“A realidade da Ryanair começou de facto a ser dissecada”

Luciana Passo, presidente do Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil, diz ser bastante provável que do encontro desta terça-feira com outros sindicatos saia a convocatória para uma greve de âmbito europeu.

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Luciana Passo, presidente do Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil Rui Gaudêncio

Luciana Passo é presidente do Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC) desde Dezembro de 2015 e foi um dos rostos da greve da Ryanair em Portugal nos dias 29 de Março, 1 e 4 de Abril. Para esta dirigente sindical, que trabalha no sector há 30 anos (é supervisora de cabine na TAP), é preciso mudar a forma como a transportadora aérea low cost estabelece as relações laborais com o seus trabalhadores, reconhecendo diversos aspectos fundamentais da lei portuguesa em áreas como a parentalidade.

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Luciana Passo é presidente do Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC) desde Dezembro de 2015 e foi um dos rostos da greve da Ryanair em Portugal nos dias 29 de Março, 1 e 4 de Abril. Para esta dirigente sindical, que trabalha no sector há 30 anos (é supervisora de cabine na TAP), é preciso mudar a forma como a transportadora aérea low cost estabelece as relações laborais com o seus trabalhadores, reconhecendo diversos aspectos fundamentais da lei portuguesa em áreas como a parentalidade.

Esta segunda-feira, há um encontro com responsáveis da Ryanair no qual Luciana Passo está presente (um passo no processo negocial, dado após a entrevista), pedida pela empresa e que acontece 24 horas antes de uma reunião com diversos sindicatos congéneres europeus, da qual pode sair a convocação de uma greve em vários países em simultâneo.

Para a presidente do SNPVAC, que esteve afecto à UGT até Março de 2015 (hoje não está ligado a nenhuma central sindical) e que conta com cerca de 3200 associados (perto de 230 da Ryanair), há “perseguições” e “intimidações” na empresa por causa de questões como as vendas a bordo. A Ryanair, diz, “tem de aprender a respeitar a lei dos outros, e cada país também tem de fazer com que a Ryanair os respeite”.

Numa carta recente aos trabalhadores, datada de 27 de Março, a Ryanair disse reconhecer o sindicato a que preside e admitiu incorporar a lei portuguesa nos contratos existentes, bem como avançar para um acordo colectivo de trabalho. Porque é que as negociações não avançaram?
Não houve possibilidade de qualquer negociação, porque a Ryanair diz que reconhece o sindicato, mas isso não é verdade. O que a Ryanair reconhece, dentro de qualquer sindicato, é uma espécie de comissão que seja constituída apenas por trabalhadores da Ryanair. Os tripulantes que trabalham na Ryanair têm três tipos de contrato: há os contratos da Ryanair, e depois os da Crewlink e os da Workforce. E só querem os da Ryanair na comissão que irá discutirá com eles.

Que peso têm os trabalhadores contratados directamente pela Ryanair face ao total dos que trabalham para a empresa?
São mais os da Crewlink e os da Workforce do que propriamente os da Ryanair.

O que querem é a formação de uma comissão de trabalhadores?
Não é bem uma comissão…

Um comité?
Sim, um comité.

Mas em articulação com o sindicato.
Não, porque [como eles dizem] somos competidores. Somos representantes das empresas concorrentes, da TAP, da SATA e da Easyjet. Somos aqueles que não podem falar com eles, porque vamos ficar a saber todos os seus segredos.

A empresa, como refere, diz que a direcção do sindicato é formada por pessoas que trabalham na concorrência. Acha que é uma justificação como outra qualquer para não reconhecer o sindicato?
É a justificação deles. Tola. Este sindicato é o único em Portugal que representa tripulantes de cabine. Não existe outro. Logicamente que, quando tivemos eleições, tentámos que houvesse uma abrangência grande na direcção, que tem nove elementos. Há directores da TAP, da SATA, da Portugália, da Easyjet. Com quatro associados da Ryanair, não podíamos ter ninguém da empresa [na direcção]. Nas próximas eleições, com a representatividade que a Ryanair tem neste momento, haverá com certeza um membro da direcção ligado à empresa nessa altura. Neste momento, é uma impossibilidade. Mas há delegados sindicais Ryanair, essa eleição já foi feita.

Tem havido um crescendo de associados ligados à Ryanair?
Sim.

Porquê? Pela forma como se têm posicionado?
Já tínhamos muitos associados Ryanair quando avançámos para uma primeira assembleia geral, pedida, aliás, pelos associados das várias bases da Ryanair em Portugal, porque queriam uma solução para os seus problemas. Foi por isso que, de modo próprio, se vieram associar, e foi por isso que houve, já com muitos associados, eleições para delegados sindicais. E foi através dos delegados sindicais e a pedido expresso dos tripulantes da Ryanair que se fez uma assembleia geral, em que a decisão foi a de avançar para uma greve [realizada a 29 de Março, 1 e 4 de Abril].

