A glória e a ruína da vila onde Portugal se tratou

Vestiu-se de cidade grande e fez-se epicentro da cura da tuberculose em Portugal. O Caramulo guardou a maior estância sanatorial da Península Ibérica. Viu morte e devolveu vida. Depois, caiu em ruínas. A ansiar um resgate do esquecimento. Retrato da vila mágica pelas linhas do romance A Febre das Almas Sensíveis, de Isabel Rio Novo

Foto

Estacionou os sonhos para guardar a vida.
Tinha despistado a doença há quatro anos, cavalgado as amarguras de tratamentos dolorosos, suportando rotinas hospitalares. Mas a duas cadeiras de conseguir o seu diploma de médico, enfraqueceu de novo. Tuberculose. O medicamento que havia tomado antes já não era eficaz. E a nova droga depressa perdeu a batalha com os bacilos. O diagnóstico foi comunicado sem subtilezas a um dos irmãos mais velhos: “Disse-lhe que ia morrer.” À rendição da medicina acudia a crença no poder curativo do descanso prolongado, da comida certa, dos ares de uma serra afamada no centro do país.
— Tens de ir para o Caramulo.
As palavras do irmão instalaram o medo.
O curso inacabado. O sofrimento. A morte. António Passos Coelho pediu duas semanas. Seria o suficiente para completar as disciplinas em falta. Mas a medida do tempo, explicou-lhe o seu tisiologista em jeito de ultimato, era agora outra. “Tu queres morrer médico, é? Se queres, está bem...”
Estacionou os sonhos.

Naquela década de 1950, o Caramulo vivia os seus anos de glória. Terra rural onde no início do século existiam apenas algumas casas da povoação e um punhado de construções simples para comércio e acolhimento de doentes em convalescença, tinha-se transformado em geografia central para combater a “tísica”, o nome pelo qual era inicialmente apelidada a doença. A narrativa havia começado anos antes. Jerónimo Lacerda conhecia a fama de “bons ares” do Caramulo desde menino, quando, com o pai, delegado de saúde, percorria quilómetros infindos pela serra. Já homem feito, ao regressar a Portugal depois de uma passagem por Angola e por solos europeus, o médico formado em Coimbra trazia planos de ali construir um hotel para hóspedes com fraquezas.

A Sociedade do Caramulo nasce em Dezembro de 1920 e menos de dois anos depois está a abrir as portas do seu Grande Hotel. Por esta altura, fintava-se a carga negativa da doença e da palavra “sanatório” e ignorava-se que pudesse ser esse o fim último do espaço. Não se falava ainda em destino para tuberculosos. Mas a “peste branca” assolava o país, a Europa, e o número de tísicos internados no Caramulo aumentava de ano para ano. No início dos anos 30, as estatísticas oficiais apontavam para 13 mil mortes anuais em Portugal. Com a Guerra Civil de Espanha, primeiro, e a Segunda Guerra Mundial, mais tarde, muitos tuberculosos dos grandes sanatórios europeus rumaram a Portugal. E a obra de Lacerda foi reflectindo as mudanças e o crescente desespero na nomenclatura: em 1928, passa a chamar-se Grande Hotel Sanatório. Em 1933, apenas Grande Sanatório.

Era, na verdade, mais do que isso. Na pequena localidade do distrito de Viseu nasceu uma estância sanatorial que chegou a ter 20 pólos. A Sociedade do Caramulo construiu uma rede de distribuição de água, barragem própria, rede de esgotos, centro de tratamento e incineração de lixos, uma estrutura para recuperação das águas contaminadas, estrada alcatroada até Campo de Besteiros, posto de correios, central telefónica, matadouro, escola primária. No Grande Sanatório — enorme edifício de três pisos, dois corpos laterais, águas furtadas e galerias à volta — havia bloco operatório, laboratório de análises clínicas, serviço de radiologia, farmácia central, consultório de estomatologia, zona de esterilização de louças. E bibliotecas, salas de jogos, um ecrã gigante onde chegavam as produções cinematográficas estreadas nas salas do país, mais tarde um cineteatro.

