A intervenção ocidental na Síria: abandonar os curdos, deixar à solta os islamistas-jihadistas
Numa época em que as democracias liberais estão a perder atracção, a instrumentalização humanitária para intervenções militares erráticas, diminui, ainda mais, a sua credibilidade no mundo.
1. As armas químicas são proibidas pelo Direito Internacional Humanitário. Não há qualquer dúvida de que o seu uso é uma violação das leis da guerra. Os seus efeitos são horríveis nos seres humanos. Assim, na guerra da Síria, a boa consciência ocidental traçou “linhas vermelhas” ao seu uso por Bashar al-Assad. Mas a memória é curta e os critérios variáveis ao sabor das circunstâncias e de quem as usa. Nos anos 1980, durante a carnificina da guerra entre o Iraque e o Irão, as armas químicas foram amplamente usadas. Pior ainda, se os factos que vieram a público são sólidos, com conivência ocidental. Num artigo de investigação a revista norte-americana, Foreign Policy, denunciava o que terá sido um apoio (indirecto) ao seu uso — ou, pelo menos, um conveniente ignorar —, pelo Iraque de Saddam Hussein contra o Irão do Ayatollah Khomeini. (Ver “CIA Files Prove America Helped Saddam as He Gassed Iran” in Foreign Policy, 26/08/2013). Vale a pena lembrar o contexto em que surgiu o artigo. No Verão de 2013 o governo de Barack Obama ponderava intervir militarmente na Síria, após um ataque com armas químicas pelas forças governamentais. As palavras iniciais desse texto ressoam com uma impressionante actualidade: “O governo dos EUA pode estar a considerar uma acção militar em resposta a ataques com armas químicas perto de Damasco. Mas há uma geração atrás os meios militares e de informações norte-americanos sabiam e não fizeram nada para impedir uma série de ataques com gases [agentes] nervosos muito mais devastadores do que qualquer coisa que a Síria tenha visto.” No actual caso, há mais uma questão incómoda: se os EUA, o Reino Unido, ou a França sabiam que o governo sírio escondia armas químicas — e os locais onde o fazia —, qual a razão pela qual não actuaram, de forma prévia, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, apresentando provas e pressionando publicamente o governo sírio e a Rússia para destruir esse armamento? Se actuassem assim mostrariam genuína preocupação humanitária. E é razoável admitir que se poderiam até ter poupado as vidas dos que morreram em Douma, a 7 de Abril.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
1. As armas químicas são proibidas pelo Direito Internacional Humanitário. Não há qualquer dúvida de que o seu uso é uma violação das leis da guerra. Os seus efeitos são horríveis nos seres humanos. Assim, na guerra da Síria, a boa consciência ocidental traçou “linhas vermelhas” ao seu uso por Bashar al-Assad. Mas a memória é curta e os critérios variáveis ao sabor das circunstâncias e de quem as usa. Nos anos 1980, durante a carnificina da guerra entre o Iraque e o Irão, as armas químicas foram amplamente usadas. Pior ainda, se os factos que vieram a público são sólidos, com conivência ocidental. Num artigo de investigação a revista norte-americana, Foreign Policy, denunciava o que terá sido um apoio (indirecto) ao seu uso — ou, pelo menos, um conveniente ignorar —, pelo Iraque de Saddam Hussein contra o Irão do Ayatollah Khomeini. (Ver “CIA Files Prove America Helped Saddam as He Gassed Iran” in Foreign Policy, 26/08/2013). Vale a pena lembrar o contexto em que surgiu o artigo. No Verão de 2013 o governo de Barack Obama ponderava intervir militarmente na Síria, após um ataque com armas químicas pelas forças governamentais. As palavras iniciais desse texto ressoam com uma impressionante actualidade: “O governo dos EUA pode estar a considerar uma acção militar em resposta a ataques com armas químicas perto de Damasco. Mas há uma geração atrás os meios militares e de informações norte-americanos sabiam e não fizeram nada para impedir uma série de ataques com gases [agentes] nervosos muito mais devastadores do que qualquer coisa que a Síria tenha visto.” No actual caso, há mais uma questão incómoda: se os EUA, o Reino Unido, ou a França sabiam que o governo sírio escondia armas químicas — e os locais onde o fazia —, qual a razão pela qual não actuaram, de forma prévia, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, apresentando provas e pressionando publicamente o governo sírio e a Rússia para destruir esse armamento? Se actuassem assim mostrariam genuína preocupação humanitária. E é razoável admitir que se poderiam até ter poupado as vidas dos que morreram em Douma, a 7 de Abril.