O que é que obsta à existência desse tal comité?
A Ryanair não pode chegar a um país como o nosso, ou a outro qualquer, e dizer com quem é que negoceia, a forma como o faz, onde é que vai negociar e o que é que vai negociar. Quem é que a Ryanair pensa que é? Quem é que pensa que nós somos? Que país é este, que até tem leis, mas é a Ryanair quem manda? Nós somos um sindicato, fomos eleitos, temos legitimidade. Está a decorrer neste momento o acordo de empresa da TAP, o acordo de empresa da Easyjet e estamos em conversações com a Portugália para ver se fazemos alterações ao acordo de empresa. Nós defendemos tripulantes, e é o interesse dos tripulantes e associados que está aqui em causa. Rigorosamente mais nada. Portanto, a Ryanair, tal como os outros, tem de aceitar que uma direcção legitimamente eleita seja a representante daqueles que a elegeram. Os associados da Ryanair vieram para cá sabendo muito bem como funcionamos e que somos nós que os representamos. E contam com essa defesa.  

Em Dezembro, quando se estavam a reunir com os grupos parlamentares para falar da situação dos tripulantes de cabine que trabalham para a Ryanair, os pilotos ligados à empresa, nomeadamente os portugueses, ameaçaram com uma greve. Depois, a Ryanair disse reconhecer os sindicatos dos pilotos, e a greve foi desconvocada. Há aqui alguma diferença de critérios?
Os pilotos do SPAC [Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil] que foram a Dublin e que se reuniram com a Ryanair eram pilotos da Ryanair. Isso é uma questão do SPAC. Devo dizer que nem sequer conheço os estatutos do SPAC, nem o que é que eles fizeram para enviarem apenas pilotos Ryanair.

Quer dizer que é um tipo de estratégia que o vosso sindicato não irá desenvolver?
Eu queria perceber qual é a dificuldade que a Ryanair tem… porque nós nunca dissemos que não levaríamos os advogados, naturalmente, e os delegados sindicais que representam os associados e os tripulantes Ryanair. Nunca dissemos o contrário. Qual é a dificuldade que eles têm em receber alguém – nem que tenha, por absurdo, vamos supor, o estatuto de observador – da direcção do sindicato? É a direcção do sindicato que vincula, não são os delegados sindicais. Não vamos ultrapassar estatutos nem competências. E não é com certeza a Ryanair que nos vai ensinar a funcionar e imiscuir-se nos nossos estatutos.

Porque é que acha que, como referiu há pouco, a Ryanair põe de parte das negociações a Crewlink e a Workforce?
Não faço a menor ideia. São empresas prestadoras de serviços da Ryanair. Aliás, se lhe mostrar a correspondência que recebemos da Ryanair, da Crewlink e da Workforce, é toda igual, não muda nem uma vírgula. Mas essa é uma pergunta para a Ryanair: porque é que eles não reconhecem as empresas que têm?

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Empresa tem quatro bases em Portugal REUTERS/Andrew Yates

Qual é o principal problema laboral na Ryanair e o choque com a lei portuguesa?
É o não reconhecimento de direitos imperativos da lei portuguesa, nomeadamente aqueles que estabelecemos como os mais urgentes de ter resolução em relação à parentalidade – porque não reconhecem a parentalidade, e cada vez mais Portugal está a trabalhar nos direitos da parentalidade.

Mas refere-se exactamente a quê?
Um tripulante é pai e tem direito a xis dias em casa, obrigatórios e depois facultativos...

Qual é a parte que está aqui em causa?
É toda, basicamente, porque a lei na Irlanda é diferente, apesar de dizerem que o período é maior. Nós nunca exigimos a lei irlandesa nem exigimos só a lei portuguesa. O que exigimos, o que pedimos, é que os trabalhadores a funcionar em Portugal, nas bases Ryanair, tenham direito a essa legislação.

Há aqui um problema complexo entre a lei portuguesa e a existência de contratos ao abrigo da lei de outro país europeu, como previsto, aliás, na Convenção de Roma? Isso causa dificuldades?
Não especialmente, até por causa da decisão que foi conhecida em Setembro do ano passado… e a Convenção de Roma também não diz que é o contrato do país só. A Ryanair baralha um pouco as coisas no modo como as veicula. O que de facto importa é a base a que o trabalhador está afecto.

