Um tweet não faz a “nova guerra mundial”
A Síria é um “detonador geopolítico” que pode levar a uma guerra regional e provocar uma grande crise internacional. Nela se entrecruzam todas as contradições e interesses das potências e do Médio Oriente. “Mexer” na Síria exige a perícia de um desactivador de bombas.
Na quarta-feira, houve horas de alarme sobre a suposta iminência de uma “nova guerra mundial”, guerra imaginária cujo rumor foi causado por um tweet de Donald Trump: “A Rússia promete abater todos e quaisquer mísseis disparados para a Síria. Prepara-te, Rússia, porque eles irão chegar, bonitos e novos e ‘inteligentes’!” Alguns jornais e televisões ocidentais amplificaram o alarme. Ainda não aprenderam a ler os tweets de Trump, que dias antes anunciara uma rápida retirada da Síria.
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Na quarta-feira, houve horas de alarme sobre a suposta iminência de uma “nova guerra mundial”, guerra imaginária cujo rumor foi causado por um tweet de Donald Trump: “A Rússia promete abater todos e quaisquer mísseis disparados para a Síria. Prepara-te, Rússia, porque eles irão chegar, bonitos e novos e ‘inteligentes’!” Alguns jornais e televisões ocidentais amplificaram o alarme. Ainda não aprenderam a ler os tweets de Trump, que dias antes anunciara uma rápida retirada da Síria.
Na quinta-feira, o secretário da Defesa, Jim Mattis, arrefecia a situação garantindo ao Congresso que ainda não tinha sido tomada “nenhuma decisão de lançar um ataque na Síria”, sublinhando o risco de uma “escalado fora de controlo”. Está no entanto em curso uma perigosa engrenagem que vai muito para lá dos tweets e em que os erros de cálculo são fáceis, o que merece algumas observações.
A Casa Branca continua amarrada no seu dilema: um ataque pontual, embora violento, não terá praticamente efeitos para lá dos simbólicos; e tal ataque deveria ser mais amplo do que o lançado em Abril do ano passado — 59 mísseis contra uma base com stocks de gás sarin e 80 mortos —, que então foi visto como ineficaz. Uma acção de maior envergadura, para ferir drasticamente o potencial militar de Assad, correria o risco de abrir uma escalada que exigiria um envolvimento directo dos Estados Unidos e aliados, como a França. Depois, todos têm consciência de que estão no terreno, um pouco por todas as frentes, forças russas, iranianas, libanesas do Hezbollah, para não falar no Exército turco que combate os curdos, aliados dos EUA. Por fim, o círculo de Trump não definiu os fins que persegue: punir o uso de armas químicas ou aproveitar para golpear o Irão? Russos e iranianos venceram de facto esta fase da guerra síria. Ao fim de sete anos e 350 mil mortos, é tarde para inverter a situação. Que tipo de ataque ordenará Trump? E que se segue depois disso?
A arena síria
O primeiro factor a ter em conta é a própria Síria, não o país devastado e um Estado semi-soberano, dependente dos aliados, mas o complexo geopolítico em que se entrecruzam todas as contradições e interesses do Médio Oriente — e a que, em 2015, se juntou a Rússia como actor de primeiro plano. “Mexer” na Síria exige a perícia de um desactivador de bombas.
A questão síria desdobra-se em muitas frentes, anota o jornalista Marc Semo no Le Monde. É uma guerra civil entre o regime de Assad e uma rebelião em vias de esgotamento. Uma guerra conduzida por uma aliança internacional, dirigida pelos EUA e pela França, contra o que resta do Estado Islâmico. Uma luta dos curdos, apoiados pelos ocidentais, que a Turquia quer esmagar. Um conflito entre as potências regionais que se opõem ao Irão, como a Arábia Saudita e Israel. Enfim, um braço-de-ferro entre Washington e Moscovo. A multiplicidade de actores e interesses é um factor que impede uma solução política.
Segundo ponto: o novo “círculo de Trump”, sobretudo John Bolton e Mike Pompeo, tem uma obsessão iraniana. A Síria poderia ser o ponto e o pretexto para realizar as suas pulsões bélicas. A Coreia do Norte tem um arsenal nuclear. O Irão tem certamente muitas e temíveis armas, mas não tem a bomba. A “diabolização” do Irão já foi decretada há muito. Amigos de Washington, como os sauditas e outros, ficariam encantados se Trump atacasse Teerão no seu lugar. É uma perspectiva realista ou um delírio? O dramático é que não sabemos.
Previne, na Foreign Policy, o analista Stephen Walt: “A primeira coisa que devemos lembrar é que os líderes não desencadeiam guerras se acreditarem que serão longas, custosas e susceptíveis de desembocar numa derrota. Muitas guerras acabaram assim, mas os dirigentes que as iniciaram fizeram-no porque se persuadiram de que o conflito seria rápido, barato e coroado de sucesso.”
Donald Trump parece uma personagem fadada para cometer erros de cálculo, por desprezo da realidade mais vasta do que a do seu eleitorado. O seu comparsa Vladimir Putin passa por um táctico exímio mas também já cometeu graves erros de cálculo. O Presidente americano tem outra característica que maneja como uma arma: a imprevisibilidade. E, para a reforçar, é ou faz-se passar por impulsivo. O seu comportamento parece incoerente ou errático, mas segue um fio lógico — surpreender e desestabilizar o adversário. Acontece que se trata de uma arma que também se desgasta por abuso da repetição. O tweet de quarta-feira enfureceu mas não assustou os russos.
Trump parece repetir a “teoria do louco”, de que falei há tempos a propósito de Kim Jong-un. Foi alegadamente usada por Richard Nixon: se passasse por louco, impulsivo e imprevisível, poderia assustar os norte-vietnamitas. A seu pedido, Kissinger teria dito aos emissários de Hanói: “O meu chefe é louco.” Eles riram-se. Maquiavel lembrara, séculos antes, que às vezes “é sapientíssimo passar por louco”. Mas nem sempre resulta.
Trump não tem interesse político ou eleitoral em se lançar em guerras verdadeiras. Prefere as “guerras de nervos”. A questão está em controlar as derrapagens. Na Síria, Moscovo não recuará, pois tal constituiria uma derrota sem remissão. Tem a vantagem de estar bem implantada no terreno.
A falsa Guerra Fria
É frequente ouvir alusões a uma “nova Guerra Fria”. Primeiro, entre os EUA e a China. Hoje, entre os EUA e a Rússia. Acontece que esta analogia é um disparate e contribui para a confusão. Na Guerra Fria havia uma competição bipolar, entre dois blocos organizados e duas superpotências. O mundo de hoje é multipolar e mais imprevisível. Não há confronto entre duas ideologias de vocação universal, mas a ascensão dos nacionalismos. Na Guerra Fria, foram sendo criados mecanismos de regulação impostos pelo “equilíbrio do terror”. Num universo de conflitos permanentes, em que as superpotências disputavam a superioridade através de guerras entre os seus “peões”, havia paradoxalmente uma relativa segurança.
O pós-Guerra Fria trouxe outro mundo, da ascensão da China à multiplicação de conflitos regionais que escapam ao controlo das potências. As alianças são instáveis e precárias. Neste universo é muito alto o risco de um inesperado “detonador geopolítico” dar lugar a guerras.
Aqui acaba a análise e começa a especulação. Não está no horizonte uma “terceira guerra mundial”, mas o risco de uma guerra regional em cadeia, envolvendo Israel e o Irão, e desembocando numa grave crise internacional. Cabe a Washington e Moscovo saber evitá-las.
Texto escrito antes do ataque dos aliados na madrugada deste sábado