David Byrne: "Somos apenas turistas nesta vida mas a vista não é má"
Não está satisfeito com a América e com o mundo, mas recusa-se a olhar apenas para os lados sujos da existência. Propõe que se valorizem os sinais encorajadores – entre eles, Portugal. Em American Utopia, o álbum e o novo espectáculo que passará pelo EDP Cool Jazz a 11 de Julho, diz-nos que a esperança é possível. Até porque “We’re only tourists in this life / Only tourists but the view is nice.”
Ao longo dos anos tem sido cantor, compositor, realizador, editor, escritor, designer de bicicletas, artista visual, criador de bandas-sonoras ou de óperas, de tal forma que o questionamos se já alguém terá ponderado a hipótese de efectuar uma retrospectiva total da sua obra. “Ainda não”, reflecte, por entre risos, acrescentando ter “ainda muitos outros projectos para concretizar!” Não deve ser conversa fiada. Aos 65 anos David Byrne parece ter muito para fazer. Para já existe um novo álbum, American Utopia, editado há um mês, e uma digressão mundial iniciada há semanas e que passará a 11 de Julho pelo Hipódromo Manuel Possolo em Cascais, no contexto do festival EDP Cool Jazz.
O seu novo disco tem vindo a ser publicitado como o regresso aos álbuns, 14 anos depois do último registo a solo de originais, Grown Backwards, de 2004. É verdade. Mas nada de equívocos. Nos últimos anos esteve bem activo, seja através de álbuns em duo (com St. Vincent, Fatboy Slim ou Brian Eno) ou de outros processos criativos como a fotografia, o cinema, o ensaio sociopolítico ou a composição de um musical. O que talvez se possa dizer é que o seu novo disco é o seu registo mais politizado de sempre. Não é algo que esteja inscrito nas letras das canções – “quando quero falar de forma política de forma directa prefiro fazê-lo através de textos” – mas no projecto global Reasons to be cheerful, compilação de notícias, ensaios ou palestras que de alguma forma, sem deixarem de lado a crítica sobre a conjuntura sociopolítica, conseguem projectar sobre a mesma uma visão esperançosa.
Desde sempre que é um observador da realidade à sua volta. O filme True Stories (1986), por exemplo, não era outra coisa senão um olhar com lupa sobre a América mais singular. Agora volta a observar o país que adoptou como seu – Byrne nasceu na Escócia, mudou-se para Baltimore aos 8 anos – e com quem detém uma relação paradoxal. “Gosto de muitas coisas como essa ideia de que qualquer pessoa se pode ali reinventar, mas também tenho momentos em que sinto muita vergonha pelo que vejo.”
Na actualidade não é tanto a relação de forças políticas pós-Trump que lhe interessa. Até porque faz questão de dizer que compôs as canções antes da sua chegada ao poder. O que o move é a América enquanto sintoma de um mal-estar geral, algo que pode ser comprovado no mundo Ocidental pelos muitos impasses da última década, políticos, económicos ou socioculturais. “A maior parte dos meus amigos diz-me que este parece ser o meu disco mais virado para o exterior, onde me vislumbram mais comprometido com o mundo e com a política e têm muita razão. Parece-me aliás que isso é ainda mais perceptível nos espectáculos ao vivo”, diz-nos. “Com o passar dos anos fui-me envolvendo cada vez mais com a cidadania activa e com aquilo a que podemos chamar os direitos cívicos – do recenseamento eleitoral às reformas prisionais ou as políticas públicas em Portugal no contexto do combate às drogas, enfim, toda uma série de questões que tenho abordado no meu projecto Reasons to be cheerful, que estão expostas no blogue e sitio da internet com o mesmo nome, e que em grande medida acabaram por estar na origem do novo disco”.
E acrescenta: “Podemos não ter muita fé, neste momento, nos nossos líderes, mas o mundo não é uma tortura e existem muitas coisas a serem feitas por outras pessoas que fazem sentido e nos dão esperança. Apesar do que está a acontecer ainda há pessoas com vontade de encontrar diferentes maneiras de vivermos em conjunto e isso é encorajador.”
Segundo David Byrne, uma das razões pelas quais vale a pena ter algum optimismo parece ser o momento presente de Portugal. Pelo menos mostra curiosidade sobre o contexto político que se vive. “Li que os serviços sociais e de educação não foram cortados e que foram tomadas poucas medidas de austeridade e que ainda assim a economia está a ir relativamente bem e a dívida pública tem vindo a ser diminuída – mas irei informar-me melhor sobre essa situação quando aí for em concerto.”
Do Brasil, onde esteve recentemente em concertos, e com quem tem uma relação intensa por via da actividade com a editora Luaka Bop que promoveu muita música brasileira (Tom Zé, Caetano Veloso, Os Mutantes, Tim Maia), é que não sentiu que soprassem bons ventos. Há dez anos parecia um país a irradiar esperança, agora é uma nação em conflito.
“É triste o que tem acontecido no Brasil nos últimos anos”, diz. “O ânimo e o optimismo estiveram presentes durante algum tempo mas agora tudo parece difícil e não é fácil perceber o que se passou. Claro, existe a corrupção e a desigualdade contínua a nível social, mas talvez também a queda repentina do preço do petróleo. É difícil quando as esperanças estão lá e depois são arrancadas quase irremediavelmente. As pessoas ficam muito mais irritadas quando as suas expectativas são frustradas do que quando não têm grandes expectativas em primeiro lugar.”
De uma coisa parece estar certo. É necessário projectar alento num mundo sem luz ao fundo do túnel. Durante décadas a palavra utopia (talvez por causa das experiências do fascismo e do comunismo) parecia relegada para o esquecimento. Regressa agora com vigor. No campo da música, nos últimos meses, não foi o único a lembrar-se da designação. Também o último álbum da islandesa Björk tem esse título, apesar da utopia nela apontar para outro vector. Byrne não pensa a utopia como um lugar ou sistema. É mais aspiração. “Para mim a utopia tem a ver com o desejo. O desejo por algo melhor. Não é um lugar real ou receita para solucionar coisas específicas – embora a série Reasons to be Cheerful contenha algo disso”, afirma, recordando que quando o disco de Björk saiu, ficou lívido. “Sou fã dela, já tinha escolhido o título do meu álbum e a arte gráfica já estava em movimento, mas depois percebi que tínhamos uma interpretação diferente de utopia e fiquei mais relaxado.”
O reverso da medalha desse ambiente mais propício ao acolhimento de utopias pode ser o surgimento de movimentos populistas ou de dinâmicas regressivas. Em alturas de desnorte tanto pode desejar transformar-se o presente através do vislumbre de um outro futuro, como existir a tentação de regressar a um passado idealizado. “As ideologias e as prescrições utópicas específicas tendem a dar errado, embora tenha curiosidade com algumas experiências que resistiram como Auroville na Índia [fundada em 1968 como uma cidade internacional dedicada à procura de uma vida sustentável e harmoniosa], mas de uma maneira geral estamos a viver um momento em que as pessoas podem ser facilmente seduzidas por ideologias ou ideólogos que prometem ter soluções milagrosas para tudo e isso é também perigoso.”
O que parece mover David Byrne é qualquer coisa que ajude a superar o desencanto e a desconfiança reinante. Não se trata de mascarar a realidade, promovendo apenas aquilo que ele acha serem boas notícias, mas de revelar expressões concretas dessa possibilidade de renovação. Fá-lo com seriedade, mas sem prescindir da ironia e da fantasia habituais.
Do ponto de vista da música recorreu à ajuda inicial de um velho conhecido, Brian Eno, seu parceiro em alguns álbuns e na produção dos Talking Heads. Mas, claro, no caso deles, a sua relação vai muito além da música ou não fosse também o produtor inglês alguém que gosta de pensar os comportamentos, a realidade sociopolítica ou o papel da arte. “Se Brian e eu mantivemos a amizade ao longo de décadas foi precisamente porque não passamos o tempo apenas a discutir música. Temos um largo espectro de interesses e a música é um deles. Mas do ponto de vista da música também nos entendemos. Respeitamos as nossas fronteiras. Pelo menos na maior parte das vezes isso acontece.”
