Miloš Forman (1932-2018): o cineasta checo que viu a América como poucos
Nascido na Boémia, mas naturalizado americano já depois dos seus 40 anos, foi um dos grandes cronistas da América moderna, que lhe deu o Óscar de melhor realizador duas vezes, por Voando sobre Um Ninho de Cucos e Amadeus.
Tal como Joseph Conrad, que nasceu polaco mas se tornou um dos maiores expoentes da literatura em língua inglesa, e no cronista de uma certa Inglaterra à beira do desaparecimento que poucos nativos conseguiram ser, também Miloš Forman “adoptou” o seu país adoptivo. Nascido na Checoslováquia em 1932 mas naturalizado americano em 1977, o cineasta que morreu esta sexta-feira, com 86 anos, terá sido um dos grandes cronistas das alegrias e das contradições da América moderna.
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Tal como Joseph Conrad, que nasceu polaco mas se tornou um dos maiores expoentes da literatura em língua inglesa, e no cronista de uma certa Inglaterra à beira do desaparecimento que poucos nativos conseguiram ser, também Miloš Forman “adoptou” o seu país adoptivo. Nascido na Checoslováquia em 1932 mas naturalizado americano em 1977, o cineasta que morreu esta sexta-feira, com 86 anos, terá sido um dos grandes cronistas das alegrias e das contradições da América moderna.
Chegado à América, como muitos outros checos da sua geração, após a intervenção soviética que frustrou as expectativas suscitadas pela Primavera de Praga, no Verão de 1968, foi com singular rapidez que Forman se converteu num dos observadores mais finos do seu país adoptivo, com uma série de filmes que projectavam o espírito subversivo da geração da Nova Hollywood da qual era contemporâneo: Os Amores de Uma Adolescente (1971), Voando sobre Um Ninho de Cucos (1975), Hair (1979), Ragtime (1981), Larry Flynt (1997) e Homem na Lua (1999). Recebeu por duas vezes o Óscar de melhor realizador, por Voando sobre Um Ninho de Cucos e Amadeus (1984), e foi nomeado duas outras vezes, por Ragtime e Larry Flynt. A sua aclamação não se limitou aos EUA: Os Amores de Uma Adolescente valeu-lhe o Grande Prémio do Júri em Cannes, e venceu a Vela de Ouro em Locarno com a sua primeira longa-metragem, O Ás de Espadas (1964), o Urso de Ouro de Berlim com Larry Flynt e o Urso de Prata de melhor realizador com Homem na Lua.
Paradoxalmente para um realizador tão querido e tão aclamado, Forman filmou pouco – apenas uma dúzia de longas-metragens em 40 anos, com Os Fantasmas de Goya (2006) como último título oficial. Em parte, isso resultou das ironias do destino: a Primavera de Praga e a invasão soviética de 1968 apanharam-no em Paris, em discussões para ir filmar nos EUA, onde Os Amores de Uma Loira (1965) e O Baile dos Bombeiros (1967) tinham sido nomeados para o Óscar de melhor filme estrangeiro; o realizador não voltou a casa, instalando-se em Nova Iorque, onde viria a trabalhar como professor de cinema e chegaria a dirigir o departamento de estudos cinematográficos da Universidade de Colúmbia. O fracasso do seu primeiro filme americano, Os Amores de Uma Adolescente, não ajudou, e as longas pausas entre os seus filmes tiveram quase sempre a ver com questões de financiamento ou de produção. A sua espantosa adaptação das Ligações Perigosas de Choderlos de Laclos, Valmont (1989), com Colin Firth e Annette Bening, foi produzida em França; o seu último filme, Os Fantasmas de Goya, foi financiado em Espanha; vários dos projectos em que trabalhou sem chegar à rodagem tinham financiamento europeu.
Nunca perdeu, contudo, o sentido de humor boémio e a capacidade de olhar para o mundo com um sorriso mais ou menos escarninho. Na Checoslováquia, onde assinou as três primeiras longas, fez parte de uma geração iconoclasta que incluía Vera Chytilová ou Jirí Menzel; O Ás de Espadas, Os Amores de Uma Loira e O Baile dos Bombeiros eram filmes “às avessas” do conformismo imposto pelos regimes socialistas do Leste da Europa, e que aliás não foram bem vistos pelas autoridades. O olhar satírico desses primeiros filmes foi depois prolongado e posto a bom uso nos EUA. Com uma atracção especial por histórias de anticonformistas (do internado no asilo psiquiátrico interpretado por Jack Nicholson em Voando sobre Um Ninho de Cucos à comédia anticómica de Andy Kaufman em Homem na Lua), Forman pode ter-se naturalizado americano mas nunca perdeu a lucidez de quem olhava a América de fora.
Apesar de ter sido nos EUA que obteve os seus maiores triunfos – cinco Óscares para Voando sobre um Ninho de Cucos, filme emblemático do cinema americano dos anos 1970, e oito para Amadeus, adaptação da peça de Peter Shaffer sobre a rivalidade entre Mozart e Salieri –, pelo final da sua carreira Hollywood deixara de se interessar por ele. E, no entanto, Forman teve algumas das suas melhores críticas nos anos 1990 com dois filmes de estúdio que olhavam para a América de dentro: Larry Flynt, com Woody Harrelson no papel do infame magnata da pornografia que se tornou o centro de uma batalha legal pela liberdade de expressão, e Homem na Lua, retrato do controverso comediante americano dos anos 1970 Andy Kaufman, que deu a Jim Carrey o papel de uma vida.
Vinte anos antes, ambos os filmes teriam sido fenómenos culturais, mas na década em que Harvey Weinstein refez a ideia do cinema de prestígio nenhum deles ressoou nas métricas que interessavam aos grandes estúdios. Larry Flynt recebeu apenas duas nomeações para os Óscares (para Harrelson e Forman), Homem na Lua foi completamente ignorado, e nenhum dos dois teve sucesso nas bilheteiras. Forman não mudara, mas o mundo à sua volta sim, e mesmo o olhar que lançava sobre a América que o adoptara parecia estar fora de tempo.
Se à sua chegada aos EUA se inserira sem problemas na geração da Nova Hollywood, a de Francis Ford Coppola e Brian De Palma, Martin Scorsese e Hal Ashby, com Voando sobre Um Ninho de Cucos (estreado no mesmo ano de Tubarão…) a constituir-se como um dos últimos clássicos emblemáticos desse período, o realizador checo não voltaria a estar alinhado com os tempos. Nunca assinou um blockbuster ou uma grande produção, e nunca se repetiu formalmente – depois de Voando sobre um Ninho de Cucos, dirigiu o filme do musical hippie Hair, que por essa altura já se tornara num mero artefacto de época, e uma ambiciosa e hoje esquecida adaptação do romance de E. L. Doctorow Ragtime, sobre a colisão entre a raça e a classe na Nova Iorque da viragem do século, com uma das últimas presenças no ecrã de James Cagney. Foi preciso Amadeus para o consagrar definitivamente – e, mesmo depois desse sucesso, o cineasta preferiu seguir a sua musa a estar onde esperavam que ele estivesse.