A Revolução de Abril e o fim dos Tribunais Plenários
Os Tribunais Plenários são uma nódoa muito negra na história da magistratura portuguesa.
Aproxima-se mais uma comemoração do 25 de Abril de 1974, que iniciou um processo que viria a terminar com a implantação de um regime democrático, consignado na Constituição de 1976.
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Aproxima-se mais uma comemoração do 25 de Abril de 1974, que iniciou um processo que viria a terminar com a implantação de um regime democrático, consignado na Constituição de 1976.
Uma das principais conquistas da Revolução de Abril foi pôr termo aos tribunais especiais, nomeadamente aos “célebres” Tribunais Plenários (TP), criados em 1945, no Porto e Lisboa, para julgar todos os crimes contra a “segurança interior e exterior do Estado”. Os julgamentos eram realizados por três juízes desembargadores e pelo MP, escolhidos e nomeados pelo ministro da Justiça, com base em critérios de estrita confiança política. As penas de prisão aplicadas aos réus eram acompanhadas da perda de direitos civis e medidas de segurança até três anos, renováveis tantas vezes quantas a PIDE/DGS o entendessem. Das decisões dos TP cabia recurso para a secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), mas relativamente apenas às questões de direito, o que significa que o Supremo não podia alterar os factos dados como provados pelos Tribunais Plenários, factos esses geralmente aceites ipsis verbis, tal como vinham da instrução efetuada pela PIDE. Acontecia que os juízes da secção criminal do STJ (5 juizes nomeados também pelo ministério da Justiça) acabavam, muitas vezes, por agravar as penas fixadas nos Tribunais Plenários, o que passou a desmotivar os advogados para os recursos.
Os julgamentos nos TP eram apenas um simulacro, caraterizado por assentarem unicamente nas provas apresentadas pela PIDE, cujos agentes aí juravam que as confissões dos réus não tinham sido obtidas por coação e tortura (privação do sono, queimaduras com cigarros, posição de estátua, agressões físicas e psicológicas etc).
Deste modo, os TP tornaram-se espaços onde reinava absoluto arbítrio, com os presos políticos a serem frequentemente espancados nos calabouços da Boa Hora, enquanto decorria o julgamento, perante a passividade dos juízes, quando alertados para o facto. As cadeias de serviço eram a colónia penal do Tarrafal (Cabo Verde), Forte de Peniche, a cadeia de Aljube ou Forte de Caxias.
Um grupo restrito de advogados destacou-se na defesa dos presos políticos e tomaram posição contra o aparelho judicial que permitia a tortura e as sevícias desses presos e não consentia a presença de advogado nos interrogatórios dos arguidos. Um desses advogados foi, sem dúvida, o bracarense Francisco Salgado Zenha (1923-1993) cuja intervenção, no âmbito da justiça, justifica, só por si, a estátua que o executivo camarário bracarense deliberou construir na cidade, reconhecimento que o Partido Socialista esqueceu totalmente após a sua morte. Era frequente, nas suas intervenções, Salgado Zenha exigir a “judicialização” dos processos, quer durante a instrução escrita, quer durante o julgamento oral, tentando reatar a tradição jurídica nacional, quebrada totalmente em 1945.
O referido grupo restrito de causídicos defendia também que, além de ser assegurado aos arguidos o direito de serem assistidos por um advogado durante os interrogatórios, deveriam ser encarcerados, quando fosse determinada a sua prisão preventiva para fins de instrução, e que o fossem em estabelecimentos prisionais autónomos e independentes de quaisquer polícias. A justiça, na sua opinião, “deveria ser feita pela própria justiça e não pela polícia”.
Nas cadeias da PIDE/DGS, os advogados de defesa dos réus só podiam falar com os seus clientes na presença de um agente da PIDE ou de um guarda prisional. Nos TP vários advogados foram alvo de processos crime, como aconteceu a Manuel João da Palma Carlos que, em 23.04.1957, foi preso em pleno tribunal e condenado por responder aos juízes nos seguintes termos: “Julguem Vossas Excelências como quiserem, com ou sem prova, mas o que não podem é deixar de consignar em acta tudo quanto na audiência se passar”. Estas palavras valeram-lhe sete meses de prisão, um ano de privação dos direitos políticos, bem como um ano de suspensão do exercício da advocacia.
Marcello Caetano, em 1968, quis, inicialmente, dar mostras de liberalização do regime, mas acabou apenas por mudar o nome de PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) para DGS (Direção Geral de Segurança).
Alguns magistrados, voluntária ou por medo de represália profissional, acabaram por se transformarem em pilares essenciais do sistema de repressão do regime de Salazar e Caetano, deixando-se corromper e enredar nas malhas de uma “justiça instrumento”, dando triste e subserviente nota de si na justiça portuguesa. Em contraste, os advogados cumpriram, exemplarmente, as funções que lhe foram confiadas pelos seus clientes. Por tudo isto, os Tribunais Plenários são uma nódoa muito negra na história da magistratura portuguesa.