Ali curava-se gente. Ali morria gente.
António Passos Coelho sabia-o bem. Fez a viagem de Lisboa para o Caramulo a mastigar o medo. Filho de um lavrador e de uma professora primária de uma vila transmontana, estudou em casa, à boleia dos nove irmãos e da ambição de chegar à Faculdade de Medicina. “Estudava 14, 15, 18 horas por dia. E mal comido. Nem tinha o que vestir.” Completou o liceu sem professores. E na capital iniciou o sonho de menino insubmisso a destinos formatados. Mas, contra a doença, pouco podia. Desesperados com a fragilidade do estudante de 25 anos, os médicos do Caramulo quiseram fazer-lhe uma toracoplastia, corte de várias costelas que procurava fechar as cavernas pulmonares. Ele recusou. “Impressionava-me tirar as costelas... Preferia morrer.” Fez uma cura intensiva. Só podia levantar-se para comer e ir à casa de banho. O resto do tempo estava deitado, a dar descanso aos pulmões. “Pensei que enlouquecia ao cabo de um mês, dois...” Aos poucos, ganhou algum fôlego. O suficiente para fazer uma operação alternativa. “Tenho cá óleo”, aponta para o pulmão esquerdo, ao recordar a cirurgia que lhe devolveu os sonhos.
Eram, por vezes, experiências desesperadas.

Sabia-se pouco e tentava-se tudo. Os médicos propalavam mil recomendações, avançavam as hipóteses de tratamento mais extravagantes, para logo se desmentirem e recuarem. Um copo de vinho do Porto em jejum. Beber goles de petróleo. Fricções de sabão nas espáduas, duas vezes por semana, à hora de deitar, tendo o cuidado de lavar depois com água quente a parte friccionada.

A casa de Olímpia Madeira Lopes tem poiso numa serra e vista para outra. Quando chegou ao Caramulo, estava a década de 50 a meio, estranhou o frio penetrante das terras serranas. Mas encantou-se pelo manto branco que lhe caía à porta com frequência e pintava a serra da Estrela, desenhada no recorte da janela da sala. Ainda hoje gosta de a olhar dali. Sorriso avolumado, rosto que contraria os 91 anos cumpridos em Novembro, Olímpia puxa os fios à memória. “O Caramulo já foi muito bonito, já teve muita gente, muito movimento. Quando vim para cá, havia 1500 doentes, 20 sanatórios, 17 médicos.”

Uma baixa no corpo clínico da estância tinha precipitado um convite ao marido, tisiologista num sanatório de Celas, em Coimbra. E ela, já mãe de três pequenos, censurou as saudades que teria da sua cidade e aceitou a mudança. Apesar do medo. Olímpia Lopes não esquece a primeira vez que foi à missa na capela branca junto ao Grande Sanatório. Ao ver-se rodeada de desconhecidos, encolheu-se timidamente. “Para mim, era tudo tuberculoso. De maneira que apertava o nariz, punha a mão na boca.” Sorri ao recordar o gesto obtuso: “Que disparate! Foi só a primeira vez. Depois habituamo-nos. Nunca houve nada de especial.”

Carlos Alberto, o marido, era técnico nos sanatórios Lusitano e Palma. Mas tinha também um consultório privado e desbrava a serra em visitas domiciliárias que procuravam ajudar as povoações mais distantes da zona central. Até partos fazia, se calhava. Era uma outra vila, aquela. “Havia absolutamente tudo no Caramulo.”

A nossa mão e a deles

Numa aldeia próxima, Maria Domingues vivia com a família. Com seis anos, já acompanhava o padrinho nas idas ao Caramulo: “Vinha para o molhe, para cavar a terra. Não havia...” Levanta a mão direita, gesticula a explicar a falta de dinheiro da casa de pouca fartura dividida com cinco irmãos. Aos 25 anos, casou-se e mudou-se para o Caramulo. “Ainda é no tempo de estarem aqui os magalas doentes dos pulmões”, situa Maria, traje preto da cabeça aos pés, capa com capuz que só tira no Verão.

Foto

A estância era o epicentro da vida do Caramulo e aldeias vizinhas. Mesmo quem não estava internado ou não tinha lá família mantinha muitas vezes com os sanatórios uma relação profissional: ou trabalhava num ou vendia para lá os produtos cultivados. Maria Domingues, 79 anos, fazia molhos de carqueja e carregava-os às costas. “Ia ao Bela Vista, ao Santa Maria, onde me mandavam”, recorda. “Para ganhar um dinheirito para comer o pão...”

