Parlamento aprova mudança de sexo no registo civil aos 16 anos

Votação foi contabilizada pelo número total de deputados de cada bancada e não pelo número de deputados presentes. O texto final foi aprovado por 109 votos a favor - um deles da social-democrata Teresa Leal Coelho.

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Lei da identidade de género aprovada LUSA/MIGUEL A. LOPES

Está aprovado o diploma que permite a mudança de sexo e de nome no registo civil a partir dos 16 anos sem ser necessário relatório médico. A votação mostrou a divisão clara e anunciada entre direita e esquerda: o texto que substitui as propostas do Governo, do Bloco e do PAN, teve o voto a favor do BE, PAN, PS e PEV e recebeu o apoio da deputada Teresa Leal Coelho do PSD.

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Está aprovado o diploma que permite a mudança de sexo e de nome no registo civil a partir dos 16 anos sem ser necessário relatório médico. A votação mostrou a divisão clara e anunciada entre direita e esquerda: o texto que substitui as propostas do Governo, do Bloco e do PAN, teve o voto a favor do BE, PAN, PS e PEV e recebeu o apoio da deputada Teresa Leal Coelho do PSD.

O PCP absteve-se e os seus 15 votos acabaram por não ser precisos para que a esquerda conseguisse aprovar o texto por 109 votos a favor e 106 contra.

A contabilização dos votos foi feita globalmente por bancada, contando com o número total dos deputados eleitos e não com os realmente presentes no plenário da Assembleia da República nesta sexta-feira. Ou seja, foram somados 86 do PS, 19 do BE, 2 do PEV e 1 do PAN, e ainda o voto da social-democrata Teresa Leal Coelho que furou a disciplina de voto da sua bancada. Do lado da direita, contaram-se os 18 deputados do CDS-PP e 88 dos 89 do PSD.

Estes números são, no entanto, diferentes dos anunciados no início do período de votações, quando os deputados se registaram no sistema informático e Eduardo Ferro Rodrigues contabilizou os que não conseguiram validar a sua presença. Seriam 206 ou 207, disse o presidente. Houve deputados que chegaram ao plenário já quando se faziam as votações de outros diplomas – como os 24 sobre a floresta e incêndios -, como foi o caso de Assunção Cristas.

Foi por faltarem deputados em quase todas as bancadas – com excepção do Bloco e do PEV – por doença ou por estarem, por exemplo, em viagem com o Presidente da República, que nem a direita nem a esquerda arriscaram pedir a votação nominal.

Em plenário, foi preciso fazer a votação na generalidade – em que o PCP votou a favor, ao lado do resto da esquerda -, a votação da avocação de duas normas do diploma que tinham sido chumbadas na Comissão de Assuntos Constitucionais por que o deputado do PAN não participa nela e que acabaram agora por ser aprovadas, e a votação final global.

"Dia histórico"

Assim que Eduardo Ferro Rodrigues anunciou a aprovação do texto, as bancadas do Bloco, PS, PEV e o deputado do PAN levantaram-se e aplaudiram ruidosamente, e o mesmo aconteceu com as cerca de 30 pessoas que assistiam na galeria, na sua maioria jovens, alguns das quais se abraçaram. Mesmo depois de o presidente da Assembleia da República ter lembrando que as galerias não se podem manifestar – “nem quando estão de acordo com as decisões do Parlamento nem quando estão em desacordo”, avisou -, houve deputados do PS e do Bloco que se mantiveram de pé, de costas voltadas para a mesa da Assembleia.

Terminadas as votações, todas as bancadas à excepção do PCP pediram para fazer declarações de voto, e levantou-se um ruído na sala: boa parte dos deputados do PSD e do CDS baixaram os monitores dos computadores, arrastaram cadeiras e levantaram-se para sair da sala.

O deputado do PAN André Silva, a socialista Isabel Moreira, a bloquista Sandra Cunha, e a ecologista Heloísa Apolónia congratularam-se com o passo “histórico”.

Isabel Moreira vincou que há agora um “caminho a fazer para além da lei, que tem que ser trilhado nas escolas, nos serviços de saúde, na alteração das mentalidades para que um dos grupos mais estigmatizados da sociedade possa viver em paz sendo quem realmente é”.

Heloísa Apolónia justificou o apoio do PEV - votando diferente do PCP - com o sentido do "combate à não-discriminação, respeito pelos direitos humanos e dignidade das pessoas".

André Silva, autor de um dos projectos que deu origem ao texto de substituição lamentou que não se tenha ido mais longe, permitindo o acesso judicial à mudança de género a pessoas trans menores de 16 anos e, a quem já mudou de nome, que essa actualização se faça também nos documentos dos descendentes. A bloquista Sandra Cunha também apontou a proposta da sua bancada (entregue há dois anos no Parlamento) que ficou pelo caminho e que reconhecia o acesso à mudança de género a imigrantes e requerentes de asilo e crianças menores de 16 anos.

Direita "não é contra a autodeterminação"

Foi sob protestos constantes - umas vezes mais audíveis outras menos - que as duas deputadas do PSD e do CDS fizeram as suas intervenções. Sob apupos, a social-democrata Sandra Pereira realçou que o PSD "não é contra a autodeterminação nem a nega" mas, "como em tudom tem de haver regras e aqui tratava-se de instituir regras e procedimentos para essa autodeterminação".

Argumentou que a lei "enferma de radicalismo ideológico e é geradora de situações de incerteza e insegurança jurídica" e que "o que está em curso é um processo e uma agenda de desconstrução social com a qual o PSD não compactuará".