Brian Eno esteve presente na fase inicial da feitura do disco, mas depois foram surgindo outras colaborações, a maior parte de nomes pouco conhecidos do grande público (Rodaidh McDonald, Patrick Dillett, Happa ou Onyx Collective), com algumas excepções como Sampha ou Oneohtrix Point Never. Colaborar ou entrar em processos colectivos é aliás algo que o define desde sempre e que continua a valorizar. “Com Annie Clark [St Vincent], por exemplo, foi fácil, embora tenha sido um processo de descoberta. No início não estava muito bem definido o que cada um iria fazer e isso foi sendo afinado quase intuitivamente, mas existem muitas outras formas de operar. Não existe um método único. Num trabalho a solo a responsabilidade é toda minha, o que pode ser crítico por vezes mas permite também correr outro tipo de riscos.”
No álbum existem momentos que remetem para os melhores Talking Heads, como Everybody’s coming to my house, e outros que apontam para alguns dos trabalhos a solo, como o ritmo tropical de Every day is a miracle, e outros ainda em que diversas canções parecem habitar na mesma canção, como em Doing the right thing. De comum, na maior parte dos temas, a tendência para existirem várias camadas de leitura, embora o binómio entre um pouco de estranheza e familiaridade seja uma constante. “Senti desde sempre que a música popular tem essa possibilidade de ser em simultâneo inovadora e popular e que essas duas ideias não são mutuamente exclusivas. Por isso, sim, sinto que posso oferecer algo familiar a uma audiência – um gancho melódico, uma estrutura reconhecível ou um ritmo – e ao mesmo tempo ter espaço ou liberdade criativa para propor outros elementos menos reconhecíveis.”
Se essa inquietude está presente nos discos, nos concertos acontece o mesmo. Basta pensar no espectáculo dos Talking Heads, Stop Making Sense, imortalizado em 1984 pelo olhar do cineasta Jonathan Demme, que o ano passado regressou ao grande ecrã. Um dos capítulos mais fascinantes do seu livro How Music Works (2012) foca precisamente a forma como sempre se inspirou cenicamente por elementos que fugiam à norma pop-rock – das coreografias de James Brown ao sentido comunal da música africana, dos coros gospel aos rituais e formas teatrais do Japão.
Muitos anos depois, e apesar de todas as transformações tecnológicas, com consequências na forma como experienciamos a música, continua quase tudo na mesma. “Sim, é verdade, os rockers em geral tornaram-se muito conservadores quando toca a pensar em formas de criar um acontecimento em palco – nesse campo, parece-me que nos últimos anos os artistas de hip-hop e R&B, de maneira geral, foram mais inovadores. Inspirei-me neles, mas também na dança contemporânea, ou nas escolas de samba e outras formas colectivas de expor música, para tentar reimaginar como é que um concerto pop-rock pode ser encenado.”
O cenário é desnudado, sem amplificadores, fios, cabos ou estrados, com doze músicos em palco – seis deles percussionistas – vestidos de igual (cortesia do designer de moda Kenzo), todos de pé, movendo-se pelo espaço. “Parti de uma ideia simples”, explica. “E se o espaço estivesse completamente vazio? Depois fomos preenchendo-o sem ser de forma impositiva, para que todos nos divertíssemos, em palco e se possível também na plateia. É um espectáculo que é um convite para festejarmos em conjunto, a vida, o amor, as coisas boas que as há tantas, apesar de por vezes não as conseguirmos vislumbrar no meio de tanto nevoeiro.”
