O Bomfim: um “jornalinho de bairro” para celebrar uma cidade que resiste
Uma tradutora, uma ilustradora e uma designer gráfica juntaram-se para criar um jornal que mostra a freguesia onde vivem. O Bonfim “ainda é uma espécie de bolha” no Porto. E isso merece celebração
Tinha deixado para trás o “epicentro do circo” turístico portuense, junto à estação de São Bento, onde as mercearias e padarias típicas haviam desaparecido e o prédio onde habitava se assemelhava a um hotel, tal era o entra e sai e os rostos sempre diferentes de pseudo-vizinhos. Talvez pelo contraste, Rita Ferreira pensou estar a aterrar numa outra cidade quando se mudou para o Bonfim, freguesia oriental do Porto onde encontrou uma cidade com êxito que não se arriscava a morrer dele. Com agitação q.b. mas sem (tantos) atropelos.
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Tinha deixado para trás o “epicentro do circo” turístico portuense, junto à estação de São Bento, onde as mercearias e padarias típicas haviam desaparecido e o prédio onde habitava se assemelhava a um hotel, tal era o entra e sai e os rostos sempre diferentes de pseudo-vizinhos. Talvez pelo contraste, Rita Ferreira pensou estar a aterrar numa outra cidade quando se mudou para o Bonfim, freguesia oriental do Porto onde encontrou uma cidade com êxito que não se arriscava a morrer dele. Com agitação q.b. mas sem (tantos) atropelos.
Estava, literalmente, em casa. O comércio genuíno, os vizinhos conhecidos, o sentido de comunidade instalado. Na caixa de correio entravam de quando em vez a Dica da Semana e o Bonfinense, jornal com assinatura da junta de freguesia local. E ela deliciava-se com aquela singularidade “castiça” da sua freguesia-bairro. Por isso, quando os periódicos deixaram de ser impressos, a designer gráfica sentiu que algo faltava. E aí se inicia esta história.
Rita tinha conhecido Sara Sá Jones nas andanças da cidade e Joana Estrela na rua, acaso feliz de uma cidade que ainda sabe ser aldeia. Tornaram-se amigas. E vizinhas no Bonfim, freguesia constituída em 1841 por um decreto de Costa Cabral durante o reinado de D. Maria II. Um dia, em conversa meio a sério meio a brincar, imaginaram-se editoras de um “jornalinho de bairro” como aqueles que se tinham evaporado. “A Joana é ilustradora, a Sara da área da literatura, eu do design. Pensei que podíamos fazer uma coisa entre nós e que ficasse aberto a outros no futuro”, explicou Rita Ferreira, 34 anos, ao P3.
O Bomfim apresentou-se esta sexta-feira, 20 de Abril, no quiosque mais badalado da cidade — escolha que é, em si mesma, uma espécie de manifesto. O trio esteve na ainda casa da The Worst Tours — que no final de Maio tem de abandonar o espaço — a distribuir gratuitamente os jornais. Este sábado, 21, vão passar em alguns estabelecimentos da cidade (Duas de Letra, Cifrão, Sporting Clube São Victor, Praça da Alegria Futebol Clube, Pedra Nova, Biblioteca Municipal) e deixar por lá os que restarem dos 250 impressos.
São 16 páginas que nasceram de uma “brincadeira”, graceja Joana Estrela, ilustradora de 27 anos que tem publicado algum trabalho com o Porto como ponto de partida: um mapa para chorar na cidade, um poster de colorir para crianças, um “mapa dos beijos que te vou dar”. “Lembro-me de ter o O Bonfinense em casa e falarmos do que podíamos pôr ali. Há tanta coisa para falar no Bonfim. Tantas histórias e sítios.”
Franklin Freitas é o “rosto do Bonfim” que faz capa no primeiro número d’ O Bomfim de Primavera (a ideia é que seja sazonal). Sara, Rita e Joana captaram para a posteridade uma imagem do comerciante da Rua de São Víctor a dias deste dizer adeus à casa de reparações de máquinas de lavar e outros electrodomésticos onde trabalhou a vida toda. Para a secção Rally das Tascas, elegeram sem saber um outro espaço que poderá estar condenado ao fim: Sara, a “tasqueira profissional” do grupo, ouviu dizer há dias que o Bufete Catauba, no 152 da Rua D. João IV, irá fechar em breve. Que se apresse, pois, quem ainda não conhece a sopa que “cheira e sabe a infantário” e os pratinhos de petiscos como salada de polvo, moelas, bifanas ou rissóis.
“São retratos do momento”, comenta a tradutora de 32 anos nascida em Monchique mas cedo rendida aos encantos do Porto Oriental. O Bonfim “ainda é uma espécie de bolha” na cidade. Mas os sinais de mudança estão aí.
Defesa da cidade “está no sangue do jornal”
Sara pronuncia-se com conhecimento de causa. “Neste momento a minha senhoria está a mostrar a minha casa, estou a ser despejada”, comenta. A ordem informal de saída já foi dada, com o fim da linha marcado para Agosto. E encontrar uma casa a um preço decente tem-se revelado impossível. “A única que encontrou pelo valor que podia pagar é na periferia”, lamenta Rita Ferreira, que tem o seu trabalho de designer gráfica gravado no livro Caminhar pelo Porto, do homem-cidade Germano Silva. “A Sara, como toda a gente, devia ter direito a morar onde quisesse.”
Essa defesa da cidade “está no sangue do jornal” — ainda que o jornal não tenha nascido para isso. Não é uma questão partidária, mas é política. “É inevitável”, assume Rita Ferreira. “Temos muito receio de que esse turismo avassalador chegue aqui. Quero muito ficar no Bonfim, mas não sei se vou conseguir”, lamenta Sara. A resposta, acredita a ilustradora Joana Estrela, devia passar por políticas camarárias — o “bom senso não chega”, comenta ao ouvir Sara falar de uma solução que assume como “utópica”: “Se não houvesse esta ganância que não olha a meios...”
Políticas à parte, O Bomfim tem espaço para um editorial, uma notícia, uma entrevista a uma figura da freguesia (a primeira é com o músico Gui Conceição), um espaço dedicado à História, as Montras de Cá (com uma vitrina ilustrada da cidade), uma receita, classificados, o Rebenta a Bolha! (dedicado a crianças), uma mini-agenda e uma crónica.
O primeiro número foi “auto-financiado” e contou com a ajuda de alguns amigos: com 180 euros imprimiram-se 250 exemplares. A ideia é agora continuar. Mas a fórmula está ainda por encontrar: pode ser através de um custo simbólico, apoio de mecenas, publicidade. Imprescindível é mesmo “mostrar e celebrar” a freguesia-bairro, histórias de um Porto que resiste.