Na estrada que serpenteia a serra até ao Caramulinho, o seu ponto mais alto, 1070 metros acima do nível do mar, Maria Alice aparece entre o nevoeiro cerrado e uma chuva miudinha. Sentada numa pedra, ao lado de um casebre semidesfeito à espera de novo dono, aguarda pacientemente que meia dúzia de ovelhas aproveitem o prado verdejante. Traz galochas, capa preta, um cajado na mão. A mãe ficou viúva aos 32 anos. Ela e duas irmãs nascidas no Caramulo fizeram-se à vida. Ainda pequenina, ia descalça até à leitaria onde a mãe trabalhava, punha “um bidão de 30 litros de leite à cabeça” e batia às portas dos sanatórios para o vender.

Com os doentes, era “bom dia, boa tarde” e pouco mais. “A gente passava ao largo. Mas tive primas que trabalharam lá e nunca apanharam nada.” Maria Domingues tem explicações para a convivência sã: “Não tínhamos receio porque eles traziam uma latinha, uma caixinha, e quando vinha acima [a expectoração] botavam para dentro dessa latinha e a gente nunca tinha nojo deles”, conta a falar das escarradeiras, recipientes de cerâmica ou outro material que, nos anos de epidemia da tuberculose, eram presença habitual até em locais públicos, como teatros e igrejas. Nos correios, havia enchentes de doentes saudosos em busca do vínculo possível com a família e contornava-se o contacto com mestria: “A gente deixava-os abrir a porta, mas a nossa mão nunca chegava à deles.”

Era tal o movimento nas ruas que “tinha de se pedir licença para passar”. Palavra de Esmeralda Calheiros, 82 anos, entristecida por não se ter guardado o que importava daquele tempo a preto e branco: “Morreu muita gente, mas também se viveu muito. Tudo se governava e agora ninguém aqui se governa.” Sai de casa a passo ligeiro, sem tempo para conversa longa, que o dia é de confissão e missa e o relógio não pára. “Trabalhei nos sanatórios a fazer camas, a lavar roupa. Havia dias em que só se via sangue...” E mais não diz.

Erguer o Caramulo

No Mercado Serrano, vende-se fruta, legumes, carne, mel com carimbo local. José dos Prazeres, cabelo branco bem aparado, é o rosto da casa onde boa parte da aldeia com cerca de mil habitantes faz compras. As raízes no Caramulo vêm dos bisavós. José dos Prazeres não se deixa levar pela narrativa dominante que atribui a Jerónimo Lacerda a “fundação do Caramulo”. Em 1905, relata para provar a tese, o seu avô já tinha uma casa para arrendar a quem ia à localidade da freguesia de Guardão. “Havia meia dúzia de pessoas que já faziam turismo aqui. Esses foram os verdadeiros pioneiros”, aponta ao referir-se a casas de repouso como o Chalet de Matos e a Pensão Caramulo.

Foi, aliás, nessa pensão com o nome da serra que se alojou Margarida Castro Alves no início do século, a curar o desgosto da morte da irmã mais nova com tuberculose. E aí ter-se-á cruzado pela primeira vez com Jerónimo Lacerda, aponta o livro Caramulo — Ascensão e Queda de Uma Estância Sanatorial, do filho da terra e médico António Barros Veloso. Nessa altura, Lacerda andaria já a fazer contactos para erguer o seu projecto. Enamorou-se de Margarida. Casaram-se em 1919. Tiveram três filhos — Maria Arminda, Abel e João — e mudaram-se definitivamente para o Caramulo em 1923.

Homem carismático, com uma capacidade de liderança invulgar, Jerónimo Lacerda soube rodear-se de figuras de relevo. Foi construindo os sanatórios ao mesmo ritmo que celebrava contratos com o Estado e outras entidades, empenhados em travar a epidemia da doença: a CP, a Direcção-Geral de Assistência, os ministérios do Exército e da Marinha. Em 1938, recrutou o médico espanhol Manuel Tapia, numa jogada que concedeu ao Caramulo prestígio internacional. Antes disso, no início da década, estreitava a sua amizade com António de Oliveira Salazar, ministro das Finanças em vias de se tornar Presidente do Conselho de Ministros.

