A Aliança resiste
A Europa conseguiu demonstrar que, apesar de tudo, a Aliança resiste. Só isso é uma enorme diferença. Qualquer outro cenário sobre o seu futuro que dispense a relação transatlântica continua a ser um pesadelo.
1. De tantos olharmos para o dedo e não para onde ele está a apontar, corremos o risco de não entender imediatamente o ritmo avassalador dos acontecimentos mundiais, distinguindo o essencial do acessório. O dedo é Donald Trump, com a sua política internacional errática e imprevisível e com a forma como a comunica ao mundo. Mas, se precisávamos de uma chamada de atenção para o quadro geral do caos internacional, ela aconteceu agora, com o ataque dos EUA, França e Reino Unido (com um apoio europeu muito mais vasto) a três instalações de produção e armazenamento de armas químicas do regime de Assad. O que houve de novo, desta vez, foi precisamente uma operação preparada com dois dos principais aliados dos EUA na Europa e não apenas o resultado de um “impulso” de Trump alimentado por alguns “falcões” que passaram a ter lugar na Casa Branca. Já antes, no caso de Salisbury, foi possível constatar que se mantinha um nível de confiança entre os aliados, que ia para além dos tweets de Presidente americano.
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1. De tantos olharmos para o dedo e não para onde ele está a apontar, corremos o risco de não entender imediatamente o ritmo avassalador dos acontecimentos mundiais, distinguindo o essencial do acessório. O dedo é Donald Trump, com a sua política internacional errática e imprevisível e com a forma como a comunica ao mundo. Mas, se precisávamos de uma chamada de atenção para o quadro geral do caos internacional, ela aconteceu agora, com o ataque dos EUA, França e Reino Unido (com um apoio europeu muito mais vasto) a três instalações de produção e armazenamento de armas químicas do regime de Assad. O que houve de novo, desta vez, foi precisamente uma operação preparada com dois dos principais aliados dos EUA na Europa e não apenas o resultado de um “impulso” de Trump alimentado por alguns “falcões” que passaram a ter lugar na Casa Branca. Já antes, no caso de Salisbury, foi possível constatar que se mantinha um nível de confiança entre os aliados, que ia para além dos tweets de Presidente americano.
2. Na sexta-feira passada, a interpretação do silêncio de Trump nas redes sociais foi vista como um sinal de recuo. Bastava, no entanto, prestar atenção a Paris e a Londres para perceber que alguma coisa iria inevitavelmente acontecer. A operação militar dos aliados não vai alterar grande coisa no terreno. Não era, aliás, essa a intenção. Mas há uma dimensão desta acção punitiva que não pode ser ignorada ou desvalorizada. E, por isso, ela vale por si. A aliança transatlântica continua a resistir, apesar das imensas dificuldades da eleição de um presidente americano isolacionista, que olha o mundo como uma sequência de transacções e que não valoriza a importância dos valores da democracia na ordem internacional. Ou seja, os EUA são um aliado da Europa; Putin é uma ameaça à segurança europeia; e os direitos humanos não podem ficar eternamente fechados na gaveta, a bem da geopolítica. A operação foi conjunta e cuidadosamente preparada para poder acolher o máximo de apoios possível. Tinha objectivos claros: não atingir civis ou estrangeiros (isto é, russos), como o próprio Pentágono esclareceu. “Armas químicas” foi a palavra-chave na sexta-feira. De Berlim a Bruxelas, houve um apoio generalizado, incluindo as instituições europeias, apenas com nuances não demasiado importantes.
