A morte da cidade
Em Veneza, no campo San Bartolomeo, perto da ponte de Rialto, a farmácia Morelli mostra, aos que passam, uma contagem dos habitantes da cidade. É como uma bomba-relógio: os números actuais já são inferiores a 50.000. Nos últimos trinta anos, a população de Veneza, que já estava reduzida a um número muito pouco digno para um passado tão esplendoroso, ficou reduzida a metade. Ao invés, os visitantes que a atravessam e que nela deambulam diariamente aumentaram a um ritmo muito mais acelerado: actualmente, por cada habitante há seiscentos forasteiros. Muitas das sua casas, sobretudo aquelas que dão para o Grande Canal, são habitações secundárias, os seus proprietários ocupam-nas uns poucos dias por ano, servem para alimentar o mais requintado snobismo. Veneza tornou-se assim o símbolo por excelência do destino das cidades históricas. Se a tomarmos como um laboratório, podemos dizer que o vírus que ela incubou se espalhou por todo o lado. Em 1968, Henri Lefébvre publicou um livro chamado Le droit à la ville. De todas as regressões que se deram de 1968 aos nossos dias, a regressão do direito à cidade é a que menos resistências teve de enfrentar. As coisas seguiram o seu curso, como se fosse uma força inelutável, e transformaram-nos em reféns de um pensamento único que nos diz que só há estas duas alternativas: ou deixamos que a monocultura do turismo esvazie a cidades dos seus habitantes e se apodere do seu núcleo vital, procedendo a uma museificação dos centros históricos e liquidando toda a relação viva com o próprio passado; ou condenamos a cidade a uma morte por degradação e falta de vitalidade económica. Ora, é preciso ver esta proposição disjuntiva como uma grande falácia. Se as cidades morrem (e elas estão morrendo) é porque foram objecto de uma acção que as mata, não é porque morram de morte natural ou se suicidem. E quando nos vêm dizer que é uma questão económica, e que o desmantelamento da cidade é um processo irreversível da economia, como se as questões económicas tivessem adquirido força de lei divina, é preciso dizer que a economia, também ela, é hoje objecto de uma outra grande falácia que consiste em fazer dela uma palavra de ordem disfarçada de ciência. Se Veneza e Lisboa e o Porto e Barcelona se despovoam da mesma maneira e se tornam idênticas a um modelo único da cidade histórica, isso acontece porque aqueles que deveriam impedir que isso acontecesse nada fizeram. Ou então, tudo o que fizeram destinou-se a acelerar o processo. Vê-se a morte da cidade no despovoamento; vê-se a morte da cidade na museificação que a torna terra de ninguém para o turismo; vê-se a morte da cidade na sua perda de memória, que é uma crise na relação com o passado; vê-se a morte da cidade quando ela fica inteiramente voltada para a inércia patrimonial dos “bens culturais” (esvaziados de todo o significado histórico) e perdeu completamente de vista o sentido da palavra “habitar”; vê-se a morte da cidade quando ela se sujeitou à homogeneização e ficou conforme a um modelo global, que se repete em todas as cidades europeias (quem queira saber como se dá a morte da cidade histórica deve ler alguns livros fundamentais do historiador de arte italiano Salvatores Settis, que esteve em Lisboa no princípio desta semana, num colóquio de homenagem a Antonio Tabucchi). Antes de serem atingidas pelo mal que as está a matar, as cidades históricas foram poderosas máquinas de pensar. A monocultura da cidade global é um eclipse do pensamento. O direito à cidade reclamado por Lefebvre não era um capricho de historiador: respondia a uma necessidade social e aos fundamentos da cultura europeia.
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Em Veneza, no campo San Bartolomeo, perto da ponte de Rialto, a farmácia Morelli mostra, aos que passam, uma contagem dos habitantes da cidade. É como uma bomba-relógio: os números actuais já são inferiores a 50.000. Nos últimos trinta anos, a população de Veneza, que já estava reduzida a um número muito pouco digno para um passado tão esplendoroso, ficou reduzida a metade. Ao invés, os visitantes que a atravessam e que nela deambulam diariamente aumentaram a um ritmo muito mais acelerado: actualmente, por cada habitante há seiscentos forasteiros. Muitas das sua casas, sobretudo aquelas que dão para o Grande Canal, são habitações secundárias, os seus proprietários ocupam-nas uns poucos dias por ano, servem para alimentar o mais requintado snobismo. Veneza tornou-se assim o símbolo por excelência do destino das cidades históricas. Se a tomarmos como um laboratório, podemos dizer que o vírus que ela incubou se espalhou por todo o lado. Em 1968, Henri Lefébvre publicou um livro chamado Le droit à la ville. De todas as regressões que se deram de 1968 aos nossos dias, a regressão do direito à cidade é a que menos resistências teve de enfrentar. As coisas seguiram o seu curso, como se fosse uma força inelutável, e transformaram-nos em reféns de um pensamento único que nos diz que só há estas duas alternativas: ou deixamos que a monocultura do turismo esvazie a cidades dos seus habitantes e se apodere do seu núcleo vital, procedendo a uma museificação dos centros históricos e liquidando toda a relação viva com o próprio passado; ou condenamos a cidade a uma morte por degradação e falta de vitalidade económica. Ora, é preciso ver esta proposição disjuntiva como uma grande falácia. Se as cidades morrem (e elas estão morrendo) é porque foram objecto de uma acção que as mata, não é porque morram de morte natural ou se suicidem. E quando nos vêm dizer que é uma questão económica, e que o desmantelamento da cidade é um processo irreversível da economia, como se as questões económicas tivessem adquirido força de lei divina, é preciso dizer que a economia, também ela, é hoje objecto de uma outra grande falácia que consiste em fazer dela uma palavra de ordem disfarçada de ciência. Se Veneza e Lisboa e o Porto e Barcelona se despovoam da mesma maneira e se tornam idênticas a um modelo único da cidade histórica, isso acontece porque aqueles que deveriam impedir que isso acontecesse nada fizeram. Ou então, tudo o que fizeram destinou-se a acelerar o processo. Vê-se a morte da cidade no despovoamento; vê-se a morte da cidade na museificação que a torna terra de ninguém para o turismo; vê-se a morte da cidade na sua perda de memória, que é uma crise na relação com o passado; vê-se a morte da cidade quando ela fica inteiramente voltada para a inércia patrimonial dos “bens culturais” (esvaziados de todo o significado histórico) e perdeu completamente de vista o sentido da palavra “habitar”; vê-se a morte da cidade quando ela se sujeitou à homogeneização e ficou conforme a um modelo global, que se repete em todas as cidades europeias (quem queira saber como se dá a morte da cidade histórica deve ler alguns livros fundamentais do historiador de arte italiano Salvatores Settis, que esteve em Lisboa no princípio desta semana, num colóquio de homenagem a Antonio Tabucchi). Antes de serem atingidas pelo mal que as está a matar, as cidades históricas foram poderosas máquinas de pensar. A monocultura da cidade global é um eclipse do pensamento. O direito à cidade reclamado por Lefebvre não era um capricho de historiador: respondia a uma necessidade social e aos fundamentos da cultura europeia.