Defendeu a proposta "moderada" do PSD de exigir um relatório médico multidisciplinar e criticou a posição da esquerda por não dar importância às "implicações de ordem social e incerteza jurídica" que tem a alteração do sexo atribuído à nascença sem acompanhamento clínico. Sandra Pereira afirmou ainda a discordância do PSD sobre a proibição das cirurgias a crianças intersexo, "desvalorizando totalmente a medicina e a decisão clínica, e desprezando totalmente o papel da família e dos pais que têm o direito de tomar decisões pelos seus filhos e pela sua educação".

Acrescentou que o PS "se juntou ao extremismo da esquerda radical". E deixou mesmo no ar a ideia de que a questão não ficará por aqui ao avisar que o PS "terá que assumir as suas responsabilidades". "Esta lei não tem a adesão da maioria dos portugueses e o PS vai ter que responder por isso." As duas frases enigmáticas podem deixar antever um recurso do PSD ao Tribunal Constitucional, como fez com as chamadas barrigas de aluguer, caso o Presidente da República promulgue esta nova lei.

A centrista Vânia Dias da Silva recuperou alguns argumentos ouvidos nos últimos dois anos: aos 16 anos um jovem não pode casar nem conduzir um automóvel nem mesmo beber álcool, mas passa a poder mudar o sexo no cartão de cidadão - "uma decisão com consequências tão definitivas e tão sérias na vida de um menor". Lembrou que os médicos ouvidos neste processo disseram que a "maioridade clínica se atinge aos 24 anos" e desafiou a esquerda para abrir o debate da mudança legal da maioridade - a qual, vincou, a Convenção dos Direitos da Criança estabelece que é aos 18 anos.

Avanço civilizacional

Resultado da fusão da proposta do Governo com os projectos-lei do BE e do PAN, a nova lei vai possibilitar que a mudança de sexo e nome próprio no Cartão de Cidadão se faça a partir dos 16 anos (actualmente a idade mínima é 18) e sem relatório médico, no que pretende ser um contributo para a "despatologização" do processo, conforme se lê na reacção que a secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, fez chegar às redacções. 

Considerando que a nova lei vai "mitigar o sofrimento e, essencialmente, criar condições para que as realidades e experiências de vida destas pessoas sejam mais conhecidas" e menos sujeitas a preconceitos, Rosa Monteiro sublinha ainda que, ao tornar-se no 5º país europeu a ter uma lei de identidade de género baseada na auto-determinação, Portugal se coloca uma vez mais "na linha da frente dos países empenhados na igualdade". 

Para a deputada socialista Catarina Marcelino, que, enquanto secretária de Estado da Igualdade, coordenou e concebeu o diploma do Governo, as mudanças agora aprovadas permitirão “melhorar a vida das pessoas trans” e “proteger as crianças intersexo”, na medida em que ficam proibidas cirurgias e intervenções farmacológicas a bebés intersexo (quando nascem com órgãos genitais ambíguos) até que estes possam manifestar a sua identidade de género, salvo "em situações de comprovado risco para a saúde".

“É um avanço civilizacional muito importante do ponto de vista do quadro legal português. Parece-me óbvio que o país deu um importantíssimo passo em frente”, congratulou-se ao PÚBLICO a ex-governante.

Dizendo-se “felicíssima”, Hermínia Prata, da direcção da AMPLOS - Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género, considera que o facto de a idade mínima para a mudança de sexo no registo civil ter baixado para os 16 anos, desde que com autorização dos pais, “muda drasticamente” a vida das pessoas que não se identificam o sexo com que nasceram. “Imagine uma mulher que se sente homem, que se veste como um homem e que se apresenta como tal, mas que chega a um local, como a escola, e apresenta um cartão de cidadão com um nome de mulher. Pode ser traumático.”.

A dispensa de atestado médico para que a mudança se faça, por outro lado, vem encurtar um processo que, além de burocrático, era muito demorado. “A questão médica deve pesar – e via continuar a pesar - nas transformações que a pessoa quer ou não fazer em termos médicos, como a toma de hormonas ou uma cirurgia. Requerer um atestado médico para a mudança de nome no registo civil não fazia sentido nenhum”, acrescenta ainda Hermínia Prata, para concluir, em jeito de reacção aos críticos da nova lei: “Ninguém julgue que alguém vai agora ao registo civil mudar o nome a brincar ou com ânimo leve”.

Demasiado sério para ser usado como "bandeira política"

Do lado da Ilga Portugal, uma instituição particular de solidariedade social que se dedica a promover a integração social da população LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexo), esta votação representa “um grande marco histórico” e traduz o reconhecimento pelo Estado “de que estas pessoas existem e fazem parte da sociedade”, como declarou Daniela Bento, da direcção da instituição.

A dispensa de um relatório médico que ateste a disforia de género “faz toda a diferença” porque a sua obrigatoriedade era, segundo Daniela Bento, “um atentado aos direitos humanos e à dignidade das pessoas”.

Em sentido contrário, Teresa Tomé Ribeiro, porta-voz de um movimento de cidadãos que lançou uma petição contra as mudanças na lei de identidade de género, mostrou-se preocupada com as repercussões que estas alterações poderão ter na vida dos jovens. “É um assunto sério demais para ser usado como bandeira política e devia ter sido discutido fora das disputas parlamentares”, declarou ao PÚBLICO uma das responsáveis da petição.

No documento, que em cerca de 48 horas somou quase quatro mil assinaturas, os subscritores repudiam o facto de a decisão de mudar o sexo e o nome próprio no registo civil passar a recair sobre os ombros de adolescentes que “mercê da sua condição de menor, podem não possuir a necessária maturidade cognitiva e psicoafectiva para consentir, duma forma esclarecida e consciente, as alterações registais a efectuar”.