Descentralização, desconcentração e deslocalização
É saudável disseminar por todas as cidades do país novos serviços ou organismos que estejam para ser criados; porém, transferir para fora de Lisboa os que já aqui estão há anos ou décadas é uma decisão bem mais difícil.
A propósito da anunciada, e depois adiada, transferência do “Infarmed” de Lisboa para o Porto, numerosos políticos, comentadores e jornalistas começaram a falar e a escrever, com grande entusiasmo, sobre a necessidade de combater a hipertrofia de Lisboa, disseminando por outras cidades da “província” muitos dos serviços públicos sediados na capital do país. O objetivo é louvável, mas só pode ser prosseguido gradualmente e na base de estudos prévios completos:
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A propósito da anunciada, e depois adiada, transferência do “Infarmed” de Lisboa para o Porto, numerosos políticos, comentadores e jornalistas começaram a falar e a escrever, com grande entusiasmo, sobre a necessidade de combater a hipertrofia de Lisboa, disseminando por outras cidades da “província” muitos dos serviços públicos sediados na capital do país. O objetivo é louvável, mas só pode ser prosseguido gradualmente e na base de estudos prévios completos:
1. Em primeiro lugar, fala-se muito na “descentralização”, aliás prevista e imposta na Constituição. Já houve, desde 1976, vários pacotes de legislação descentralizadora – a favor das Regiões Autónomas e das autarquias locais, sobretudo dos municípios. As freguesias têm sido um tanto ou quanto esquecidas, mas, pela sua enorme importância administrativa e social, deviam também ser contempladas. O PS e o PSD já chegaram a acordo sobre um novo avanço na descentralização municipal, o que é muito positivo. Também seria descentralizadora a “regionalização” do Continente, mas infelizmente nenhum governo a tem mandado estudar a sério e, sem isso, será impossível avançar, mesmo que haja a necessária vontade política.
2. A “desconcentração” é outra coisa muito diferente: já não se trata de transferir poderes e recursos do Estado para as autarquias locais, mas sim de aumentar, em doses razoáveis, as competências e os meios de atuação dos serviços locais ou periféricos do próprio Estado (CCDR’s, circunscrições agrícolas, direções distritais e repartições concelhias de ministérios, etc.), passando um maior número de poderes de decisão para os órgãos locais de cada hierarquia. Aqui, a situação dos preparativos é inversa da da regionalização: há vários estudos feitos sobre o assunto, e até uma excelente tese de doutoramento; o que falta é vontade política, porque os Ministros e diretores-gerais não querem abrir mão de quaisquer competências em favor de subalternos seus, quantas vezes situados em melhores condições para decidir. Quase todos os países europeus têm aprovado, nos últimos anos, programas de desconcentração: nós continuamos parados, sem os ganhos de eficiência que podíamos obter.
3. Terceira figura, diferente das duas anteriores, é a que tenho designado por “deslocalização” de serviços públicos, isto é, a transferência, decidida por decreto-lei, de determinados serviços e organismos sediados em Lisboa para outros pontos do território nacional, a fim de valorizar e desenvolver o interior. Por exemplo: deslocar o “Infarmed” para o Porto, um Supremo Tribunal para Coimbra, um laboratório nacional de engenharia para Aveiro, uma escola superior de agronomia para Santarém ou para Évora, etc. Esta ideia é simpática, porque ajudará, a partir de um certo número de colocações fora de Lisboa, a desenvolver as regiões e cidades do interior do país. Mas é uma ideia cuja concretização depende, necessariamente, de várias condições:
a) primeiro, é preciso que se trate de organismos autónomos, e não de serviços de apoio direto ao Governo, daqueles que têm de despachar várias vezes por semana com o respetivo Ministro ou Secretário de Estado. O diretor-geral da Política Externa, que todos os dias tem de falar com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, não pode estar instalado no Porto ou em Faro, como é óbvio;
b) é saudável disseminar por todas as cidades do país novos serviços ou organismos que estejam para ser criados; porém, transferir para fora de Lisboa os que já aqui estão há anos ou décadas é uma decisão bem mais difícil. Abandonam-se boas instalações para ter de construir ou adaptar outras? Qual o custo orçamental? No novo local, há alojamento para todos os funcionários que vão ter de mudar de residência? E eles aceitam? Terá de haver negociações sindicais e individuais: serão bem sucedidas? Tem o Estado, mesmo por decreto-lei, o direito de impor a centenas de funcionários públicos, que por hipótese residam há anos ou há décadas em Lisboa ou arredores, que vão viver para longe daqui? Se não tiver esse direito (como me inclino a pensar que não tem, pois isso equivaleria ao exercício do “poder de fixar residência” a funcionários cujas carreiras não prevêem mudanças de local de trabalho), e se o Governo insistir na deslocalização do serviço, há verbas orçamentais para reafectar a outros departamentos quem ficar em Lisboa e, além disso, para contratar outros tantos para residirem no local da nova sede? E há escolas para os filhos dos funcionários recolocados? Tudo isto são questões muito importantes, que não se compadecem com decisões tomadas à pressa e sem a devida ponderação dos interesses legítimos em causa.
A concluir, voltemos ao caso do “Infarmed”: se este organismo contivesse apenas um ou mais laboratórios de verificação e controlo de novos medicamentos a autorizar, ou a destruição de medicamentos não autorizados que estejam à venda, ou a fiscalização do fornecimento de medicamentos nocivos à saúde pública, parece claro que tal organismo podia perfeitamente funcionar fora de Lisboa. Porém, vê-se da sua lei orgânica que o “Infarmed” é um dos serviços centrais de apoio direto ao Ministro da Saúde, em matérias como “formulação das políticas de medicamentos”, elaboração de regulamentos com vista à boa execução das leis do setor, desempenho de funções de regulação das atividades de produção, distribuição e comercialização de medicamentos de uso humano, etc., tudo isto feito sob a superintendência e tutela permanente do Ministro da Saúde. Não parece, pois, que se trate de um organismo público que possa estar situado fora de Lisboa. Deverá mesmo (se possível) estar instalado, na parte em que funciona como órgão de “staff” do Ministro, no edifício principal do ministério, para que os seus dirigentes possam ser chamados, a qualquer hora do dia, ao gabinete do Ministro, ou de um dos respetivos Secretários de Estado. Se surge um problema grave e urgente, o Ministro vai ficar horas à espera até que o presidente do instituto apanhe um avião para Lisboa? Seria um perfeito absurdo. Isto não quer dizer, é claro, que o Porto não deva ser contemplado – e deve – no tão necessário programa de deslocalização de serviços públicos. Trata-se de uma matéria que não dispensa estudo, planeamento e intensas negociações. Convém ter isso sempre presente.