No ano em que assume o poder, a saúde de Salazar fraqueja, conta António Barros Veloso no seu livro, uma espécie de monografia do Caramulo. Com a bênção de um sacerdote de Tondela, nasce o laço entre o estadista e Lacerda, que acaba por ceder a Salazar um chalet junto à capela. Quando subia a Santa Comba Dão, era comum passar algum tempo na serra de bons ares a recuperar dos dias acelerados da capital. A amizade entre os dois vai crescendo. De tal forma que o político, pouco dado a retratos, aceita posar na casa dos Lacerdas para Eduardo Malta, que em 1933 pinta o primeiro quadro a óleo que se conhece do ditador.

No seu registo discreto, Jerónimo Lacerda apoia o Estado Novo e torna-se membro activo da Legião Portuguesa. No Caramulo, apesar do clima tolerante, o fundador da estância não deixa de tentar “afinar tudo por este ritmo novo, que se sente em todo o Portugal”, como referiu num discurso público em 1938. Foi essa simpatia pelo regime que permitiu à estância tornear dificuldades sentidas com o início da Segunda Guerra Mundial, quando a carência de alimentos se sentia em todo o país. A estância portuguesa chegou a ser a maior da Península Ibérica e medalha de prata a nível europeu.

A história sabe-a de cor José dos Prazeres. Até credita aos Lacerda o desenvolvimento da localidade rural, mas não vê a narrativa de forma linear. “Vivi esse tempo e era uma ditadura. O meu pai dizia: ‘Tenho de vender este terreno porque não tenho onde colocar os meus filhos e vou ter uma certa repressão’”, aponta. E o mesmo se passava dentro dos sanatórios, onde estava instaurado um “regime duro”.

Foto

José dos Prazeres contava 18 anos quando adoeceu. Tinha andado nas cheias de Novembro de 1967 a correr contra a tragédia que roubou mais de 500 vidas em Lisboa. Constipou-se. Mas relevou a importância dos espirros, da febre que não passava. Um dia, no Caramulo, depois de umas noitadas de bailarico e paródias, um amigo detectou-lhe o ar cansado. Tão habituado estava a ver o semblante dos tísicos que tinha aprendido a descobrir a febre a apoderar-se dos corpos.

Louça D e S

O ano de 1968 tinha começado havia poucos dias quando o diagnóstico se confirmou. Estava tuberculoso. José dos Prazeres ficou internado quase um ano no sanatório Palma. Lá, como nos outros pólos da estância, as curas tinham horas certas. De manhã, entre as 10h e o meio-dia, em ambiente relaxado. À tarde, entre as 14h e as 16h, em modo rigoroso: os doentes não podiam mexer-se, falar, ler. Às 23 horas — com excepção dos dias de cinema, em que havia meia hora de tolerância extra — davam-se três sinais de luz. Ao último já ninguém podia estar nos corredores ou fazer barulho. A electricidade disponível passava a ser fraca, não se podia ouvir música nem ler. Ainda de dia, nos intervalos dos tratamentos, os pacientes com autorização de saída enchiam a vila. Iam aos correios enviar e buscar cartas. Entravam nas lojas, nos cafés equipados com “louça D e S”, para Doentes e Saudáveis. Em alguns locais, como tabernas, tinham o acesso interdito: “Cada uma tinha um fiscal à porta e não deixavam entrar doentes.”

Aconteceu-lhe uma vez. Numa colectividade que ele próprio tinha ajudado a construir, barraram-lhe a entrada. José dos Prazeres ficou marcado pela “humilhação”: “Sabia que não me deixavam entrar. Mas como era daqui, era sócio... fui com aquela esperança. Puseram-me cá fora.”

O preconceito. Era talvez essa a dor maior.

“A partir do momento em que o doente era assumido pelas malhas do isolamento, o tempo perdia a sua grandeza matemática para se equiparar a uma estranha espécie de medida biológica, na qual a aparência radiológica dos pulmões e a quantidade de bacilos contados em cada amostra de escarro analisada determinavam o tempo que se permanecia no sanatório, a esperança de se sair de lá com vida. Um tempo rápido ou arrastado, fora das medidas humanas.”

José António Costa, “mais conhecido por Zé Tó”, cita de cor o nome dos sanatórios quando percebe ao que vem a conversa: o Santa Maria, ali ao lado, o Lusitano, mesmo atrás, o Grande Sanatório, o Sanatório Infantil, o Palma, o Salazar, o Bela Vista, o Sameiro, o Pedras Soltas... “Eram tantos... isto parecia uma cidade”, sorri por detrás dos óculos castanhos e gorro de pêlo ajustado a locais gélidos. Nascido em Castelo Branco, sabe por alto a história dos pais que se enamoraram a dois passos dali: “O meu falecido pai esteve internado aqui no Santa Maria. A minha mãe era lá empregada”, conta. “Ele tinha uns sobrinhos e dizia-lhes: ‘Chama aquela tia.’ E eles chamavam.”

