Duplo Espaço: o atelier de Félix Rodrigues
Laura Sequeira Falé gosta de ateliers e mostra-os no blogue Duplo Espaço. Desta vez, visitou o atelier de Félix Rodrigues
O Félix Rodrigues (Faro, 1995) está no último ano da licenciatura em Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL) e o seu trabalho tem vindo a desenvolver-se no atelier mais pequeno que visitei.
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O Félix Rodrigues (Faro, 1995) está no último ano da licenciatura em Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL) e o seu trabalho tem vindo a desenvolver-se no atelier mais pequeno que visitei.
Mudou-se em Janeiro para uma casa em Santos, em Lisboa, onde arrendou um quarto de sonho. Paredes brancas, óptima luz a entrar pela janela e um mezanino que permite dividir o espaço em duas áreas, uma para dormir em cima e outra para trabalhar em baixo. Por baixo da cama está uma secretária, um guarda-roupa dividido em zona para materiais e espaço para roupa e o mínimo de desarrumação possível. Lembra uma casa sueca ordenadíssima, onde tudo cabe e mesmo assim se consegue manter a arrumação.
Quando passamos a porta do quarto, cabemos em pé ou sentados no chão, que é também onde o Félix — ou Li, como toda a gente o trata — trabalha. Ao fundo, ao canto, há uma janela com almofadas no chão. É o seu local privilegiado para bordar ou desenhar.
Apesar de terminar o curso dentro de uns meses, só agora sente que entrou na lógica da universidade, num trabalho mais ordenado e com sentido. Os primeiros dois anos não foram fáceis: fez umas disciplinas aqui e ali, queria desistir e a adaptação a Lisboa não foi tão simples como pensava. Apesar disso, prosseguiu o estudo e é em Lisboa que deseja ficar. Fala com uma certa pena na hipótese de sair das Belas Artes e pondera tirar o mestrado na faculdade, mas são pensamentos pouco amadurecidos.
Esteve durante um Verão em Londres num curso de Pintura numa faculdade e sentiu uma diferença na abordagem ao ensino. Relata que em Lisboa, na FBAUL, há uma certa competição silenciosa. Ninguém fala dela, mas todos sentem o peso, o medo de terem as ideias roubadas, os trabalhos destruídos. Apesar de haver algum espaço, o Félix não consegue trabalhar na faculdade porque é um local pesado, onde se sente observado constantemente.
Em Inglaterra o caso foi diferente. Os colegas opinavam livremente uns acerca dos outros, os professores não se limitavam a franzir o sobrolho e sentiu que recebeu conselhos valiosos acerca do seu trabalho, por exemplo ser estimulado a fazer coisas diferentes daquilo que insistia em repetir. Diz-me que se pode habituar facilmente ao traço que lhe é mais fácil e só naquela faculdade percebeu que mudar era essencial para enriquecer o trabalho.
Numa das paredes do quarto há um pequeno tríptico com representações suas de Joana d'Arc, São Sebastião e um anjo. Estão pintados dentro do seu esquema cromático: azul, amarelo e vermelho. Deu por si a representar um arco-íris nessas três cores e a repeti-las nos diários gráficos e nos seus trabalhos.
Todas as paredes estão ocupadas por trabalhos em curso, pequenos trabalhos concluídos e sobretudo muita inspiração. A determinada altura puxou de um baldinho de plástico com uma série de doces e ofereceu-mos. Quando eu pensava que estava perante um viciado em açúcar, o Félix disse-me que os tinha comprado para desenhar. Ainda não sabia se à vista ou se os ia usar enquanto objectos em trabalhos. Não quis comer um pedaço do trabalho de outra pessoa, por isso controlei o meu impulso.
O preconceito contra o guache
Antes de se apresentar como se apresenta, o Félix conta que se arranjava seguindo a moda japonesa do estilo Kawaii. No Japão, apresentar-se como fofinho ou querido é aceite como característica e até desejável para ambos os géneros e o Félix utilizava essa forma de expressão para performar a sua identidade. Agia como quem brinca com o estilo que é altamente produzido e muito auto-consciente. Dessa época aparecem réstias no seu quarto, como uns lenços cor-de-rosa, o seu gosto por flores e por cores opacas e vivas, bem como a sua afinidade por cores pastel.
Adora pintar com guache, apesar de reconhecer que há um certo preconceito com o material. Toda a gente se lembra das primeiras experiências com esta tinta na escola primária, mas quando chegou à faculdade percebeu que o seu poder de cobertura, a textura matte, a ausência de cheiro em comparação com o óleo e o seu preço tornavam o material muito apetecível. Como é que se vende uma pintura a guache? É por ser percebido como material fácil que o Félix sente que os trabalhos que o têm por base são levados menos a sério.
Os seus diários gráficos são um poço de luz e de cor. Ocupa a totalidade da página com flores ou cores garridas e por vezes as páginas servem de diário pessoal. Apesar de ser uma pessoa tímida, o Félix é muito disponível quando aborda qualquer assunto. Está pronto para dizer o que pensa, docemente e sem rodeios. Quando lhe perguntei se não tinha receio que o seu trabalho fosse rotulado como feminino, pelas flores e pelas cores, ele diz-me que não.
Foi depois da última fotografia que me contou que o seu trabalho mudou muito desde há um ano para cá e que não sabe até que ponto isso se deveu à mudança por que está a passar. Durante toda a sua vida, as pessoas viam nele um género que não era o seu e que de facto se sente homem em vez de mulher. Prosseguiu Pintura, está em tratamento hormonal e hoje é oficialmente o Félix, sem receios de pintar e trabalhar acerca de assuntos que sejam identificados com um lado feminino.