2. “Um ataque perfeitamente executado na noite passada. Obrigado à França e ao Reino Unido pela sabedoria e pelo poder dos seus excelentes exércitos. Não poderia ter tido um resultado melhor. Missão cumprida!”. Foi esta descrição do bombardeamento ocorrido na madrugada de 14 de Abril, por Donald Trump, em mais um “tweet” (Ver “Syria air strikes: Trump hails 'perfect' mission” in BBC, 14/04/2018). Os alvos atacados na Síria, segundo informação do Ministério da Defesa dos EUA (o Pentágono), estavam todos ligados ao programa governamental de armas químicas: um centro de investigação militar em Barzeh, nos arredores de Damasco; um depósito na zona de Homs; e ainda um armazém de armamento químico e um posto de comando militar, também situados na região de Homs. (Ver “Pentagon: Syria strikes took out the ‘heart’ of Assad’s chemical weapons program” in Washington Post, 14/04/2018). Na versão dos EUA, o ataque foi totalmente eficaz: os 105 mísseis lançados terão atingido os seus alvos sem qualquer intercepção das defesas anti-aéreas sírias. (Ver comunicação para a imprensa do general Kenneth McKenzie “Pentagon says they hit every target in Syria” in CNN 14/04/2018).
3. Como em todas as guerras reais, há uma guerra de informação paralela que obscurece os factos e dificulta a apreciação objectiva do que ocorreu. A Rússia relata os bombardeamentos de forma substancialmente diferente das potências ocidentais, quer quanto à sua legitimidade, quer quanto à sua eficácia. Vladimir Putin acusou os EUA e os seus aliados de violarem o Direito Internacional, ao actuarem unilateralmente sem uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Num tom cáustico, denunciou “uma agressão contra um Estado soberano que está na vanguarda da luta contra o terrorismo.” (“US-led strikes in Syria without UNSC mandate a violation of international law – Putin” in RT News, 14/04/2018). Também a eficácia militar dos bombardeamentos foi contestada. O ataque teria sido, em grande parte, repelido pelas defesas anti-aéreas sírias, as quais teriam destruído 70% dos mais de cem mísseis lançados sobre o seu território. (Ver “71 Out of 103 Destroyed: Here's How Syria's Air Defense Repelled West's Missiles” in Sputnik 14/04/2018). A reacção do Irão, o outro grande apoio internacional de Bashar al-Assad, foi muito similar à da Rússia. O Ayatollah Khamenei “condenou os ataques aéreos conjuntos dos EUA, Reino Unido e França à Síria”, qualificando-os como um “crime” de guerra. (Ver “Ayatollah Khamenei: US, UK, French attack on Syria ‘a crime’ in PressTV, 14/04/2018). Aspecto politicamente relevante, a frente Rússia-Irão-Turquia abriu brechas, com esta última a (re)posicionar-se oportunisticamente no campo ocidental. Para além do impacto do bombardeamento no deteriorar das relações do Ocidente com a Rússia (e o Irão), este é outro aspecto importante a analisar.
