Na Gulbenkian há arte pop, mas não como a imaginamos

Mais de duas centenas de obras, algumas delas nunca antes vistas, de 47 artistas, entre portugueses e ingleses, mostram como foi possível filtrar e ao mesmo tempo transcender os vocabulários da arte pop. A exposição Pós-Pop. Fora do Lugar Comum inaugura-se esta sexta-feira na Gulbenkian.

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“A realidade do país era muito cinzenta, portanto era necessário colori-la”, diz-nos com um sorriso Teresa Magalhães (Lisboa, 1944), uma das artistas mais representadas na exposição Pós-Pop. Fora do Lugar Comum, que inaugura esta sexta-feira na galeria principal do Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa, onde se manterá até 20 de Setembro deste ano.

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“A realidade do país era muito cinzenta, portanto era necessário colori-la”, diz-nos com um sorriso Teresa Magalhães (Lisboa, 1944), uma das artistas mais representadas na exposição Pós-Pop. Fora do Lugar Comum, que inaugura esta sexta-feira na galeria principal do Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa, onde se manterá até 20 de Setembro deste ano.

A utilização expressiva da cor é realmente um dos denominadores comuns de algumas das pinturas e peças expostas. Mas não se julgue por isso que estamos em terrenos totalmente reconhecíveis da arte pop. É fácil identificar alguns dos recursos visuais que associamos à arte pop, como a colagem, o recorte, a repetição, a conjugação de diferentes meios, a fotografia e a cor, mas o que se vê transcende essa ideia clássica da pop.

São desvios. Recriações de alguns dos seus elementos. Pontos de partida. É uma exposição que reúne obras de artistas portugueses e ingleses, na sua grande maioria entre 1965 e 1975, que reflectem influências pop, mas não ficaram reféns dos seus códigos mais previsíveis. Daí a designação pós-pop, diz-nos Ana Vasconcelos, em conjunto com Patrícia Rosas, as curadoras da exposição. “Há uma pop clássica do final dos anos 50 e início dos 60, entre Londres, onde o Richard Hamilton cunhou o termo, e os EUA, que explodem com a corrente, mas aquilo que temos aqui foge àquilo que se tornou esse grande lugar-comum. São derivas. Pontas soltas. Elementos de linguagem pop, mas trabalhados de uma forma singular.”

No total são mais de duas centenas de obras, de 47 artistas, que integram a Colecção Moderna e outras vindas do Arts Council e do British Council de Londres, que mostram como diversos artistas portugueses, como José de Guimarães, Teresa Magalhães, Manuel Baptista, António Palolo, Fernando Calhau ou João Cutileiro, e ingleses, como Bernard Cohen, Allen Jones, Patrick Caufield, Richard Smith, Antony Donaldson ou Jeremy Moon, filtraram e ao mesmo tempo transcenderam os vocabulários pop.

Para além das peças expostas ao longo de várias salas, existem três caixas negras que ajudam a situar o visitante na época (com imagens de TV, fotos, fotonovelas, música pop, alusões a eventos, como o concurso da minissaia, ou ao cinema novo), revelando como elementos da arte pop, de forma subtil, se foram introduzindo nas mais diversas manifestações desse período, fossem elas comportamentais, culturais ou sociopolíticas.

Em Portugal a influência pop foi tardia. Com o apoio de bolsas de estudo e de viagem atribuídas pela Gulbenkian, vários artistas foram, ao longo das décadas de 1960 e 1970, para Paris e sobretudo Londres, onde contactaram com o meio artístico. Foi o caso de Manuel Baptista, que numa visita guiada à exposição mencionou o contacto com artistas britânicos ou o ter tido a oportunidade de ir a inaugurações de Andy Warhol como marcantes para o seu percurso, ou de Ruy Leitão, com obra pouco conhecida, que estudou em Londres com o pintor Patrick Caulfield. Caso diverso foi o de Teresa Magalhães, que foi mais sugestionada à distância do que propriamente influenciada pelo contexto arte pop desse período.

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Retrato de família (1968), José de Guimarães

“O meu mundo não foi influenciado pela pop”, diz-nos ela, recordando que quando foi a Paris pela primeira vez, aos 17 anos, os museus que visitou ainda não transpiravam pop. “Agora é verdade que a realidade aqui era acinzentada e havia uma necessidade de reagir a ela. O exterior não era muito agradável, mas o meu interior não era cinzento e tratava de o expressar”, afirma, mencionando como exemplo uma obra sem título de 1970, exposta na primeira sala, onde se vislumbra uma figura feminina num Mini. “Sou eu”, aponta, “no contexto de uma viagem com uns amigos a Torremolinos, Espanha. Aquela pintura nasceu ali, naquele carro.”

Muitos dos trabalhos agora expostos da sua autoria são-no pela primeira vez. “Este país é assim, tem dificuldade em valorizar algumas coisas”, diz. E não é a única nessa condição. Há também esculturas inéditas de João Cutileiro ou obras raramente vistas de Clara Menéres, Maria José Aguiar e Fátima Vaz, assim como outras de Ana Vieira, Lourdes Castro, Paula Rego, Menez ou Ana Hatherly. “Esta exposição é interessante, porque fixa uma memória”, reflecte Teresa Magalhães. “Falta-nos isso. Os traços de arte contemporânea desta fase que aparecem por aí são muito esporádicos.”

Da mesma opinião é José de Guimarães (Guimarães, 1939): “Foi feito aqui um bom trabalho de pesquisa e documentação. As pessoas não imaginam a quantidade de obras inéditas que há nos ateliers dos artistas. E esta exposição é um caso exemplar. Há aqui imensas obras que estão a ser mostradas pela primeira vez. Esse trabalho de pesquisa é fundamental. Percebe-se que a pop não é exclusiva de Londres ou Nova Iorque. Em Portugal os artistas estavam informados do que se passava.”

Uma das peças mais interpeladoras da exposição é Retrato de família (1968), precisamente de José de Guimarães, que esteve “esquecida” durante três décadas. “Fi-la em Angola, em 1968, quando lá estava e foi mostrada no museu de Luanda”, recorda, explicando que era uma reflexão sobre “aquilo que acontecia com as famílias portuguesas quando iam para Angola ou vinham para Portugal, trazendo os seus haveres nos caixotes”. O artista trouxe os objectos que a constituem para Portugal, mas nunca mais a expôs, até que Vicente Todolí e João Fernandes, em 1999, ao prepararem a exposição Circa 68 em Serralves, a viram num catálogo e pediram a Guimarães para a reconstituir. “Acabei por refazer os caixotes e a peça voltou a ter vida. Estava esquecida. Em Portugal ninguém sabia que existia. Agora pertence a Serralves e está ali exposta.”

Artistas como José de Guimarães sabiam o que se passava internacionalmente. Outros como Teresa de Magalhães percepcionavam-no. “O país era silenciado, periférico e cinzento, mas estava ansioso pela respiração pop londrina”, reflecte Ana Vasconcelos. “Nas Escola de Belas-Artes ninguém falava do momento internacional, mas havia pessoas muito bem informadas e os sintomas estavam aí.” Agora estão na Gulbenkian.