3. É um erro tentar encontrar apenas explicações circunstanciais para a decisão de Emmanuel Macron ou de Theresa May de levar a cabo uma operação cirúrgica e bem medida contra mais uma violação brutal das regras internacionais. É fácil dizer que a primeira-ministra britânica desvia as atenções das dificuldades internas criadas pelas negociações do "Brexit". Dá jeito ao Presidente americano apresentar-se como o “maior inimigo de Putin”, contrariando as investigações sobre a interferência russa na campanha eleitoral, que apertam o cerco à sua volta. O Presidente francês também tem os seus motivos: reafirmar o papel da França na Europa e no mundo, devolvendo-lhe um estatuto que perdeu, em parte, com os seus problemas internos. São razões que não chegam para explicar o quadro geral em que decorreu esta operação militar. Macron é, dos três protagonistas, aquele que consegue ter uma visão de mais longo prazo, mantendo a capacidade de agir num quadro de fraqueza generalizada da Europa. Como Presidente da França, a Realpolitik não lhe é estranha, nem sequer o uso do poder militar em cenários regionais onde se joga o interesse francês e europeu. Conseguiu estabelecer uma relação pragmática com o seu homólogo americano, que se deslumbra perante o aparato que ainda hoje envolve o Eliseu e a sua relativa liberdade de acção.
Quando a chanceler da Alemanha, também na sexta-feira, anunciou que não faria parte de uma intervenção militar, mas que a apoiaria, as condições estavam reunidas. May resumiu com precisão os contornos desta operação militar. Não é para provocar uma mudança de regime; não é para aumentar o envolvimento do seu país e dos aliados na guerra da Síria; é apenas para demonstrar que, mesmo num mundo em desordem, há coisas que não podem ficar impunes. Macron foi igualmente claro. “Desde Maio de 2107, as prioridades da França são as mesmas: concluir o combate ao Daesh, permitir o acesso da ajuda humanitárias às populações civis, encontrar uma solução política que permita aos sírios viver em paz e garanta a estabilidade regional.” Já ontem referiu que a questão da Síria deve voltar ao Conselho de Segurança. Trump já declarou que a missão “está concluída com sucesso”. A capacidade de utilização das armas químicas ficou seriamente debilitada, ainda que não totalmente. Em 2013, Putin tinha assumido a responsabilidade perante Obama de eliminar o arsenal químico de Damasco. Não cumpriu. Trump tinha reagido à sua utilização contra civis, há um ano, com uma salva de mísseis contra a base militar de onde os ataques partiram. James Mattis, o chefe do Pentágono, que não corre ao ritmo dos tweets de Trump, resumiu o que estava em causa: “Não perceberam à primeira.” A dimensão do ataque de sábado foi muito superior ao de há um ano.
4. Diz o correspondente do New York Times em Moscovo que foi visível “um sentimento de alívio” depois de concluída a operação. Apesar da reacção imediata de Putin, uma escalada é altamente improvável. Moscovo fará o ruído habitual, mas, provavelmente, não mais do que isso. A operação deu tempo a que a Rússia se preparasse para ela. Não para ripostar, mas para evitar baixas. As declarações do Presidente russo foram de tal modo fora da realidade, que lhe retiram qualquer credibilidade. Foi um “acto de agressão a um Estado soberano”, cometido “sem o aval do Conselho de Segurança da ONU, em violação da Carta e das normas e princípios do Direito Internacional”. Depois do seu comportamento na Síria ou na Ucrânia, a sua fé no Direito Internacional não é fácil de vender. Neste sábado, sofreu uma humilhação inesperada no Conselho de Segurança, quando apenas três dos seus 15 membros votaram a favor de uma resolução que traduzia as suas palavras. Alguns observadores notaram que houve alguma precipitação, que correu mal.
Mesmo assim, o Kremlin continua a dispor de um vasto leque de instrumentos para interferir na vida das democracias europeias e norte-americanas, que se tem revelado eficaz: interferência em sistemas indispensáveis ao funcionamento das sociedades, provocações de toda a ordem, contra-informação através das redes sociais, aumento da tensão na fronteira dos Bálticos. São problemas que cheguem, mas muito dificilmente serão uma ameaça de guerra entre grandes potências.
