Falta visão à indústria do leite

Em Portugal, o sector do leite insiste em ignorar todos os sinais de mudança do mercado e tem apostado reiteradamente em campanhas publicitárias que saturam o consumidor de informação

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Imoflow/Pixabay

A queda do consumo de leite é um fenómeno que se tem verificado em toda a Europa, mas de forma mais pronunciada em Portugal, onde se tem registado uma diminuição abrupta nos últimos anos. De acordo com o INE, o consumo de leite em Portugal baixou 17% entre 2010 e 2016. Em 2017, baixou um milhão de litros por mês, prolongando a tendência que não dá sinais de se reverter.

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A queda do consumo de leite é um fenómeno que se tem verificado em toda a Europa, mas de forma mais pronunciada em Portugal, onde se tem registado uma diminuição abrupta nos últimos anos. De acordo com o INE, o consumo de leite em Portugal baixou 17% entre 2010 e 2016. Em 2017, baixou um milhão de litros por mês, prolongando a tendência que não dá sinais de se reverter.

A reacção da indústria do leite a sucessivas recessões do consumo tem sido uniforme, previsível e sem lugar para inovação. Demonstra sentir-se ameaçada e alega repetidamente existirem campanhas de desinformação que espalham “mitos e inverdades” sobre o leite — demonizando o produto —, e aponta o dedo aos interesses comerciais da competição.

Sabemos, todavia, que existe um espectro de razões que podem levar um consumidor a retirar o leite da sua alimentação e que sustentam a redução do consumo. Uma das principais é a saúde, nomeadamente a prevalência da intolerância à lactose em Portugal e em todo o mundo; sabemos que cerca de 65% da população mundial tem intolerância a este açúcar presente no leite. Ademais, os estudos científicos dos últimos anos têm vindo a associar riscos de saúde ao consumo regular de leite, como a potenciação do cancro dos ovários ou da próstata, conforme cientistas da Universidade de Harvard salientam. Esta informação, obtida de fontes credíveis, pode obviamente levar consumidores a tomar a decisão preventiva, que é seu direito, de optar por alternativas ao leite.

Se por um lado é verdade que os detractores do leite por vezes utilizam argumentos falaciosos, não suportados pela ciência, que se encontram de forma profusa em redes sociais, isso não explica só por si as mudanças drásticas nos hábitos de milhares de portugueses. E não é menos verdade que o sector do leite pode ser também colocado sob a mira, ao exagerar a importância dos lacticínios na alimentação humana. Analisemos a veracidade da afirmação de que o leite é essencial e imprescindível, conforme esta indústria frequentemente alega. Apesar da absorção de cálcio ser essencial à optimização da saúde óssea, sobretudo no período infantil, este pode ser obtido de um grande leque de alimentos, como as couves verdes, as leguminosas, frutos secos, cereais integrais e outros produtos fortificados com cálcio (bebida vegetal, tofu, etc.).

Coincidentemente, ou não, o consumo de bebidas vegetais (como soja, arroz, amêndoa, espelta, côco) tem disparado sem parar; só em 2015, o consumo do leite de soja aumentou em 19%.

Grandes empresas deste sector, como a Alpro, revelam ter registado um crescimento de 20% por ano no mercado português. E apareceram empresas portuguesas a apostar nesta inovação do sector, como a Nutre, que já domina cerca de 70% do mercado nacional.

Com o crescimento gradual e estável do mercado de produtos naturais e de alternativas ao leite, tendência que não parece esmorecer, a sobrevivência do sector dos lacticínios exige uma compreensão das reais motivações de milhares de consumidores e dos factores impulsionadores da mudança, ao contrário de uma subsidiação exaustiva e insustentável.

Acima de tudo, requer uma visão a longo prazo e a capacidade de adaptação a transformações sociais e culturais, que se traduzem nas mudanças de hábitos de consumo. Veja-se o caso da Danone, a gigante multinacional dos lacticínios, que recentemente fez a aquisição da marca norte-americana Silk, assim como da Alpro, empresa belga e uma das maiores produtoras mundiais de bebidas vegetais, num negócio que chegou aos 12 mil milhões de euros.

Em Portugal, o sector do leite insiste em ignorar todos os sinais de mudança do mercado e tem apostado reiteradamente em campanhas publicitárias que saturam o consumidor de informação, do já mais que visto. Apesar da indústria do leite bombardear os consumidores com anúncios publicitários, isso parece pouco ter abonado a favor deste sector, em contínua depressão.

Talvez esteja na altura de olharem mais além e chegar à compreensão de que o aumento da procura por bebidas vegetais não é uma ameaça ao sector, mas sim uma oportunidade de mercado para inovar. De momento, falta visão de mercado ao sector do leite.