“Every day is a miracle”, canta ele no tema do mesmo nome, mas não são apenas as canções do último álbum que predominam na nova digressão. Tem havido espaço para muitas canções dos Talking Heads também, como Once in a lifetime, I zimbra, Burning down the house, Houses in motion, Heaven, Life during wartime, Take me to the river (Al Green), Air ou The great curve, para além de outras que gravou a solo como This is must be the place ou Blind. A dificuldade foi escolher e deixar de fora, por exemplo, Psycho killer. “O critério foi escolher canções que a incrível banda que me acompanha pudesse tocar de forma empolgante – por isso temos músicas minhas a solo, dos Talking Heads, de um musical que escrevi e até uma ou outra versão. É uma variedade muito ampla de material e o todo resulta muito teatral e ao mesmo tempo honesto.”
Em 2010, aquando de uma outra entrevista com ele, dizia-nos que o renovado interesse em torno dos Talking Heads, pela influência em grupos como Vampire Weekend, LCD Soundsystem, Dirty Projectors ou Arcade Fire, o haviam surpreendido, mas a o actual fervilhar em torno da cultura hip-hop e R&B não o espanta. Em 2004, numa outra conversa com David Byrne, ele já falava com devoção de Timbaland, OutKast ou Missy Elliott. Por isso a actual entronização de Kendrick Lamar parece-lhe “a coisa mais natural do mundo.” Quando lhe perguntamos o que anda a ouvir, o saldo é bastante ecléctico, indo das francesas Camille e Christine and the Queens à brasileira Elza Soares, do rapper Change The Rapper ao cantautor Bon Iver, passando por FKA Twigs, Lorde, Sophie ou os novos Superorganism.
De Portugal é que não tem tido noticias musicais recentes, mencionando apenas que tem ouvido muito Momo, ou seja o músico brasileiro Marcelo Frota, que está a viver em Lisboa há alguns anos. “Boa música não falta por aí”, lança. O que o preocupa não é tanto a criatividade, mas a possibilidade de os músicos mais novos terem dificuldades em aspirar a um percurso. No seu caso, assegura, o seu passado e os concertos permitem-lhe continuar sem grandes reservas, mas é crítico do YouTube ou dos serviços de streaming, que na sua visão apenas servem as editoras com grandes catálogos, sem pensarem nos mais novos. Mas ainda assim, apesar de se considerar um céptico em relação a alguns modelos de negócio, tem esperanças na indústria da música. “Hoje não se gasta tanto tempo nem dinheiro em estúdio, o problema é fazer com que a música seja ouvida.” Pelo menos, diz, “a música continuará a fazer parte da experiência de vida das pessoas e isso é uma qualidade insubstituível.”
Há oito anos, no livro Diários de Bicicleta, falava com entusiasmo da forma como a música e os movimentos culturais mais espontâneos passaram a ser adoptados pelas cidades para se distinguirem umas das outras, discorrendo sobre urbanismo, arquitectura, arte, política, moda, alimentação ou religião como se fossem notas de um diário onde não tentava impor juízos deterministas. Agora não é muito diferente (aliando música, pensamento e performances), tentando reflectir e interrogar, de forma humanista, curiosa e com humor, algumas das questões que na actualidade cruzam a existência das sociedades contemporâneas.
Já fez muito. Entre 1975 e 1991 lançou oito álbuns com os Talking Heads. A solo, ou em dupla, já vai em onze. Escreveu uma dezena de livros. Ganhou um Óscar, na companhia de Ryuichi Sakamoto e Cong Su, pela banda-sonora de O Último Imperador. O que falta fazer? “Falta viver cada dia com calma, porque somos apenas turistas nesta vida e a vista não é, apesar de tudo, nada má”, ri-se, aludindo aos versos “We’re only tourists in this life / Only tourists but the view is nice” da canção Everybody’s coming to my house. “De resto, gosto de tomar café e sumo de laranja na cama, ler os jornais online e responder a alguns emails, depois levanto-me e depende. Posso trabalhar numa peça para Reasons to be cheerful ou ir para o escritório durante algum tempo, ou trabalhar numa música nova e depois regressar a casa. Esses rituais vão mudando, mas no meio deles, apesar de ser difícil, tento não me esquecer que cada dia é uma dávida.”