Dos “selvagens” às primeiras protagonistas negras

Foto
Cavalo Dinheiro, 2014, de Pedro Costa

Durante o colonialismo, os negros foram, no cinema, primeiro os “selvagens” (Costumes Primitivos dos Indígenas em Moçambique, 1929), depois os “pretinhos” (O Feitiço do Império, 1940) e finalmente, os “pretos perigosos” ou os “assimilados” (Chaimite, Jorge Brum do Canto, 1953), perante os quais se edificou a identidade dos portugueses inicialmente como exploradores, depois como bons homens de família e de negócios e, mais tarde, como amigos de todas as raças e, por vezes, ingénuos trabalhadores (O Zé do Burro, Eurico Ferreira, 1972) .

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Durante o colonialismo, os negros foram, no cinema, primeiro os “selvagens” (Costumes Primitivos dos Indígenas em Moçambique, 1929), depois os “pretinhos” (O Feitiço do Império, 1940) e finalmente, os “pretos perigosos” ou os “assimilados” (Chaimite, Jorge Brum do Canto, 1953), perante os quais se edificou a identidade dos portugueses inicialmente como exploradores, depois como bons homens de família e de negócios e, mais tarde, como amigos de todas as raças e, por vezes, ingénuos trabalhadores (O Zé do Burro, Eurico Ferreira, 1972) .

Em 1975, João Cesar Monteiro realizou Que farei eu com esta espada, um documentário, com partes ficcionadas, em que pela primeira vez é dada voz a negros. No documentário, sobre uma manifestação de trabalhadores contra a presença portuguesa na Nato, são entrevistados trabalhadores guineenses, que partilham a sua perspectiva do colonialismo enquanto assalariados. Os negros aparecem não como um “outro africano” distante, mas como vítimas do colonialismo e agora do capitalismo, tal como os trabalhadores brancos que se manifestam. Muito interessante a novidade, mas não fez escola. Com pequenas excepções — por exemplo, o filme de Fonseca e Costa Os Demónios de Alcácer Quibir (1975) em que uma actriz negra representa África — os negros praticamente desaparecem da ficção portuguesa até aos anos 1990.

Na década de 1990 surge uma geração de cineastas com uma nova forma de olhar o mundo e uma agenda cinematográfica própria. Como sustenta Tiago Baptista [director do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento], o cinema que se faz nesta altura é também fruto de uma Europa cuja aposta política para a cultura é a coprodução de filmes que promovam a multiculturalidade, e que apoia, nestes moldes, as produções cinematográficas nacionais, as primeiras obras e o documentário. Além disso, o fim das guerras civis de Moçambique e Angola, e no caso de Cabo Verde, a criação do Instituto Cabo-verdiano de Cinema, permitiu a alguns cineastas portugueses voltaram-se para as antigas colónias à procura de “cenários” para os seus filmes. Nestas histórias aparecem, por vezes, personagens não-brancas. São exemplo: O Miradouro da Lua (1993), de Jorge António, coprodução com Angola; O Testamento do Senhor Napumoceno (1997) de Francisco Manso, e Fintar o Destino (1998) de Fernando Vendrell, em Cabo Verde; Tempestade na Terra (1997), de Fernando de Almeida e Silva, e Comédia Infantil (1998) de Solveig Nordlund, em Moçambique.

A novidade cinematográfica, que consiste no aparecimento de negros nos filmes, não acontece apenas quando os enredos estão ligados a África e verifica-se, por exemplo, em Corte de Cabelo (1995) de Joaquim Sapinho, ou António um rapaz de Lisboa (1999) de Jorge Silva Melo, que podem ser lidos como retratos de uma determinada juventude lisboeta. Estes filmes revelam, ainda que timidamente, uma sociedade multiétnica: os negros fazem agora parte da paisagem urbana, como fizeram, durante o colonialismo, parte da paisagem natural. Antes eram o contraponto selvagem e submisso de um português civilizado e racional, agora são elementos que oferecem à urbe lisboeta algum exotismo, que paradoxalmente a aproximam do resto da cosmopolita Europa, e que fazem parte da experiência e da exuberância de uma juventude portuguesa, branca, que aos 20 anos sente que já viveu tudo. Os negros não são personagens, apenas figurantes, quando muito figurantes especiais.

O primeiro momento de afirmação da presença de negros no cinema português, para o grande público, acontece em 1998 com Zona J, de Leonel Vieira. É o primeiro filme português em que os protagonistas são maioritariamente negros e foi um sucesso de bilheteira. É uma história de adolescentes da Zona J de Chelas, em Lisboa; reflecte sobre as dificuldades de integração de negros, que tendo nascido em Portugal não são tomados pela sociedade como portugueses — jovens que sonham com o “regresso” a uma África idealizada (onde poderiam ser eles próprios). Mostra ainda os imigrantes mais velhos a serem afectados pelo desemprego e os filhos destes, incapazes de se sujeitarem às mesmas humilhações de que os pais foram vítimas silenciosas.

Pedro Costa apresenta em 1994 Casa de Lava, filmado em Cabo Verde, e Ossos, em 1997, filmado no Bairro das Fontainhas. O tom de pele das personagens dos filmes deste realizador foi escurecendo progressivamente: com Juventude em Marcha (2006) e daí em diante filma as histórias e as memórias de imigrantes cabo-verdianos em Lisboa. Pedro Costa confessa que foi preciso “descer muitas escadas” para se aproximar da comunidade com quem trabalha. Infere-se que foram mais de 20 anos a “descer escadas” até encontrar Vitalina (Cavalo Dinheiro, 2014) a primeira protagonista negra, numa longa-metragem de ficção portuguesa, a seguir a Bobô (2013) de Inês Oliveira. As primeiras mulheres negras da ficção cinematográfica portuguesa aparecem cerca de 40 anos depois do 25 de Abril.

*Investigadora Estudos Culturais do Centro de Estudos de Comunicação da Sociedade da Universidade do Minho