5. Há, no entanto, um domínio em que o Presidente russo pode estar a ganhar a “guerra”: a desinformação. Uma parte significativa das opiniões públicas europeias parece disposta a cair na armadilha criada pela campanha de desinformação de Putin, cujo método é sempre o mesmo: introduzir o máximo de “confusão” no debate. Conseguiu o seu objectivo, pelo menos em parte, no caso de Salisbury. Muita gente passou a perguntar: “Onde estão as provas?” A dúvida fica instalada. E quando se chega até aqui, é mais fácil dar o passo seguinte: colocar os EUA ou o Reino Unido no mesmo nível político e moral da Rússia. Mais uma vez, corremos o risco de ver o dedo e não ver para onde ele aponta.
O Iraque deixou uma pesada herança de desconfiança nas decisões dos governos ocidentais. Não havia armas de destruição maciça que justificassem (em parte) a invasão de 2003 e o derrube de Saddam. A passagem do tempo fez esquecer as circunstâncias da altura, deixando apenas uma conclusão: a guerra assentou numa mentira. Com uma consequência política grave: assistimos hoje a uma quase indiferença das opiniões públicas ocidentais perante a carnificina da Síria ou qualquer outra violação inadmissível dos direitos humanos, o que é um péssimo sinal. A Realpolitik impõe limites. Não há limite para a indignação das pessoas.
6. A China está noutro plano. Acusou os aliados de terem agido sem a devida autorização do Conselho de Segurança, o que é em parte verdade. Mas foi a Rússia que vetou a resolução americana que defendia uma investigação independente. Para Pequim e para o seu novo “imperador”, a ordem multilateral, mesmo que sob pressão, é a que mais lhe convém para a estratégia de afirmação da influência mundial chinesa. Em particular, a sacrossanta soberania dos Estados contra qualquer invocação do direito dos povos a não serem massacrados. O Irão optou pela prudência. Uma das consequências da guerra do Iraque foi a sua crescente afirmação regional. Trump, tal como George W. Bush, prefere a política de quanto pior melhor. Espera um pretexto para rasgar o acordo nuclear negociado com Teerão por Obama e pelos europeus. Aposta tudo na Arábia Saudita, tomando partido por um dos lados da grande fractura que atravessa o Médio Oriente, entre xiitas e sunitas. A Europa quer preservar o acordo, mas não de uma maneira acrítica. Macron favorece um bom relacionamento com Riad (um grande comprador de armamento francês) e mantém-se vigilante em relação ao cumprimento do acordo por parte de Teerão. Enquanto o fizer, evitará provavelmente que o Presidente americano o rasgue unilateralmente.
7. Convém olhar para trás para perceber melhor aquilo que está em causa. Quando, em 1996, a guerra na Bósnia obrigou os EUA e a Europa a intervir, ao fim de centenas de milhares de mortos, a versão mais cínica dos acontecimentos dizia que era “uma guerra para salvar a NATO”. Pode ter sido. Mas o que obrigou americanos e europeus a intervir foi a imensa pressão das opiniões públicas perante imagens que acreditavam nunca mais ver em território europeu. Foi tardia mas teve os resultados pretendidos. Quando, em Março de 2011, a França e o Reino Unido, com o apoio americano, desencadearam uma vasta operação aérea na Líbia para impedir um massacre em Bengazi, fizeram o que estava certo, mas levaram a operação militar mais longe, pondo fim ao regime de Khadafi. O pior veio depois. Concluída a sua missão, retiraram-se, deixando um Estado falhado atrás de si, que se transformou numa plataforma para o terrorismo e para o tráfico de pessoas, entre os refugiados da Síria e os imigrantes ilegais da África subsariana. “Mudança de regime” nunca mais.
A Síria tornou-se hoje o lugar geométrico de um mundo em turbulência em que o multilateralismo é todos os dias desafiado pela balança de poder entre as grandes potências. Com Trump, o destino da aliança transatlântica é mais incerto. Mas a Europa aprendeu a lição e conseguiu demonstrar que, apesar de tudo, a Aliança resiste. Só isso é uma enorme diferença. Qualquer outro cenário sobre o seu futuro que dispense a relação transatlântica continua a ser um pesadelo.