“As ondas no Pacífico Sul não têm travões e andam às voltas”

O velejador português António Fontes recorda John Fisher, vítima mortal na sequência de uma queda ao mar durante a Volvo Ocean Race, como “um pai”. “Nunca apanhei nada tão duro”, revela, acerca da 7.ª etapa.

Foto
DR

A sétima etapa da Volvo Ocean Race (VOR) ficará para a história como uma das mais duras de sempre em competições de vela e pelo incidente que vitimou John Fisher, da Scallywag. O português António Fontes, colega de equipa do velejador inglês, descreve ao PÚBLICO como foram vividos a bordo os dramáticos momentos após a queda de Fisher ao mar, depois de o VO65 sofrer uma “cambadela chinesa”, movimento em que ocorre, por acção do mar ou do vento, uma rápida rotação de cerca de 180 graus da retranca, em torno do mastro, fazendo o veleiro inesperadamente mudar de direcção.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A sétima etapa da Volvo Ocean Race (VOR) ficará para a história como uma das mais duras de sempre em competições de vela e pelo incidente que vitimou John Fisher, da Scallywag. O português António Fontes, colega de equipa do velejador inglês, descreve ao PÚBLICO como foram vividos a bordo os dramáticos momentos após a queda de Fisher ao mar, depois de o VO65 sofrer uma “cambadela chinesa”, movimento em que ocorre, por acção do mar ou do vento, uma rápida rotação de cerca de 180 graus da retranca, em torno do mastro, fazendo o veleiro inesperadamente mudar de direcção.

Quando ocorreu o incidente com John Fisher estava no convés? Assistiu à queda?
O John tinha-me acordado 20 minutos antes e eu estava a acabar de me vestir. No momento em que aconteceu a ‘cambadela chinesa’, estava a calçar as luvas e a preparar-me para subir ao convés.

Percebeu imediatamente que o resgate seria quase impossível?
Nós estávamos numa posição difícil. Estávamos a tentar salvar o barco, mas o primeiro pensamento foi baixar as velas e tentar chegar ao local da queda num instante. Só que não nos apercebemos logo que estava vento de 40 nós e que seria muito difícil fazer a manobra… No início pensávamos que seria apenas baixar as velas e ir buscá-lo.

Tem muita experiência de vela solitária. Esse conhecimento ajudou-o a discernir sobre o que fazer naquele momento?
Penso que sim. Naquela situação é preciso ter sangue frio e perceber o que é que vai ajudar a sair dali. Há uma espécie de protocolo com o que devemos fazer numa situação de ‘cambadela chinesa’, mas acabámos por descurá-lo. O protocolo diz que devemos sair a navegar e o que nós queríamos naquele caso não era navegar, mas voltar para trás. Começámos o processo do protocolo e depois parámos para baixar tudo e voltar.

Como foram as horas em que o procuraram no mar?
Foi bastante tempo. O mar estava muito grande e estava muito vento. Estivemos horas e horas com o maior número possível de olhos fora do barco. Não olhei para o relógio, mas sei que foi bastante tempo.

Compreendeu a decisão de abandonar a procura?
Já tínhamos estado no local do acidente e dado 30 voltas naquela zona. Já não havia muito a fazer…

No relatório divulgado pela Scallywag, é referido que o John Fish foi projectado para o mar no momento da “cambadela chinesa”. Pode explicar o que aconteceu?
Estávamos muito arribados e batemos mal na onda. Neste caso, a proa foi puxada para sotavento e a retranca cambou sozinha. Nesse momento, a escota também passou e apanhou o John, atirando-o para dentro de água.

Nas condições em que o barco se encontrava, a escota é como uma pedra…
Sim. Passou-se o mesmo quando parti o braço. Bati num cabo, mais nada. Só que o cabo, com muita tensão, era pedra.

Como irá recordar o John Fish?
Uma pessoa muito altruísta. Na nossa equipa, era como se fosse o nosso pai. Estava sempre a tomar conta de todos e, curiosamente, era o responsável pela segurança no barco. Era também o médico a bordo e estava sempre preocupado com a saúde de todos. Foi ele que colocou o gesso no meu braço quando o parti.

Como antevê a 8.ª etapa? Será difícil voltar ao barco?
Sim, vai faltar alguém. Ainda não sabemos qual a data da chegada do barco, mas teremos que sair o mais rapidamente possível.

Quase todos os velejadores têm referido que esta foi a etapa mais difícil que alguma vez tiveram. Também ficou surpreendido pelas dificuldades encontradas no Pacífico Sul?
Os últimos dias antes do acidente foram mesmo muito duros. O mar estava muito grande e estava muito vento. Como estávamos atrás na frota, tentámos recuperar. Ninguém aguentava mais do que meia hora ao leme. Nunca apanhei nada tão duro. As ondas ali não têm travões e andam às voltas.

O António é casado com a velejadora olímpica Mariana Lobato. Nestes momentos, ter alguém tão próximo, que conhece os perigos do mar, é uma vantagem ou uma desvantagem?
É uma vantagem porque basta eu enviar uma mensagem, como enviei logo a seguir a dizer que estava bem, e ela já sabe que estava mesmo bem. Se fosse outra pessoa, podia não entender tão bem o ‘está tudo bem’. Por outro lado, ela sabe o que significa um incidente de ‘man overboard’, naquelas águas, com aquelas temperaturas.

A Mariana Lobato faz parte da tripulação que está a fazer o transporte do Scallywag do Chile até Itajaí. Não há registo de um casal participar em simultâneo numa prova como a VOR. É uma ambição dos dois?
Há sempre essa hipótese, mas não estamos a trabalhar para isso. A decisão também não será só nossa e seria mau para o nosso filho (risos). Mas era engraçado. Temos muito a aprender um com o outro.

Em seis etapas, cinco equipas já venceram uma regata e uma das que não ganhou foi a Dongfeng, que lidera a classificação geral. É uma prova da competitividade da VOR?
É um campeonato, não é um sprint. Na última edição a Dongfeng também não ganhava etapas, mas andava sempre lá na frente. Acabaram por ter azar com o mastro partido. O que interessa é a regularidade e não partir nada de importante.

A sua formação na vela é francófona, que é diferente da anglo-saxónica. Como é que se reflecte essa diferente formação numa tripulação de uma prova como a VOR?
São dois tipos de vela bastante diferentes, mas não é fácil explicar as diferenças. A vela francesa é mais experiente. Passam muitas horas no mar, em offshore, e têm muitas regatas em dupla ou em solitário. Os anglo-saxónicos velejam mais em equipa. Os franceses fazem as coisas mais em cima do joelho, mas andam lá mais horas e mais tempo. Não foi com espanto que vi o Groupama ganhar a VOR logo na primeira participação deles. E o Dongfeng só não ganhou porque partiu o mastro. Eles sabem puxar mais pelo barco do que os ingleses, que arriscam menos. Não estou a ver um inglês bater o recorde da volta ao mundo, como o François Gabart bateu.

O que se segue depois da VOR? Qual a competição em que gostava de participar?
Faço-me essa pergunta várias vezes. Após tantos anos com o sonho da Mini Transat e da VOR, que consegui concretizar, não sei o que se segue. As portas abriram-se mais, mas depende. Uma Taça América seria interessante, mas isso não quer dizer que seja o meu objectivo imediato.