“Muitas vezes quem chegava primeiro eram os jornalistas, quando as pessoas queriam os bombeiros”
O PÚBLICO conversou com Patrícia de Melo Moreira, a fotojornalista que neste sábado venceu o grande prémio do Estação Imagem. Verão Negro foi o nome que deu ao portfolio que resultou do trabalho no terreno, no meio dos incêndios do Verão passado.
17 de Junho de 2017. Patrícia de Melo Moreira tinha estado a fotografar a Marcha do Orgulho LGBT em Lisboa quando, ao fim do dia, decidiu que ia subir com os colegas para Pedrógão. O número de mortos no incêndio ia já nos 24 e a Agência France Presse, de que é colaboradora há oito anos, decidira pôr mais repórteres no terreno, três deles fotojornalistas.
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17 de Junho de 2017. Patrícia de Melo Moreira tinha estado a fotografar a Marcha do Orgulho LGBT em Lisboa quando, ao fim do dia, decidiu que ia subir com os colegas para Pedrógão. O número de mortos no incêndio ia já nos 24 e a Agência France Presse, de que é colaboradora há oito anos, decidira pôr mais repórteres no terreno, três deles fotojornalistas.
Lá chegados, dividiram trabalho e Melo Moreira ficou encarregue do rescaldo, da recolha de testemunhos no pós-fogo. Só que o fogo continuava. E os meses seguintes foram de incêndios um pouco por todo o país. Incêndios que foi cobrindo, até Setembro (não fotografou os de Outubro porque soube que ia ser mãe). É o resultado deste trabalho, reunido em portfolio e submetido à apreciação de um júri internacional, que este sábado lhe valeu o grande prémio dos encontros Estação Imagem.
Em Verão Negro, assim se chama o projecto escolhido, há paredes de chamas a devorar árvores, pessoas a fugir das suas casas e outras a ver o fogo a progredir de longe, sinais queimados e animais que não conseguiram fugir e vieram morrer na berma da estrada. Também há um corpo coberto com um plástico sobre o asfalto e bombeiros exaustos, com o fogo ao fundo. Patrícia de Melo Moreira não precisa de um prémio para ter bem vivos na memória aqueles dias.
Não era a primeira vez que cobria um incêndio, mas o de Pedrógão era diferente e isso via-se logo. “Mal chegámos foi uma cascata de emoções”, diz, “as pessoas estavam muito assutadas e enchiam as estradas de Penela. Estavam sozinhas. Muitas vezes quem chegava primeiro eram os jornalistas, quando quem as pessoas queriam ver eram os bombeiros. Percebemos logo que aquele era um cenário absolutamente anormal.”
O primeiro dia de trabalho no terreno transformou-se em dois – “trabalhámos quase 48h seguidas até porque não tínhamos onde dormir” – e foi feito com as dificuldades de comunicações que hoje sabemos terem sido uma das causas do desfecho trágico. “Não conseguíamos falar uns com os outros e às vezes fazíamos dezenas de quilómetros para conseguir enviar fotos para a agência. Estávamos mesmo no centro de um dos focos de incêndio e sentíamos que, em todas as frentes, havia uma incapacidade de resposta enorme, apesar da imensa boa vontade de todos.” As “frentes” são as do incêndio, mas também as que são formadas por aqueles que procuraram combatê-lo, às vezes com uma “carência de meios incrível”: população, bombeiros, protecção civil.
O calor, “mais de 40ºC”, e o fumo dificultavam o trabalho, mas o mais complicado, garante a fotojornalista, era ver o desespero das pessoas, sentir que, a partir dali, nada voltaria a ser igual nas suas vidas. “Lembro-me de estar a fotografar a N236 [aquela que ficou conhecida como ‘estrada da morte’, por ali terem perdido a vida, em escassos metros, quase 50 pessoas], num topo, e de uma mulher ter caminhado em direcção à câmara, quando eu a tinha na cara”, conta. Vinha de um pequeno povoado próximo e tinha tentado acudir às pessoas que morreram encurraladas nos seus carros. “Ela só me dizia: ‘Eu tentei salvá-las, carreguei baldes de água, deixei arder a minha casa, e no fim não consegui fazer nada.’ Ela tinha subido e descido a encosta a carregar baldes de água para depois ver morrer aquelas pessoas. O que aquela mulher sentiu não é fotografável e traumatizou-a de tal maneira…”
Patrícia de Melo Moreira, fotógrafa de 34 anos que já viu o seu trabalho publicado em jornais e revistas estrangeiras, como o norte-americano The New York Times e a francesa L’Obs, não tem dificuldade em decidir o que não fotografar quando está num cenário de verdadeira tragédia como o que se viveu nos incêndios desse Verão, nem tem problemas em mostrar que há situações que a emocionam: “Eu sou uma pessoa como aquelas que fotografo. Não posso ficar indiferente a um cenário como aquele, nem sequer me esforço para esconder o que sinto. Estou ali a trabalhar, mas isso não me torna insensível. Se há coisas que sinto que não devo fotografar, não fotografo. Decidir é para mim muito natural.”
Estar no terreno a fotografar incêndios cuja dimensão ganhou escala internacional permitiu a esta jornalista mostrar a uma audiência muito maior o seu trabalho. Um facto que não é de desprezar para quem, passados oito anos de intensa colaboração com a AFP, continua a recibos verdes. “Eu não tenho vínculo nenhum à agência, onde sempre fui muito bem tratada e vi o meu trabalho reconhecido, mas onde também nunca ninguém me propôs um contrato”, diz. A condição de freelancer, que é a sua, obriga-a a “perseguir” diariamente o seu trabalho, mesmo quando a agenda da AFP lhe exige um grau de disponibilidade que é muito difícil de conciliar com outros projectos e ensaios fotográficos que gostaria de desenvolver. “Gosto muito de fazer o noticiário diário, mas às vezes gostava de me dedicar também a outras coisas.”