Sustentabilidade financeira da Segurança Social: “economês” ou a questão incontornável?
A única maneira de garantir a solidez da Segurança Social é ter uma noção clara da sustentabilidade financeira do sistema.
“Deitar o bebé fora, juntamente com a água suja do banho.” Este é um ditado anglo-saxónico que se aplica a várias situações e que retrata a necessidade de determinar bem o que é, de facto, negativo e deve ser descartado, do que é positivo e deve ser preservado. Muitas vezes, na ânsia de descartar o que é negativo, elimina-se o fundamental.
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“Deitar o bebé fora, juntamente com a água suja do banho.” Este é um ditado anglo-saxónico que se aplica a várias situações e que retrata a necessidade de determinar bem o que é, de facto, negativo e deve ser descartado, do que é positivo e deve ser preservado. Muitas vezes, na ânsia de descartar o que é negativo, elimina-se o fundamental.
Vem este ditado a propósito da questão do conceito de “sustentabilidade financeira” da Segurança Social, da sua natureza, da sua relevância e, principalmente, das suas implicações em termos do desenho e implementação de medidas neste domínio. Será que este conceito é essencialmente um desvio de natureza neo-malthusiana e de inspiração “troikiana” e neoliberal, cuja importância é, na melhor das hipóteses, meramente secundária? Ou será que este é um conceito técnico imprescindível que permite saber se o sistema de Segurança Social como hoje o conhecemos tem condições para no futuro continuar como está?
Estes pensamentos foram suscitados por uma coluna recente de José Pacheco Pereira neste mesmo jornal no dia 17 de Março com o título “Pensar fora da caixa ou seja fora do ‘economês’ da troika”. Nesta coluna o autor parece apresentar o conceito da sustentabilidade financeira da Segurança Social como um conceito emergente de determinadas concepções ideológicas e, portanto, inquinado nas suas implicações. Como economista, que há pelo menos duas décadas se tem dedicado à questão da sustentabilidade financeira da Segurança Social, e como cidadão que assumidamente se preocupa com questões de justiça social e de solidariedade social — e com todo o respeito pelas opiniões de José Pacheco Pereira —, permito-me aqui apresentar uma perspectiva diferente, uma perspectiva de um economista, sobre esta matéria específica.
Mas comecemos pelo princípio. Em que consiste a sustentabilidade financeira da Segurança Social? Dado um conjunto de pressupostos e de hipóteses de trabalho sobre as trajectórias futuras quer das receitas, quer das despesas do sistema, pretende-se saber se este tem capacidade de financiar, num dado horizonte temporal, todos os compromissos até então assumidos. Entre os pressupostos estão as actuais e futuras regras do jogo, quer em termos dos padrões de contribuições, quer em termos dos métodos de cálculo dos benefícios a atribuir. Diferentes hipóteses de trabalho produzem naturalmente diferentes cenários de evolução da situação económica, com as suas implicações sobre os salários reais e sobre as contribuições efectivas, e da situação demográfica, com as suas implicações sobre o número de contribuintes e de beneficiários no futuro. Se, dados estes pressupostos e estas hipóteses de trabalho, for possível financiar todos os compromissos assumidos, então o sistema é considerado financeiramente sustentável. Se não for possível, i.e. se o sistema por si só não for capaz de pagar os fluxos de despesa previstos e que decorrem de compromissos previamente assumidos, então o sistema é dito financeiramente insustentável. Neste caso é ainda possível medir a dimensão do problema de falta de sustentabilidade com indicadores simples como, por exemplo, o quanto se teria de aumentar receitas ou, em alternativa, diminuir despesas para garantir a dita sustentabilidade financeira, ou com indicadores mais complexos como é o caso da “dívida implícita” do sistema.
Na sua forma mais simples, a sustentabilidade financeira da Segurança Social é um conceito de natureza contabilística. Trata-se de diagnosticar problemas e de estabelecer factos. Um grupo de especialistas de diferentes orientações políticas, mas guiados por objectivos pragmáticos e não dogmáticos, conclui sem dificuldade sobre se o sistema é ou não financeiramente sustentável e sobre a magnitude do eventual problema, se um existe. No mínimo, mesmo que não se ponham de acordo sobre se o sistema é ou não financeiramente sustentável, podem facilmente identificar os factores técnicos que levam a resultados diferentes.