A conquista original acabou em casamento. Quando o pai se curou, mudaram-se para Castelo Branco e iniciaram uma vida nova. Mas um dia, num trágico acidente, o pai morreu. E Zé Tó, menino de seis anos, mudou-se com a mãe para a terra dela. Aprendeu a lidar com os doentes sem medo, fez amigos entre eles. Já adulto, corria a década de 70, “um problema nos pulmões” obrigou ao internamento. Curou-se no ano em que a liberdade abraçou o país.

Foto

Nesses tempos, os recursos para o tratamento da tuberculose tinham avançado extraordinariamente. Se, antes de 1944, a solução não ia muito além da estadia em climas secos de média altitude, alimentação calórica e rica em proteínas e muito repouso, quando José dos Prazeres e Zé Tó adoeceram a história já era outra. A estreptomicina, antibiótico descoberto nos EUA nos anos 40, abrira um mundo de esperança no combate ao bacilo de Koch, identificado em 1882 por Robert Koch. E se, nessa década e na seguinte, as vagas no Caramulo eram disputadas e muitos doentes eram para ali canalizados pelo próprio Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos, a partir dos anos 60 a doença começa a dar sinais de fraqueza.
A possível cura da tuberculose era o princípio do fim do Caramulo.

“Boa tarde e boa cura”

Lopes da Rosa cumpriu serviço militar no Norte de Angola durante dois anos. No regresso ao país, ansioso pelo restabelecimento da vida normal, a inspecção médica detectou-lhe ainda no aeroporto uma infecção nos pulmões. Era Janeiro de 74. No dia em que os cravos saíram às ruas, estava internado no hospital de Coimbra. De lá transitou para Lisboa. E da capital, com um diagnóstico mais preciso na mão, enviaram-no, em Maio, para um sanatório destinado a militares no Caramulo. Baptizado de Salazar até ali, mas renomeado pelo povo como Sanatório 25 de Abril dias depois da Revolução.

Ao saber do seu caminho forçado, Lopes da Rosa inquietou-se com o destino que lhe soava desconhecido. “Fazia disto uma serra com dois ou três edifícios. Ainda disse a uma enfermeira: ‘Se calhar, fico curado da tuberculose, mas fico doente da cabeça’.” Partiu sem saber ao que ia, um bilhete de regresso a Lisboa com data indefinida: “Podia ser um ano, dois, três...” Foi a vida toda.

A culpa foi de Maria Helena. Os avós paternos tinham deixado para trás a Póvoa de Varzim, terra do fundador da estância, para ali agarrarem um emprego certo. O avô era encarregado das instalações do Grande Sanatório. A avó, dona de casa. Criaram raízes. Formaram família. A neta, Maria Helena, empregou-se numa alfaiataria ao cumprir os dez anos para ajudar a compor as contas da casa. Mas o sonho dela estava no Grande Sanatório, numa rádio ali criada onde a mãe trabalhava como empregada de limpeza.

Pequenita, ouvia intrigada as emissões da Rádio Pólo Norte — depois baptizada como Rádio Emissora das Beiras — e implorava à mãe que lhe arranjasse um emprego por lá. Um dia, ao saber de uma vaga, pediu lugar para a menina. Estávamos em 1966. Maria Helena arrumava os discos, batia cartas à máquina, levava-as ao correio. Aos poucos, foi aprendendo a colocar a agulha no vinil, a conhecer as fitas magnéticas. Em 1970, já fazia locução.

A antena de rádio denuncia a chegada à moradia onde funciona agora a Emissora das Beiras. Maria Helena continua a fazer locução. Lopes da Rosa é director. Casaram-se há mais de 40 anos: ele com os pulmões recuperados, ela trabalhadora na rádio. “Aqui houve muitos casamentos saídos da estância”, graceja Maria Helena. Na redacção, há centenas de CD empilhados, vinis, posters de cantores populares afixados nas paredes, recortes de jornais a atestar a história ali guardada. A rádio modernizou-se, mas continua fiel à programação inspirada nos tempos da onda média, a pensar na população serrana.