Foi o próprio ministro do Trabalho, Vieira da Silva, quem apelidou este quadro de complexo.
É um quadro complexo. Eu não sou jurista, nem me vou pôr a dissecar a lei irlandesa e a lei portuguesa. Mas houve uma decisão do Supremo Tribunal da União Europeia, em Setembro de 2017, que disse que a lei do país da base de afectação, ou seja, onde um trabalhador inicia e termina habitualmente o seu trabalho, é aquela que deve ser aplicada. [Mas] isto não é simples, de facto, nem linear. De qualquer maneira, a tentativa de aproximação à Ryanair é: vamos estabelecer qual é a legislação aplicável, quais são os direitos e o que é que os tripulantes pretendem.

Porque é que a Ryanair não está disposta a aceitar esses caminhos de negociação?
Porque diz que é uma empresa irlandesa, que funciona sob a lei irlandesa e que tem contratos na Irlanda.

Quais são os vossos principais objectivos neste processo negocial?
Que de facto a lei portuguesa, naquilo que é imperativa, seja reconhecida aos trabalhadores que operam em Portugal; que não haja esta perseguição sistemática e reiterada aos tripulantes que não cumprem os objectivos de vendas [a bordo], porque isso não pode acontecer. A Ryanair chama-os a Dublin quando vendem pouco. Há ameaças de despromoção e de mudança de base, porque não se atingiram os objectivos de vendas.

Nos dias da greve houve mesmo casos de substituição de grevistas por trabalhadores de bases de outros países?
Claro que houve. E a ACT [Autoridade para as Condições do Trabalho], que estava nos aeroportos, verificou isso mesmo.

Qual a expectativa face ao resultado da inspecção da ACT?
Espero que actuem vigorosamente, porque se a lei portuguesa diz que não pode haver substituição de grevistas, mais uma vez não pode vir uma empresa dizer: “Não, não, são todos meus funcionários, troco-os de base e está feito.” Vamos supor uma greve no Continente em Lisboa. A Sonae vai mandar quem trabalha no Porto para substituir os de Lisboa? Tudo se permite?

A Ryanair falou de “falsas alegações de violação da lei” por altura da greve e admitiu processar o sindicato. Foi dado algum passo nesse sentido?
Absolutamente nenhum.

Acha que foi apenas para tentar intimidar?
Se foi, não tiveram grande sorte, porque, tal como eu já referi, acho muito boa ideia irmos para tribunal.

Porquê?
Porque em tribunal pode-se mostrar e dissecar tudo, desde os contratos aos emails, às cartas, às perseguições, às intimidações, aos atropelos. Querem ir para tribunal, teremos todo o gosto, porque não dissemos nada que não fosse sustentado.

Também terá oportunidade de falar disso no Parlamento. Já foi chamada para a audiência?
Não, ainda não. Sei que vai existir.

Foi uma batalha ganha pelo sindicato o facto de levar o assunto para o Parlamento?
Acho que é uma batalha ganha pelos tripulantes da Ryanair, sim, porque pelo menos é agora do domínio público o que a Ryanair faz com os tripulantes de cabine. E não é em Portugal, é em todo o lado. Durante a greve estiveram cá a presidente de um sindicato espanhol, na base do Porto, e uma representante do sindicato italiano em Faro, além de um representante da EurECCA, organização europeia de tripulantes de cabine. E estamos todos de acordo que isto não pode continuar. A realidade da Ryanair começou de facto a ser dissecada. Tem de aprender a respeitar os outros nos seus próprios países, a respeitar a lei dos outros, e cada país também tem de fazer com que a Ryanair os respeite.

Há quanto tempo estão a preparar a reunião com outros sindicatos europeus, congéneres do vosso, marcada para esta terça-feira?
Começou a ser preparada durante a greve. Aliás, já tínhamos falado, e depois da greve começou a ser preparada com mais intensidade até por causa da substituição de grevistas.

São 15 sindicatos, de oito países, a que se junta a EurECCA….
Eu faço parte da associação e represento-a.

Vai mesmo haver uma greve de âmbito europeu na sequência dessa reunião?
Veremos. Não me quero adiantar ao que vão ser as conclusões da reunião. Mas pode acontecer, sim.

O que é que pode evitar a convocação de uma greve?
A Ryanair ir falando com os sindicatos, com as associações, e chegarmos todos a um mesmo entendimento, que é simples: o de que a lei de cada país é aplicada naquilo que os tripulantes entendem que deve ser e consoante os contratos que têm.

Assim, parece ser inevitável a greve. Até esta terça há pouco tempo…
A greve também não é marcada de um dia para o outro…

Mas é natural que seja convocada.
Sim, se a Ryanair continuar com esta postura com todos os tripulantes. Ainda por cima, no período pós-greve, já está a chamar tripulantes que aderiram à greve a despromovê-los, a fazer perseguições disciplinares, com ameaças de despedimento, com trocas de bases... está tudo igual, para pior.