Ora bem, a avaliação da sustentabilidade da Segurança Social permite fazer um diagnóstico da sua situação financeira e é necessariamente o ponto de partida para uma análise prescritiva do que precisa ser feito para melhorar o sistema, no caso de já ser sustentável, e de preservar o sistema, no caso de ainda não o ser.
Neste sentido, a noção da sustentabilidade financeira da Segurança Social é um conceito semelhante ao da sustentabilidade ambiental face às alterações climáticas, por exemplo. Dizer que existem alterações climáticas e um fenómeno de aquecimento global não é uma matéria de opinião, mas sim uma questão de evidência empírica, medida de acordo com certos pressupostos e hipóteses de trabalho sobre a evolução futura do sistema. É também uma precondição para a concretização de medidas efectivas para resolver eventuais problemas.
Mas como se interpreta um diagnóstico da sustentabilidade financeira da Segurança Social? Aqui usamos de facto os nossos filtros. E estes são os meus filtros. Primeiro, entendo que o Estado tem a obrigação de garantir o mínimo de dignidade a todos os seus cidadãos no desemprego, na reforma, na invalidez, e na viuvez e orfandade, independentemente da carreira contributiva. Segundo, tal deve ser garantido através do erário público, ou seja, através de impostos pagos por todos. Mais, deve ser financiado por impostos progressivos. Terceiro, o Estado tem a obrigação de manter um sistema — público e/ou privado, voluntário e/ou obrigatório — que permita aos cidadãos poupar para estas contingências, para lá do mínimo que o Estado deve garantir. Ou seja, permitir que os cidadãos possam acautelar contingências menos favoráveis nas suas vidas para lá dos mínimos de dignidade acima referidos.
Um corolário destes filtros é que a única maneira de garantir a solidez actual e futura da Segurança Social e a única maneira de garantir que estas protecções sociais perduram é a de ter uma noção muito clara da sustentabilidade financeira do sistema.
Com estes filtros posso fazer uma leitura dos problemas da sustentabilidade financeira da Segurança Social e propor medidas concretas. Por exemplo, posso opinar que não vejo nenhuma razão de justiça social que justifique a existência de pensões milionárias pagas pelo sistema público e, muito mais, quando muitas vezes nem sequer são actuarialmente justas. Ao mesmo tempo, reconheço que outros filtros levarão à proposta de outras medidas alternativas. Reconheço, também, que mesmo estes filtros são consistentes com vários tipos de soluções. Contudo, se não nos entendermos sobre os factos, então aí é que não haverá a menor hipótese de nos entendemos sobre as medidas a tomar para preservar as principais características do sistema no futuro.
Claro que não podemos ser ingénuos e pensar que as avaliações não podem ser manipuladas e os factos não possam ser apresentados de forma distorcida para servir interesses específicos. Também não podemos ignorar que os diagnósticos podem ser usados como instrumento de arremesso ao serviço de políticas específicas. Mas os meus filtros não determinam a avaliação da sustentabilidade financeira a que cheguei, pois isso seria uma inaceitável posição proto-marxista.
Penso, isso sim, que para quem se preocupe com questões de justiça social, ter uma visão tão clara quanto possível dos factos sobre a sustentabilidade financeira da Segurança Social é absolutamente fundamental. É, sem dúvida alguma, uma precondição para poder desenhar e implementar as medidas necessárias para preservar o sistema tal como o conhecemos, e de garantir que as futuras gerações de beneficiários possam receber as mesmas protecções que as gerações actuais usufruem, e que tal possa ser feito sem comprometer os níveis de vida das futuras gerações de contribuintes.
Subalternizar — ou mesmo deitar fora — o conceito da sustentabilidade financeira da Segurança Social, só porque este possa ser distorcido e eventualmente abusado, está, do meu ponto de vista como economista, claramente na categoria de “deitar fora o bebé, juntamente com a água suja do banho”.