Tudo começou em 1939. Joaquim António Seabra interrompeu o curso de Electrotécnica em Lisboa por causa da tuberculose. Foi para o Caramulo rendido a um fim inesperado mas, pouco a pouco, sentiu-se outro. No maior sanatório da estância, onde se internavam os doentes com mais capacidade financeira, montou, por brincadeira, uma pequena rádio de baixa potência, em onda média. Portugal tinha inaugurado a sua primeira estação quatro anos antes, com a Emissora Nacional de Radiodifusão, à qual se seguiu a Rádio Renascença. Seabra punha discos pedidos, música à sua escolha, enviava mensagens com votos de “boa tarde e boa cura”.

Foto

“Transformar um cavernão numa caverninha”

“Era assim: ‘Aqui Rádio Pólo Norte, estação Emissora das Beiras’.” A alegria da recordação é contagiante. António Passos Coelho, 91 anos, autor de vários livros de contos e poesia, parece ouvir ainda a emissão saída dos altifalantes espalhados pelo Grande Sanatório. Seabra, “sempre engravatado, bem vestido, magrinho”, era o homem habilidoso a quem todos recorriam quando tinham algum problema de electricidade. E a sua rádio era parte importante do dia-a-dia dos doentes. Um dia, estava Passos Coelho na galeria a fazer cura, quando os colegas o alertaram para o que se ouvia na rádio: “Atenção, Grande Sanatório! O disco seguinte é dedicado a um doente desse sanatório pelo facto de ter conseguido, em menos de quatro meses, o que outros não conseguem em quarenta: transformar um cavernão numa caverninha.” O episódio é contado por Passos Coelho no livro Caramulo — Crónica Romanceada. Com a saúde a manifestar-se, tinha engordado tanto que agora as calças não lhe serviam e andava a mostrar as cuecas pelo sanatório: “Não espreites, não espreites/ É proibido/ Não te deites, não te deites/ No meu vestido.” A música soou na telefonia e a folia espalhou-se pelo sanatório.

As partidas entre os doentes eram estratégias para enganar o tempo. Aos mais ingénuos tentava-se convencer de que um pneumotórax era mais eficaz se levasse ar puro. Por isso, alguns chegavam ao médico com um pedido original: “Senhor doutor, se o pneumotórax pudesse ser com ar do Caramulinho...

António Passos Coelho passava boa parte do tempo livre na “fantástica biblioteca” do sanatório, apetrechada com “as melhores revistas do mundo da especialidade”. Uma relíquia para um estudante a duas cadeiras de se formar. Ainda doente, deixou-se cativar por uma enfermeira alentejana. Maria Rodrigues Santos Mamede, a quem todos chamavam Bia, mudou-se para o Caramulo ainda criança, numa tentativa desesperada de salvar a vida do pai, apanhado pela tísica. Palmira, a mãe, empregou-se nos sanatórios. E mesmo depois da morte do marido não voltou ao Sul.

Naquela tarde, António não quis sair do quarto para a cura. Deixou-se muito quieto na cama, janela virada para as galerias, e adormeceu sem agasalho. Sonhou com a enfermeira. E, ao acordar, estava coberto. “Perguntei a uma empregada quem tinha ido ao meu quarto. ‘[Disseram-me:] foi a menina Bia’”, recorda numa conversa em Vila Real, cidade onde vive desde 1975. “Comecei a gostar dela, ela de mim. E a gente começou-se a namorar.”

O romance tinha limites. Dentro dos sanatórios estavam proibidos os beijos e as mãos dadas. “Namorar era conversa só, mais nada”, explica. “Mas depois de já ser médico essa música mudou.” A expressão do rosto alegra-se ao recordar o Caramulo. Recuperado, o doente foi convidado a trabalhar no sanatório, solicitação de causar inveja: “Qualquer médico que fizesse lá um estágio chegava cá fora e punha numa tabuleta: estagiário do Caramulo”, conta a explicar a dimensão da sua conquista.

Mas ser testemunha do que ali se vivia não era para todos. “A gente sofria muito. Arrependi-me muitas vezes de ir para médico.” No Caramulo, viu morrer amigos e pacientes. Viu o desespero nas lágrimas de um doente que lhe pedia para ir passar o Natal a casa, emocionou-se a ler cartas de famílias suplicando que não autorizasse a saída de entes queridos, com medo do contágio: “A gente gosta muito de o ver, mas assim não.” Espantou-se com os nomes encontrados para contornar o peso das palavras. Umas gotinhas de sangue eram “pintassilgos”, umas gotas um pouco maiores eram “flores”, se a coisa aparecia às golfadas, os doentes apareciam de ar soturno: “Senhor doutor, estive a dar vivas ao Benfica...

