A vez das crianças
Não se pode combater a pobreza das crianças sem combater a pobreza dos pais das crianças.
O escândalo em torno das condições deploráveis de atendimento das crianças do setor da oncologia pediátrica do Hospital de S. João veio chamar a atenção para a negligência pública com que a infância tem sido tratada em Portugal. Algum consenso se estabeleceu sobre a inaceitabilidade de situações como esta num país moderno e desenvolvido.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O escândalo em torno das condições deploráveis de atendimento das crianças do setor da oncologia pediátrica do Hospital de S. João veio chamar a atenção para a negligência pública com que a infância tem sido tratada em Portugal. Algum consenso se estabeleceu sobre a inaceitabilidade de situações como esta num país moderno e desenvolvido.
Há, portanto, boas razões para se defender que a retoma económica em curso priorize as crianças nas políticas sociais.
Uma dessas razões reside no facto de que as crianças portuguesas foram o grupo geracional mais penalizado pela crise financeira que eclodiu em 2008 e pela respetiva gestão política realizada sob a égide da troika. Como pôde ser demonstrado em vários estudos, designadamente da Unicef, a redução das transferências sociais, nomeadamente do abono de família e do rendimento social de inserção, penalizou profundamente as crianças, tendo feito subir os indicadores de pobreza infantil a níveis nunca antes atingidos. O grupo etário dos 0 aos 17 anos (criança é todo o ser humano até aos 18 anos, conforme a definição do artigo 1.º da Convenção sobre os Direitos da Criança) tem uma taxa de risco de pobreza superior à da população em geral. Isto significa que, percentualmente, há mais crianças pobres do que adultos pobres. Além disso, a infância ultrapassou os idosos como grupo geracional tradicionalmente mais atingido pela pobreza.
Outros indicadores, normalmente identificados em situações de crise, avolumaram, na primeira metade desta década, a vulnerabilidade das crianças: aumentou o número de crianças sinalizadas junto das comissões de proteção de crianças e jovens; há mais crianças institucionalizadas, tendo sido interrompida a curva descendente de acolhimento residencial que se verificava; aumentou o número de bebés a carecer de medidas de proteção; cresceu o atendimento a crianças e adultos com perturbações de saúde mental.
Os dois últimos anos marcam, entretanto, uma inflexão positiva: desceu a exposição da criança à pobreza, de 25,6% em 2013 para 20,7% em 2016 (INE, 2017), e diminuíram, pela primeira vez em muitos anos, os processos de proteção e promoção de crianças. Esta é mais uma boa razão para priorizar as políticas de infância: é possível reverter os fatores que afetam o bem-estar e os direitos das crianças. Medidas como a reposição do abono de família e dos rendimentos familiares explicam essa melhoria.
Mas isso não basta. A investigação científica tem vindo a demonstrar que a promoção de condições de conforto e a estimulação das crianças, desde bebés, tem impactos fundamentais no desenvolvimento das capacidades cognitivas, na sociabilidade positiva e na autonomia de pensamento e de decisão. A construção da cidadania joga-se no quotidiano de cada criança, não é tarefa que se possa postergar para o futuro. Cuidar já do bem-estar das crianças é uma razão definitivamente suficiente em si mesma para a priorização das políticas de infância.
Ultrapassar os indicadores de pobreza e de exclusão infantil só será definitivamente possível através de medidas estruturais, ou seja, de uma política de distribuição de rendimentos que se oriente no sentido da igualdade social. Não se pode combater a pobreza das crianças sem combater a pobreza dos pais das crianças.
Isso não obsta, porém, a que se promovam políticas específicas, focadas nas crianças e na promoção do seu bem-estar. Da educação de infância à saúde infantil, das medidas de proteção face ao risco aos programas de prevenção precoce, Portugal possui instrumentos de intervenção frequentemente inovadores e de eficácia comprovada. Mas falta um sentido de conjunto, a integração das políticas de infância, capazes de impedir a fragmentação e a dispersão de recursos e de meios. Falta fazer a avaliação das ações e dos programas e de criar uma cultura democrática de prestação de contas, assente no estudo rigoroso dos impactos da intervenção na vida das crianças. Faltam políticas focadas, nomeadamente nas áreas da educação em creche, da promoção da saúde mental, da prevenção dos maus-tratos intrafamiliares e da exposição à violência doméstica, do acolhimento familiar de crianças cujo superior interesse aconselhe a que vivam fora da família biológica, da intervenção junto de crianças migrantes e refugiadas, das crianças com necessidades especiais, da regulação da publicidade comercial com crianças e de prevenção face aos riscos da sociedade digital. Acerca destes aspetos, o nosso país apresenta indicadores frequentemente deploráveis. Faltam projetos territorializados que garantam a participação das crianças e a reconfiguração do seu espaço-tempo, para que vivam em condições de usufruto da natureza e da cidade, de acesso à cultura e ao lazer, de autonomia da mobilidade e de saúde e conforto.
Com a sustentação do conhecimento científico sobre a infância e o desenvolvimento infantil, hoje já largamente consolidado, a priorização das políticas de promoção dos direitos e do bem-estar das crianças pode ser o sinal de uma sociedade que se emancipa e que progride, na exata medida de em que cuida, educa e promove os seus cidadãos que nem por serem mais novos são menores.