprir as 13 recomendações constantes do documento. No entanto, segundo a assessoria de imprensa da instituição, essas recomendações “vão de encontro a várias medidas que já vinham sendo implementadas desde o final de 2014, início de 2015, no sentido de uma maior transparência e controlo dos processos aquisitivos”.
A consulta do portal Base não permite, contudo, retirar grandes sinais de mudança na relação entre o número de adjudicações por ajuste directo e por concurso público feitas pela instituição. Sucede que um dos grandes objectivos das medidas lançadas por Santana Lopes residia na redução do número de ajustes directos e no recurso sistemático à consulta a pelo menos três entidades quando os ajustes directos se tornassem necessários.
Mas o que os números mostram é que se os ajustes directos foram 225 em 2012, 342 em 2013, 404 em 2014 e o seu número baixou para 316 em 2015, o que eles mostram também é que nos dois anos seguintes ele subiu para 424 e 443. Quanto aos concursos públicos, a evolução parece mais favorável, com 26, 116 e 24 nos três anos a que respeita a auditoria e 37, 176 e 149 nos anos seguintes.
Na onda de transparência que se seguiu à auditoria, a administração da SCML adoptou em Agosto de 2016 um Código de Conduta para os seus fornecedores, cuja aceitação é definida como um requisito obrigatório para a celebração de qualquer contrato. O documento estabelece um conjunto de “normas não negociáveis” em matéria de ética, transparência e integridade e exige dos fornecedores a adopção de “boas práticas em matéria de combate ao suborno, à corrupção, ao branqueamento de capitais à extorsão e afins”. O seu incumprimento pode mesmo levar à “suspensão da relação contratual com o fornecedor”, além de participação às autoridades, se for caso disso.
Como anexo a esse documento, a Misericórdia aprovou na altura uma “minuta de declaração de compromisso do fornecedor com o Código de Conduta dos fornecedores da SCML”, a subscrever pelos mesmos. Nos 32 contratos celebrados já este ano na sequência de concursos públicos lançados pela instituição, o PÚBLICO encontrou apenas uma dessas declarações. Num segundo caso, há uma referência ao compromisso de aceitação do Código do Conduta no próprio clausulado do contrato. Nos restantes 30 não há vestígios de tal requisito obrigatório.
Uma última constatação: nos cerca de 30 ajustes directos celebrados no primeiro trimestre deste ano e publicados no portal base, apenas cinco referem o facto de ter sido convidada mais do que uma empresa a apresentar propostas.