Cenário demasiado inverosímil para quem não o viveu, talvez. “A tuberculose matava. Era uma tragédia. Não havia quase família nenhuma que não tivesse um tísico.”

Fotogaleria

“A tuberculose não era, afinal, a febre das almas sensíveis. Era a doença das multidões operárias das cidades, trabalhando mais do que o permitido por lei, amontoadas em mansardas sem esgotos, exaustas e mal alimentadas. Era a doença dos sobreviventes das guerras, estropiados, desnutridos, desprovidos de tratamento, deambulando pelas ruas com quadros graves de primoinfecção. Era a doença das sociedades miseráveis. E Portugal era uma sociedade miserável.”

A cicatriz

As nuvens parecem um cobertor caído do céu à chegada ao Caramulo. Demasiado baixas. Ou então é a serra que é demasiado alta. Isabel Rio Novo tinha visitado a vila no Verão de 2016, em busca de realidade para a sua ficção: A Febre das Almas Sensíveis (D. Quixote). O romance finalista em 2017 do prémio Leya, o maior galardão de literatura em Portugal, é todo este Caramulo onde agora regressa. E são dela os pedaços de texto que intervalam as histórias aqui relatadas. Nas quase 200 páginas do seu livro, desenterra uma doença para retratar um país com amarras. Passado e presente. Memória e esquecimento. Vigor e ruínas. Numa viagem à vila e aos seus sanatórios — símbolos de “um micro-Portugal, estagnado e bonitinho” —, a escritora portuense desenhou uma história com duas narrativas paralelas: o drama de Armando e da sua família, colhidos pela tísica, e uma misteriosa personagem que vive no presente e, entre as ruínas, faz uma ponte com a ideia romântica da doença, percorrendo a vida de nomes maiores da literatura, como Júlio Dinis, António Nobre, Cesário Verde ou Soares dos Passos. Tudo isto num livro edificado a partir de cartas familiares reais. Num romance que se lê a suster a respiração.

O Sanatório Santa Maria permanece aberto. Gigante adormecido, grau zero do esquecimento. Placa a anunciar a venda na fachada. O portão tem cadeado, mas o muro circundante terá pouco mais de meio metro. Na serra do Caramulo, naquele sanatório onde habitaram morte e vida, os decibéis parecem obedecer a outra escala: ouve-se o ranger do portão metálico, as gotas de água no soalho, um eco perturbador. Numa sala, há armários caídos e centenas de papéis gastos pelo tempo. São arquivos do sanatório com mais de 60 anos. Notas de encomenda, nomes de doentes escritos à mão em letra impecavelmente desenhada. Noutra janela, espreita-se um chão coberto de caixas de medicamentos: hidrazida, lê-se num recipiente de vidro ali deixado. “De repente, tudo é mais real ao ver estas memórias perdidas”, comenta Isabel, impressionada com os despojos.
— Consegue imaginar aquele tempo ao entrar aqui?
— Perfeitamente. Sobretudo ao chegar às galerias. Imaginei logo as pessoas a fazerem a cura em frente à serra.

Para lá da ficção, está sempre a realidade. Por isso, visitar os locais sobre os quais romanceia é essencial para Isabel Rio Novo. “É preciso sentir para depois fingir e ficcionar”, diz. A sua primeira ida ao Caramulo com esse objectivo aconteceu meio ano depois de inaugurar a narrativa. Com o marido, o também escritor Paulo M. Morais, foi do Porto ao distrito de Viseu para respirar o ambiente ali vivido. E na vila mágica aumentou um sentimento que depositou nas páginas do seu romance: “Acredito que há sítios alegres e sítios que não o são. Como se ficassem marcas das vivências. Senti essa cicatriz no Caramulo.”

Aconteceu-lhe sobretudo ao chegar ao Sanatório Infantil. “A partir daquele momento tudo foi real”, recorda a escritora de 45 anos. Os tectos mais baixos, as portas mais estreitas, as estruturas enferrujadas de um baloiço, um escorrega, um balancé. E o recorte da serra em frente, a igreja de branco cálido que não salvou. “Pensei: ‘Aqui morreu gente. Aqui morreram crianças’.”