4. O bombardeamento ocidental tornou demasiado evidente o jogo duplo da Turquia — um aliado pouco confiável — na guerra da Síria. (Ver “Turkey welcomes US-led strikes targeting Assad regime in Syria” in Hürriyet Daily News, 14/04/2018). O governo turco congratulou-se com a operação militar que “aliviou a consciência da humanidade em face do ataque em Douma, largamente suspeito de ter sido realizado pelo regime”. Na realidade, o objectivo primeiro da Recep Tayyip Erdogan sempre foi mudar o regime de Bashar al-Assad. Não por quaisquer razões democráticas, ou porque o autoritarismo sírio o incomodasse. A ideia era transformar a Síria num Estado-cliente, com um regime islâmico sunita que a Turquia pudesse controlar. A intervenção militar russa em 2015 levou ao falhanço desse grande objectivo. Numa reviravolta de política externa, a Turquia realinhou-se com a Rússia e o Irão. Queria, pelo menos, ter uma esfera de influência na Síria, na sua zona fronteiriça, eliminando as pretensões de autonomia dos curdos. Agora vê na política errática de Donald Trump uma oportunidade de voltar à ambição inicial. Este ordenou o bombardeamento de alvos governamentais ao mesmo tempo que pretende retirar as tropas do Norte da Síria, abandonando, na prática, os curdos. (Ver “Trump Drops Push for Immediate Withdrawal of Troops From Syria” in New York Times, 4/04/2018). Nikki Haley, a embaixadora norte-americana nas Nações Unidas, afirmou, no entanto, após os bombardeamentos, que só haverá retirada quando os objectivos forem atingidos (derrotar o Daesh, garantir o não uso de armas químicas e vigiar o Irão), mas entre eles não está a protecção dos curdos. (Ver "U.S. troops not leaving Syria until goals accomplished: Haley" in Reuters, 15/04/2018). Com tantas vozes dissonantes, é difícil perceber qual a estratégia dos EUA, se é que existe. Sintomático, também, é que o Exército Livre da Síria — a suposta organização de combatentes pela democracia contra Bashar al-Assad, elogiada no Ocidente — se tenha transformado num nome de conveniência para uma multiplicidade de grupos, alguns de tipo islamista-jihadista. Nesta altura, a sua grande tarefa é ajudar a Turquia na guerra contra os curdos em Afrin e outras áreas. (Ver “A profunda transformação do Exército Livre da Síria” in Deutsche Welle, 5/02/2018).
5. Para além da Turquia, a quem favorece, na prática, o bombardeamento ocidental? Pouco ou nada vai alterar do sofrimento das populações civis, o seu suposto objectivo principal. Importa lembrar que o ataque com armas químicas de Douma, em Ghouta oriental, nos arredores de Damasco — o qual justificou o bombardeamento —, deu-se numa área controlada pelos islamistas-jihadistas do Jaysh al-Islam (Exército do Islão). Ironicamente, Mohammed Allouche, líder político do Jaysh al-Islam, qualificou o bombardeamento de represália ocidental como uma “farsa”. Motivo: não derrubou Bashar al-Assad. (Ver “Frappes en Syrie: une ‘farce’ tant qu'Assad reste au pouvoir, selon les rebelles de Douma” in L’ Orient-Le Jour, 14/0472018). As declarações de frustração denotam a estratégia do Jaysh al-Islam, grupo apoiado pela Arábia Saudita. O seu intuito era provocar uma crise humanitária que, pelo seu impacto na opinião pública ocidental, levasse a uma intervenção externa contra Bashar al-Assad. (Ver “Syrie: qui sont les rebelles dans la Ghouta orientale? in Le Figaro, 1/03/2018). Em parte, foi bem-sucedido neste jogo cínico de arrastamento para a guerra. Na Síria, o Ocidente devia ter bem claro que os curdos são provavelmente os únicos que lutam por uma causa justa. Tiveram um papel decisivo na derrota do Daesh, quando tiveram de resistir, quase sozinhos, à sua barbárie, durante os anos de 2014 e 2015. Intervir militarmente não a favor dos curdos e deixando, objectivamente, outros grupos islamistas-jihadistas à solta (Jaysh al-Islam, Frente al-Nusra / Tahrir al-Sham, etc.), não faz sentido, nem em termos morais, nem em termos estratégicos. Numa época em que as democracias liberais estão a perder atracção, a instrumentalização humanitária para intervenções militares erráticas, diminui, ainda mais, a sua credibilidade no mundo.