CML fez pagamentos ilegais de 96 mil euros a histórico do PS
Fernando Medina e Manuel Salgado poderão ser obrigados a repor nos cofres municipais os montantes que a Câmara de Lisboa pagou a Joaquim Morão.
Como se não bastasse o facto de ter simulado consultas ao mercado para contratar o ex-autarca de Castelo Branco, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) ignorou duas normas legais que a impediam de o fazer: não obteve a indispensável autorização do Governo para o contratar, pelo facto de o interessado estar aposentado; e passou por cima das regras que impediam a sua contratação por ocupar o lugar de primeiro-secretário executivo da Comunidade Intermunicipal da Beira Baixa (CIMBB) - cargo esse que era desempenhado, por imperativo legal, em regime de exclusividade.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Como se não bastasse o facto de ter simulado consultas ao mercado para contratar o ex-autarca de Castelo Branco, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) ignorou duas normas legais que a impediam de o fazer: não obteve a indispensável autorização do Governo para o contratar, pelo facto de o interessado estar aposentado; e passou por cima das regras que impediam a sua contratação por ocupar o lugar de primeiro-secretário executivo da Comunidade Intermunicipal da Beira Baixa (CIMBB) - cargo esse que era desempenhado, por imperativo legal, em regime de exclusividade.
Os expedientes e ilegalidades sucederam-se num processo em que a CML violou o Estatuto da Aposentação e o estatuto dos membros dos secretariados executivos das comunidades intermunicipais para contratar Joaquim Morão, um ex-autarca modelo do PS e membro da sua Comissão Política Nacional, aposentado há cerca de vinte anos.
Como o PÚBLICO revelou a 31 de Março, os artifícios destinados a contornar os impedimentos regulamentares e legais para recrutar Morão, em 2015 e 2016, começaram com a simulação de convites a mais duas entidades prestadoras de serviços – consulta essa que, nestas circunstâncias, é imposta pela Norma de Controlo Interno aprovada pela autarquia em 2011.
Além da sociedade unipessoal então acabada de criar pelo ex-autarca, a JLD, as empresas convidadas naqueles dois anos a apresentarem propostas de preços para acompanhar a execução de várias obras municipais são detidas por um amigo e colaborador de Morão. Este, sem qualquer experiência naquela área, nem sequer respondeu aos convites. Na altura em que foi consultado pela CML, estava a ser julgado num processo em que foi condenado a quatro anos e meio de prisão efectiva pelos crimes de burla e falsificação.
CML diz que não é nada com ela
Resolvida assim a questão da obrigatoriedade de consulta a três entidades, a CML ignorou o preceituado no n.º 1 do art. 78 do DL 498/72 (Estatuto da Aposentação), na redacção em vigor em 2015 e 2016. De acordo com essa norma, os aposentados e reformados “não podem exercer actividade profissional remunerada para quaisquer serviços da administração central, regional e autárquica (…), excepto quando haja lei especial que o permita ou quando, por razões de interesse público excepcional, sejam autorizados pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas da Finanças e da Administração Pública”.
Sucede que neste caso não há qualquer “lei especial”, nem o vereador Manuel Salgado, que determinou e assinou a contratação, nem o próprio Joaquim Morão obtiveram a indispensável autorização governamental.
Questionada sobre este tema, a Câmara de Lisboa respondeu que a existência ou não de tal autorização não é objecto de “verificação no âmbito de um procedimento de contratação pública, não se inscrevendo nos impedimentos que devem ser conhecidos na fase de habilitação do concorrente”. A esta explicação, a autarquia acrescentou: “Por outro lado, informou-nos o próprio [Joaquim Morão] que tem um documento oficial da Secretaria de Estado da Administração Local segundo o qual não carece de autorização do Governo para exercer as funções que desempenhou.”
O que a CML não diz é que o documento em questão, que Morão também fez chegar ao PÚBLICO e que é assinado por uma antiga directora-geral das Autarquias Locais, com data de Fevereiro de 2014, tem a ver com a contratação de um aposentado para o lugar de primeiro-secretário executivo de uma Comunidade Intermunicipal e não com a contratação de um aposentado para prestar serviços a uma câmara municipal. Embora perfilhando uma controversa interpretação da lei, até porque remete para legislação que nada tem a ver com a questão, o ofício invocado pela CML sustenta apenas que os aposentados podem exercer “o mandato de membro do secretariado executivo intermunicipal das comunidades intermunicipais” sem autorização governamental, mas nada diz sobre a sua contratação por uma autarquia.
TdC contraria CML
Quanto às responsabilidade que incumbem aos autarcas por contratarem aposentados sem aquela autorização, o Tribunal de Contas (TdC) tem um entendimento bem diferente do da CML. A propósito de um caso muito semelhante, em que condenaram um antigo presidente e um antigo vice-presidente da Câmara de Borba a devolverem ao município local o montante de 69.344 euros, acrescidos de juros de mora, por terem contratado uma aposentada sem permissão governamental, os juízes conselheiros da 3.ª secção do TdC escreveram no Acórdão 29/2015: “Apesar de se provar a convicção dos demandados [os dois autarcas] na legalidade do contrato de aquisição de prestação de serviços celebrado (…), tal convicção é-lhes censurável. É que, sendo estes os responsáveis máximos por tal município, com especiais responsabilidades de velar pelo interesse público e pela legalidade, não podiam desconhecer a proibição de contratar aposentados [sem autorização governamental, ou lei que especial que o permita], nem ignorar a ilicitude do expediente que consistia em interpor uma sociedade unipessoal (constituída para o efeito menos de um mês antes)” entre a autarquia e a aposentada a contratar. Este “expediente”, realça o acórdão, “visava eludir a proibição legal de contratar aposentados sem autorização superior”. Isto porque, sem essa autorização, “a referida senhora não podia ser contratada, nem directamente nem a coberto de uma sociedade (…) por si constituída, através da qual, como única sócia, gerente e executora do trabalho, percebeu remuneração que não podia cumular com a pensão de aposentação.” Exactamente o que sucedeu na CML com a contratação do ex-autarca de Castelo Branco e Idanha-a-Nova.