Para construir o romance, Isabel percorreu livros de histórias, jornais, manuais médicos, livros de memórias como o de António Passos Coelho, pai do ex-primeiro-ministro. Depois, a partir de uma base real de cartas trocadas entre familiares, escreveu. Em apenas um ano. Os métodos da autora — cujo estilo da escrita tem sido comparado a nomes grandes da literatura portuguesa como Camilo Castelo Branco, Agustina Bessa-Luís ou Mário Cláudio — são invulgares e “aparentemente pouco organizados”. Sabe sempre como vai terminar a história, começa por um excerto em que se sinta confiante e não pelo início (dica de Umberto Eco no seu livro Como se Faz Uma Tese) e sabe sempre o título à partida.

Nas ruínas do Caramulo, Isabel descobriu uma “beleza soturna” — algo que os românticos apreciariam. É o que sobra de uma história deixada ao abandono, “uma boa metáfora daquilo que é a vida humana e o esquecimento”. A tragédia que assolou milhares de pessoas durante séculos esvaiu-se, tal como os espaços onde a tragédia viveu. 

Foto

Dos 20 sanatórios, quatro foram transformados em lares. Um em hotel. Alguns foram demolidos. A maioria é agora ruína. No Grande Sanatório, há janelas entaipadas com tijolos vermelhos, vidros partidos, cadeados enferrujados a proibir a entrada. No Pavilhão Cirúrgico, as portas permanecem abertas. Há buracos no chão, tectos caídos, tinta a soltar-se das paredes como casca de ovo, pingos da chuva que fazem eco. No corredor à esquerda, avista-se uma sala redonda onde vive uma estrutura que parece ter sido uma mesa de operações. Ao lado, uma máquina de raio x Siemens largada à sua sorte. À direita, uma maca perdida com parte do tecto em cima.
Parecem templos de dor. Agudizam a veracidade de tudo o que se leu e ouviu.
Há no Caramulo um silencioso despovoamento, uma mágoa ensurdecedora.

Quando Jerónimo Lacerda morreu, inesperadamente, em 1945, os filhos João e Abel assumiram os destinos da sua empreitada. Sabiam da inevitável queda da estância, à boleia da evolução da medicina. E burilaram alternativas. Abel tinha o sonho de transformar o Caramulo numa estância cultural. E chegou a reunir mais de 400 peças de arte — quadros doados por Picasso e Dali incluídos — na sua colecção. Mas um acidente trágico numa passagem de nível roubou-lhe a vida precocemente, em 1957. João não abandonou completamente a ideia: o Museu do Caramulo, inaugurado em 1959, é parte do sonho do irmão. E podia ter sido o princípio da mudança do Caramulo.

Não foi suficiente. Em 1978, o jornal A Capital dava conta da grave crise financeira da Sociedade do Caramulo, falava numa “reconversão inevitável” que nunca aconteceu. Já havia mais camas do que doentes.

As portas dos sanatórios vão-se fechando, um a um, até ao derradeiro fim, já nos anos 80. Sobra, agora, um Caramulo vazio.

As ruínas

Maria Alice vai com o cajado na mão a arrastar as suas ovelhas. Entristece ao admitir o caminho sem volta: “Então é que era, agora nem é o Caramulo”, comenta, a rematar a conversa antes de desaparecer no nevoeiro cinematográfico que se abateu sobre a serra. 

Às vezes, de olhos fechados ou pensamentos voadores, António Passos Coelho ainda está em terras serranas. Traz um sobretudo e chapéu pretos, livros na mão, poesia decorada para explicar a alma.
Caramulo,
Boa terra!
Boa serra!
Que saudades acumulo.
Sabe de cor todos os nomes. Daqueles que lhe devolveram os sonhos, daqueles a quem recuperou a vida. Ali se curou, se fez médico, descobriu o amor, foi pai. “Nunca mais aprendi nada desde que saí do Caramulo”, certifica. Não precisa estar lá para ver as ruínas. Estão-lhe na memória, quais metástases de uma doença que não vacila. Costuras de um país que escolheu esquecer. Era possível “outro destino” para a vila mágica, aponta, a notar a mágoa que não é só dele. Mas os apagões não são globais.
— Sou todo do Caramulo. O meu coração está lá.