O caminho do PS é o da esquerda moderada e europeia
Devemos ser mais radicais, isto é, mais claros, firmes e intransigentes? Sem dúvida que sim: na nossa afirmação como esquerda europeísta e moderada.
O centro-esquerda (ou esquerda democrática, ou social-democracia, ou socialismo democrático: os termos são para mim equivalentes) vive tempos difíceis na Europa. No momento em que prepara o seu congresso, o PS deve ter este facto em conta. Não para se ufanar de imunidade à crise na família, mas percebendo que ela também o atinge, ou atingirá, direta ou indiretamente. Os socialistas, que são o segundo grupo no Parlamento europeu, lideram hoje menos de um quarto dos governos. E o ciclo eleitoral tem-lhes sido amplamente desfavorável, da Espanha à Holanda, da França à Alemanha ou da Áustria à Itália.
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O centro-esquerda (ou esquerda democrática, ou social-democracia, ou socialismo democrático: os termos são para mim equivalentes) vive tempos difíceis na Europa. No momento em que prepara o seu congresso, o PS deve ter este facto em conta. Não para se ufanar de imunidade à crise na família, mas percebendo que ela também o atinge, ou atingirá, direta ou indiretamente. Os socialistas, que são o segundo grupo no Parlamento europeu, lideram hoje menos de um quarto dos governos. E o ciclo eleitoral tem-lhes sido amplamente desfavorável, da Espanha à Holanda, da França à Alemanha ou da Áustria à Itália.
Propor uma explicação deste declínio é incompatível com a dimensão deste artigo. Direi apenas duas coisas, importantes para o argumento que quero defender.
A primeira é que julgo que a razão da crise não está no processo de renovação política empreendido nos anos 90, um pouco por todo o mundo, pelo centro-esquerda, o qual me pareceu e parece indispensável à atualização dos seus programas em contexto de globalização e transformação tecnológica. Ela deve encontrar-se antes, quer em condições objetivas, ligadas à redução do peso social dos grupos profissionais que são a base social-democrata tradicional, quer nas hesitações e ambiguidades de demarcação face ao crescimento do apelo populista nessa mesma base e face à hegemonização do topo institucional pela lógica da desregulação e da financeirização dos mercados de trabalho, produtos e capitais.
A segunda ideia é que o recuo da influência política do centro-esquerda coexiste com a permanência da centralidade das questões e bandeiras políticas que têm sido as suas, desde os finais do século XIX: a dignidade do trabalho e dos trabalhadores, a articulação entre os direitos civis, políticos e sociais, o combate a todas as formas de discriminação, a democracia política, o Estado social e a política redistributiva. Uns verão certo paradoxo nesta coexistência; ela significa, para mim, que o recuo é circunstancial e pode ser superado.
Como? Esse é o ponto, sobre o qual o PS tem muito a dizer. De 2011 até aos nossos dias, soubemos sucessivamente opor-nos com firmeza ao austeritarismo do “ir além da troica”; propor um programa alternativo; recusar ser muleta da direita; construir uma alternativa à esquerda; e implementar políticas económicas e sociais progressistas, mantendo ao mesmo tempo intacta a fidelidade ao projeto europeu e à união monetária. Por isso, o PS é a prova provada de que é possível ao centro-esquerda ser o que é, uma corrente moderada, reformista e cosmopolita, mantendo as pontes de comunicação abertas com os que, à sua direita, prezam os mesmos valores atlânticos e europeístas e os que, à sua esquerda, partilham o objetivo de fazer crescer a riqueza, o emprego, os direitos e o rendimento. Ao fazê-lo, contribui (com vários outros partidos, saliente-se) para preservar em Portugal o sistema democrático de partidos e travar a emergência de forças populistas.
Invoco, pois, a nossa própria experiência para sustentar que o futuro da esquerda democrática não está na radicalização política ou programática. A ideia de que a solução seria renegarmos a renovação e a modernização operadas nos fins do século XX (“enterrando a Terceira Via”), extirpar a dimensão liberal da nossa visão de sociedade, voltar à retórica puramente anticapitalista ou substituir a apresentação de medidas por um discurso moral de condenação dos novos leviatãs (“os mercados”, “a globalização”, “a robotização”, etc.) e de exigência apenas de “decência” ou “respeito” – essa ideia seria, na minha modesta opinião, fatal para a reafirmação de que precisamos.
A incapacidade de se demarcar (ou mesmo ser cúmplice), quer das lógicas ortodoxas do pensamento único austeritário, quer da exploração populista da angústia de populações penalizadas pelo desemprego ou a quebra de rendimentos face à imigração, à globalização ou à União Europeia, tem sido igualmente fatal para vários partidos socialistas e social-democratas. Vimo-lo e vemo-lo em países da Europa do leste e do oeste, do sul e do norte.
O caminho não é, portanto, oscilarmos para os extremos, mas sim manter a autonomia do nosso posicionamento central. O que implica compromissos trabalhosos, mas indispensáveis. O compromisso de combater o populismo, o nacionalismo, o iliberalismo e o protecionismo, quer nos noutros, quer na própria família. O compromisso de não ceder, por maior que seja o momentâneo preço eleitoral, na doutrina e na linguagem democrática – de não falarmos a língua nem incorporarmos temas da agenda dos populistas e autoritários. O compromisso de denunciar e combater os novos instrumentos de opressão das pessoas e de manipulação das consciências – da liberalização selvagem de setores do mercado de trabalho às máquinas de desinformação, da sobranceria do poder económico face ao interesse público à cultura emocional das redes sociais, da corrupção dos sistemas políticos às limitações à liberdade de imprensa, da judicialização da política à politização da justiça. E, sobretudo, um novo compromisso programático, que encontre formas de valorizar o trabalho nas economias digitais, que combine bem a aposta na qualificação e inovação com a redução das desigualdades, que revalorize a redistribuição e que invista numa governação, nacional e internacional, mais escrutinável pelos protocolos democráticos.
Pensado a partir de Portugal, tudo isto exige mais, não menos, vinculação à União Europeia e aos seus processos de debate e decisão. Tudo isto exige abertura de espírito, estudo e argumentação pública com todos, diálogo social, preferência pelo cosmopolitismo e a mudança, ponderação e avaliação cuidada das políticas. Tudo isto exige, pois, uma cultura política progressista e uma prática moderada e reformista.
Devemos ser mais radicais, isto é, mais claros, firmes e intransigentes? Sem dúvida que sim: na nossa afirmação como esquerda europeísta e moderada.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico