A legitimidade de Díaz-Canel virá dos resultados, e não do nome ou da retórica

O professor da Universidade Internacional da Florida, Michael Bustamante, diz que o próximo chefe de Estado cubano não será um Gorbachov.

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O futuro de Cuba está em construção Adriano Miranda

O professor do departamento de História da Universidade Internacional da Florida (EUA), especialista em Cuba, diz que o contexto internacional, marcado pela crise da Venezuela, a principal fornecedora do regime cubano, e pelo afastamento dos Estados Unidos após as promessas de Obama, condiciona a acção da nova liderança do país. E apesar da pressão para as reformas, principalmente da economia, Bustamante entende que o futuro Presidente Miguel Díaz-Canel demorará algum tempo a construir coligações e afirmar a sua legitimidade.

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O professor do departamento de História da Universidade Internacional da Florida (EUA), especialista em Cuba, diz que o contexto internacional, marcado pela crise da Venezuela, a principal fornecedora do regime cubano, e pelo afastamento dos Estados Unidos após as promessas de Obama, condiciona a acção da nova liderança do país. E apesar da pressão para as reformas, principalmente da economia, Bustamante entende que o futuro Presidente Miguel Díaz-Canel demorará algum tempo a construir coligações e afirmar a sua legitimidade.

Consegue prever alguma mudança de rumo em Cuba com o processo de transição de poder de Raúl Castro para Miguel Díaz-Canel?
Não consigo. Não penso que vá haver mudanças, pelo menos não imediatamente e também não no curto prazo. Penso que um dos desafios que Díaz-Canel enfrenta é o facto de Raúl Castro não se reformar inteiramente: ele vai permanecer como primeiro secretário do Partido Comunista de Cuba, que é um papel muito influente: quão influente ele vai escolher ser, ainda está por descobrir. Mesmo que o novo chefe de Estado tivesse um plano dramaticamente diferente — e eu não penso que seja esse o caso — essa pessoa teria que cautelosamente construir uma coligação e tentar unir diferentes sectores do Governo em torno de uma visão comum. Se Díaz-Canel tem uma visão do que pretende fazer, e de como pretende resolver os problemas que existem, ainda demorará algum tempo até isso se manifestar. Veja-se o que aconteceu quando Raúl Castro chegou ao poder em 2006, primeiro provisoriamente porque o seu irmão ficou doente. Só em 2010 é que ele começou a movimentar-se de forma mais séria na frente económica. Demorou algum tempo.

Mas pensa que o actual contexto de transferência do poder das mãos dos veteranos líderes revolucionários pode ir mais além do que uma simbólica mudança geracional?
Sim, penso que com o tempo poderá acabar por ser, mas ninguém tem uma bola de cristal que permita afirmar que isso vai acontecer. Certamente não me parece que Díaz-Canel será um Gorbatchov, não é disso que se trata. Ele é alguém que tem vindo a sublinhar a importância da continuidade. Mas por outro lado, o tipo de processo de reforma económica que o Governo de Raúl Castro lançou, ainda tem muito por fazer. Algumas das coisas mais difíceis dessa agenda, que ainda é a visão política oficial do Estado, agora vão cair no colo de Díaz-Canel — e algumas são bem urgentes. Por isso penso que ele, a determinada altura, terá de agir para resolver algumas destas questões. Se a acção for satisfatória e ele tiver sucesso, conseguirá afirmar a sua legitimidade. A sua legitimidade terá de ser sustentada pelos resultados que vier a demonstrar, não virá do reconhecimento do seu nome ou da sua retórica.

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As pessoas sabem quem ele é, mas não conhecem exactamente as suas ideias ou o que pretende fazer. 
Exactamente. Mas por outro lado, se ele tivesse aparecido muito publicamente a dizer “eu acho isto”, e isso fosse diferente do que está agora vigente, não se encontraria na posição em que se encontra. Portanto vamos mesmo ter de esperar para ver. Ele é alguém que vem do interior do partido, Raúl Castro claramente confia nele para o ter escolhido como o próximo líder. Mas há algumas questões prementes, sobretudo ligadas à economia que ele vai ter de resolver rapidamente e que vão constituir um grande desafio.

Na sua opinião que é o maior desafio? E será que o novo Presidente de Cuba terá a vontade e as condições políticas necessárias para o resolver?
Aquilo que me parece ser mais importante resolver é a situação das duas moedas. O problema — e a dificuldade para a economia — não é existirem duas moedas, mas existirem duas taxas de câmbio: a da rua, e aquela em que opera o sector estatal gerido pelo Governo. Essa taxa para o sector estatal é muito favorável, de tal maneira que cria uma almofada que faz com que as empresas estatais pareçam estar em muito melhor estado do que aquele em que se encontram. E isso tem um efeito nefasto de proteger e favorecer indústrias ou empresas estatais que são altamente ineficientes.

O Governo cubano já há um bom número de anos que anda a falar na necessidade de o sector estatal se tornar mais eficiente, mais produtivo, etc, etc, mas, a não ser que se livre desta falsa almofada monetária, nunca conseguirá chegar a esse momento da verdade de que precisa. Por outro lado, fazer isso é muito difícil porque se acabarem com este sistema monetário que sustenta o sector estatal, e as empresas ou indústrias forem à falência e fecharem, para onde irão todas as pessoas que lá trabalham?

A solução seria irem para o sector privado, mas actualmente a atitude não parece ser de favorecimento de maior abertura no sector privado. Aliás, nos últimos tempos o Governo carregou no botão de pausa na expansão do sector privado.

Portanto, o novo Presidente tem de tratar da questão monetária. Os dirigentes cubanos disseram a uma delegação do Congresso dos EUA que visitou a ilha no início do ano que tencionavam avançar com a reforma monetária ainda em 2018. Mas não sabemos se isso irá mesmo acontecer, nem sabemos como tencionam fazê-lo.

Esta é uma questão fulcral para a autonomia e a saúde económica de Cuba a longo prazo. Mas como gerir o processo sem provocar demasiada disrupção, tanto para a economia como para a vida quotidiana dos cubanos é muito muito difícil: o que estamos a falar é essencialmente de uma desvalorização. Se se desvalorizar a moeda que sobrar em Cuba, os preços dos bens importados vão disparar e os cubanos dependem dos produtos importados para sobreviver. Portanto, esse processo vai afectar muito o bolso dos cubanos. E do ponto de vista político, é uma coisa extremamente complicada para um novo Governo ter no colo.

Pensa que esse poderá ser o grande teste para a nova liderança? Ou será outra coisa?
Não tenho a certeza que esse seja o único teste, ou o factor decisivo. Penso que a questão da moeda será crucial e terá de ser resolvida. Díaz-Canel entra agora teoricamente para um período de cinco anos e por isso poderá ser quando ele quiser e entender. Esse é um desafio central, mas existem outros, que têm a ver com as principais interrogações que ainda existem. Por exemplo, qual vai ser o futuro do sector privado? Parte do modelo da reforma económica promovida por Raúl Castro passou pela constatação de que o Estado não podia manter o mesmo nível de envolvimento na economia e portanto foi preciso despedir uma série de trabalhadores do Estado e abrir espaço no sector privado para eles.

Esse processo avançou com um passo à frente e outro atrás. E ultimamente — porque algumas pessoas em Havana se tornaram muito bem-sucedidas porque o turismo está a crescer —, gerou muita angústia no seio dos defensores das guerras culturais do socialismo cubano. E eles têm alguma razão, quando se vêem as disparidades que agora existem entre aqueles que encontraram o seu nicho no sector privado e aqueles que não tiveram essa oportunidade. A minha única preocupação é que não existe um plano alternativo que esteja a ser proposto ou articulado. O sector privado, com todos os seus defeitos, estava a criar postos de trabalho. Mas a emissão de licenças para a abertura de novos negócios está congelada desde Agosto. Toda a gente está apreensiva e sem saber o que vai acontecer.

A impressão que se tem em Cuba é que a população está mais preocupada com a situação económica do que com as circunstâncias políticas. Nota-se algum ressentimento, que parece ter a ver com o acesso ao consumo e não com a natureza do regime. Acha que o descontentamento pode originar algum tipo de crítica ou questionamento do Governo?
Não creio. Existe um debate nos círculos governamentais e também na rua sobre a questão da desigualdade. Esse debate não é novidade. Uma das esquizofrenias fundamentais da situação económica cubana vem dos anos 90, quando o sistema monetário dual foi introduzido e começou a abertura ao turismo. A divisão básica entre aqueles que têm um pé no sector do turismo e os que têm familiares no estrangeiro que lhes mandam dinheiro, e os que não têm, já vem desde aí. Com a proliferação de empreendedores privados, o que aconteceu foi uma mudança de grau, e também da visibilidade desta divisão.

Eu partilho dessa preocupação sobre a desigualdade: há problemas sérios quando se vai a muitos destes novos negócios, bares, restaurantes, etc, e se vê uma nova geração de funcionários, todos jovens, brancos, bonitos. Claro que é uma generalização, mas que em traços largos é verdadeira. E isso provocou discussões terríveis, nos fóruns governamentais e da sociedade civil, sobre os eixos destas desigualdades que se acentuam. É um problema sério.

Mas qual é a alternativa? O meu problema, e o de muitos cubanos, incluindo os que trabalham no sector privado, é que não existe alternativa. Isto vai fazer-me soar mais neoliberal do que penso que sou, mas não considero que restringir as licenças, ou aumentar as taxas fiscais e subir os impostos sem transparência, vai resolver o problema. Há que alargar o acesso, há que garantir que há mais vencedores do que perdedores nesta situação e penso que isso só com a expansão do sector privado e com regulação, em vez de com restrição das licenças, ou com uma microgestão que limita o tipo de actividades que as pessoas podem exercer. Ainda existe uma vasta economia subterrânea, e que poderia muito facilmente emergir.

Não deixa de ser surpreendente a aparente tolerância do Governo com a economia paralela e um mercado negro que funciona de forma tão descarada.
É totalmente às claras. Só não sei se lhe chamaria exactamente tolerância. O Governo certamente não gosta desta situação, mas não tem capacidade para travar o mercado negro. O outro problema com o discurso crítico do sector privado tem a ver com as acusações de que existe corrupção, evasão fiscal, ilegalidades… Claro que há, o que é que esperavam? Nos EUA, é conhecimento comum que quem serve à mesa e ganha o seu dinheiro com gorjetas em dinheiro é suposto declarar esse rendimento ao fisco, mas fazem realmente isso? Provavelmente não fazem, pelo menos não na totalidade. E numa economia que ainda funciona basicamente em cash, estavam à espera de quê? O que eu digo é: invistam na criação de uma infra-estrutura bancária e depois exijam que as pessoas criem contas para os seus negócios. Mas não façam bodes expiatórios das pessoas que só estão a responder a incentivos que são lógicos. E que estão a recorrer a um mercado negro que depende do sector estatal. O mercado negro não existiria, particularmente para certas mercadorias como a gasolina, se certos trabalhadores estatais não roubassem nos seus trabalhos. Ou seja, para dançar o tango são sempre precisos dois bailarinos.

O novo Governo toma posse num momento em que a Venezuela atravessa uma profunda crise interna e está isolado internacionalmente. E também numa altura em que a détente e reaproximação anunciada pelos EUA com Barack Obama foi trocada por Donald Trump pela antiga hostilidade. Qual o impacto que este contexto externo pode ter em termos da margem de manobra que o novo Governo terá?
Diminui a margem de manobra e aumenta a incerteza. E temo que também aumente a probabilidade de que as pessoas no interior do aparelho do Governo que estão mais inclinadas a voltar atrás no tempo e travar algumas das reformas tenham uma plataforma e ganhem protagonismo. A História mostra que quando o Governo cubano se sente pressionado ou mais isolado, por mais fragilizado que esteja (e está), tem tendência a voltar a entrincheirar-se e a proteger-se, ideologicamente, politicamente, retoricamente.

No último ano certamente notei um aumento da retórica vinda de Cuba que está ao mesmo nível do aumento da retórica inflamada vinda dos EUA. Isso tem um efeito, internamente, em termos do espaço que o Governo cubano e a sociedade civil tinham para advogar um novo caminho reformista, a construir gradualmente. Na realidade penso que é isso que todos desejam. Ninguém está interessado ou quer uma terapia de choque, e ninguém quer que as coisas não mudem e fiquem como estão. Mas o actual ambiente internacional, na minha opinião, é tóxico em termos das perspectivas para uma mudança em Cuba, num sentido ou noutro.

A outra coisa é que este contexto externo torna esse processo de mudança muito difícil do ponto de vista material. O efeito da crise na Venezuela não é só político e ideológico, é sobretudo económico. O declínio dos laços comerciais e do valor das trocas com a Venezuela fez com que Cuba esteja a ter muitas dificuldades em pagar as suas importações. Não é o cenário macroeconómico mais ideal para embarcar na reforma do sistema monetário — teria sido preferível, para lidar com algo tão desafiador, que o ambiente externo fosse mais favorável e estável. Mas não é. E por isso já ouvi várias pessoas lamentarem “porque não tratamos disto durante os gloriosos dias de Obama”?

Que não foram assim tão gloriosos, foi um período curto.
Sim, foi um período curto. Mas chamou a minha atenção que quando Trump foi eleito, em Novembro de 2016, os cubanos de repente aumentaram a velocidade do ritmo das negociações com o Governo dos EUA e as empresas americanas num número de coisas. Havia uma sensação, na altura, e penso que ainda existe, que as pessoas tinham deixado as coisas arrastar-se um bocadinho e atrasado a conclusão de processos porque ninguém acreditou que Donald Trump pudesse ganhar as eleições. E agora estão a pagar a factura.