Centeno desafia a esquerda (e prepara o país para o diabo)
O ministro tratou a esquerda como se fosse oposição e deixou-a sem margem para negociar o próximo Orçamento. Mas Costa e Galamba passaram outra mensagem. O que vem aí é um desconhecido.
Mário Centeno já não olha para a direita quando critica a oposição. Esta sexta-feira, depois de ter sido chamado duas vezes ao Parlamento para ouvir críticas à esquerda, o ministro das Finanças apontou mira ao Bloco e PCP.
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Mário Centeno já não olha para a direita quando critica a oposição. Esta sexta-feira, depois de ter sido chamado duas vezes ao Parlamento para ouvir críticas à esquerda, o ministro das Finanças apontou mira ao Bloco e PCP.
Mário Centeno levou o discurso escrito, pelo que cada palavra foi medida: “Há uma alternativa, mas ela corresponde a escolhas de regresso ao passado em que o país enfrentou o risco de sanções, em que os investidores nos rotulavam de lixo, em que bancos ruíam e com eles a confiança no sistema financeiro. Não temos memória curta. Eu não seguirei esse caminho”.
O Bloco não gostou - e não podia ter gostado. Até porque o documento agora entregue no Parlamento confirma que o ministro das Finanças quer fazer do último Orçamento do Estado sem uma única medida nova para agitar em ano de eleições, gastando mais apenas na implementação do que já foi acordado com o BE e PCP - já em implementação, mas com custos ainda em 2019: a descida do IRS, o descongelamento das carreiras e o aumento das pensões. De novo, neste Programa de Estabilidade, só há uma medida: uma nova redução do IRS, prevista para… 2021 e paga quase na íntegra com uma redução dos benefícios fiscais, cuja poupança também só chega em 2020.
O que Centeno disse, o que o Governo aprovou no documento, tem esta consequência: não há nada para negociar em Outubro. Marcelo, que tinha exigido um OE sem eleitoralismos, ficará contente. A esquerda, que terá que aprovar o último orçamento, ficou em alarme.
Preparar o país para o diabo
Mas esta não foi a única mensagem que o ministro das Finanças deixou ontem para a esquerda. Durante a sua intervenção e nas respostas aos jornalistas, vincou que este caminho é o que cumpre o programa de Governo, anotou que o investimento e despesa previstos no último orçamento foram cumpridos “em 99%”, avisou que as medidas acordadas para função pública e pensionistas estão a fazer crescer a despesa com pessoal em 4%. Para os socialistas mais desconfortáveis, deixou também um lembrete: o que está no Programa de Estabilidade é exactamente o que ele, Centeno, dizia no cenário macro que preparou para a campanha eleitoral que levou o partido ao poder.
Para todos, ficou outra ideia-chave: “O risco de um retrocesso existe e é maior do que parece”. Ou, noutra passagem: “O país vai resolver os seus desafios, ao mesmo tempo que constrói as condições para que no futuro a envolvente económica se deteriorar possamos dispor de todos os instrumentos orçamentais”. Por outras palavras: a bonança que o crescimento da economia europeia tem dado ao país não vai durar para sempre. Ou, na forma de uma fábula: Centeno é a formiga, a esquerda é a cigarra.
A orquestra socialista desafinou
Mas Centeno não foi a única voz socialista a ouvir-se ontem. Nem uma hora depois do discurso nas Finanças, António Costa virou a mensagem: “O Governo não tem uma obsessão com o défice, tem com uma economia melhor e com mais emprego”, disse o primeiro-ministro.
No Parlamento, João Galamba, porta-voz do PS, falou aos jornalistas para contrariar “uma ideia instalada” de que o Governo tinha apertado mais o cinto. E para contrariar o Bloco, “que parte de um equívoco”: que este Programa de Estabilidade implica um esforço maior de consolidação”. “É o oposto”, disse Galamba, o socialista que tinha dado uma entrevista ao Jornal Económico avisando o Governo que era hora de acabar “com brilharetes” e usar a folga para investir.
Galamba diz que foi isso que aconteceu: “Um abrandamento da consolidação orçamental”, por virtude dos bons resultados de 2017. E que, com isso, haverá este ano um “reforço do investimento e do serviço público”.
No Programa de Estabilidade, essa ideia traduz-se num parágrafo: “No corrente ano, o nível do investimento foi já revisto em alta face à estimativa do OE 2018. Tal foi possível graças à afectação da poupança em juros de 74 milhões de euros, entretanto conseguida.” São, portanto, mais 74 milhões de euros em investimento, o que corresponde a 0,038% do PIB. Um anúncio que vem acompanhado com uma tabela de uma página com as grandes obras públicas previstas para os próximos quatro anos, todas elas já antes anunciadas e sem calendário de execução.
Se Costa e Galamba acenaram com a lista, a esquerda ignorou-a na noite passada. O Bloco anunciou uma resolução, levando a votos o regresso ao défice de 1,1% (“o que foi negociado no OE2018”) e que a tabela de investimentos passe dos 74 milhões para 800 milhões. O distanciamento é medido: não pede a reprovação do documento. Mas vinca uma certeza: a coesão desta maioria perdeu-se esta semana. Ouvindo Centeno, foi de parte a parte. Ouvindo Costa e Galamba, talvez não. Como diz a maldição chinesa: os próximos tempos serão interessantes.