Por outro lado, a CML e Joaquim Morão fizeram letra morta do estatuto dos membros dos secretariados executivos das comunidades intermunicipais (Lei 75/2013), cujo art. 97.º afirma no n.º 6 que “os membros do secretariado executivo intermunicipal remunerados exercem funções em regime de exclusividade”. Tratando-se de membros remunerados, poder-se-ia perguntar se esse era o caso do ex-autarca.
A resposta é lapidar e está no n.º 4 da mesmo preceito legal: “O cargo de primeiro-secretário é remunerado”. O n.º 1 determina mesmo que o valor mensal do seu vencimento “é igual a 45% da remuneração base do Presidente da República”, ou seja, cerca de 3250 euros, a que acrescem, diz o n.º 3, despesas de representação no valor de 30% dessa remuneração (cerca de 980 euros).
Como Joaquim Morão ocupava, e ocupa, o lugar de primeiro-secretário executivo da CIMBB, ele é obrigatoriamente remunerado e, por isso, trabalha em exclusividade naquela entidade, não podendo desenvolver quaisquer outras actividades remuneradas.
Solicitada a pronunciar-se sobre esta matéria, a CML nada respondeu.
CML esqueceu-se da lei
Ignoradas a incompatibilidade da função para a qual contratou Morão com o seu estatuto de aposentado e a impossibilidade de o contratar devido ao regime de exclusividade em que se encontrava na Beira Baixa, a CML incorreu numa outra falta. Violando o n.º 4 do art. 79 do Estatuto da Aposentação, não comunicou à Caixa Geral de Aposentações (CGA), nos dez dias seguintes, e nunca o fez até ao fim do segundo contrato (em Setembro de 2017), o facto de que tinha contratado o ex-autarca, por forma a que, nos termos da lei, a sua pensão fosse suspensa.
Por essa omissão, estabelece o n.º 5 do mesmo artigo, “o dirigente máximo do serviço, entidade ou empresa” torna-se “pessoal e solidariamente responsável, juntamente com o aposentado, pelo reembolso à CGA das importâncias que esta venha a abonar indevidamente em consequência daquela omissão”. Ou seja, também por esta via, Fernando Medina e/ou Manuel Salgado arriscam-se a ter de devolver à CGA, juntamente com Joaquim Morão, as pensões que este recebeu ao longo dos 23 meses em que a CML lhe pagou cerca de 96 mil euros e que deverão ter um valor da mesma ordem de grandeza.
Acerca deste assunto, a CML respondeu o mesmo que respondeu sobre a impossibilidade de contratar um aposentado sem autorização do Governo. “As questões levantadas não são objecto de verificação por parte da entidade adjudicante [neste caso a CML] no âmbito de um procedimento de contratação pública.”
CIMBB nega exclusividade
Já a CIMBB, falando em nome de Joaquim Morão, sustenta que este não violou o regime de exclusividade porque “não é remunerado pelo exercício do cargo (…) e, não sendo remunerado, não exerce funções em exclusividade”. O problema é que a lei diz expressamente que o cargo em questão “é remunerado” e é exercido em regime de exclusividade.
A CIMBB é uma associação de municípios formada pela câmaras de Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Oleiros, Penamacor, Proença-a-Nova e Vila Velha de Ródão, todas elas governadas pelo PS, à excepção da de Oleiros (PSD). Logo após a sua constituição formal, no final de 2013, os seus órgãos escolheram Joaquim Morão, que em Setembro terminara o mandato de presidente de Castelo Branco, para o cargo de primeiro-secretário executivo.
De acordo com os esclarecimentos prestados ao PÚBLICO, este comunicou ao conselho intermunicipal, formado pelos presidentes dos seis municípios da CIMBB, que optava pela manutenção da sua pensão da CGA.
Por via desta opção, afirma a CIMBB, em resposta às perguntas que o PÚBLICO endereçou a Joaquim Morão, este “prescindiu” do vencimento do cargo, ficando a receber da comunidade intermunicipal apenas as despesas de representação. Em consequência dessa “opção”, defende Morão e o presidente do conselho ntermunicipal, seu sucessor na Câmara de Castelo Branco, o ex-autarca nunca exerceu o cargo em regime de exclusividade.
Sendo certo que em 6 de Fevereiro de 2014, quando Morão comunicou que optava pela pensão, o Estatuto da Aposentação permitia essa possibilidade, a verdade é que o estatuto dos membros dos secretariados executivos das CIM não admitia tal opção. E logo no mês seguinte, a 6 de Março, o Estatuto da Aposentação passou igualmente a determinar que os aposentados “não recebem pensão” enquanto desempenharem funções públicas.
Em resposta a um pedido de esclarecimento do PÚBLICO acerca de um recente parecer que emitiu sobre remunerações dos executivos das CIM, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região Norte (CCDRN) clarificou também as questões da exclusividade e da opção pela pensão. Ressalvando que os seus pareceres jurídicos não têm carácter vinculativo e “sem prejuízo da autonomia do poder local”, a CCDRN esclareceu que “o exercício de quaisquer funções públicas remuneradas para quaisquer serviços da administração autárquica, por aposentado ou pensionista, determina a suspensão obrigatória do pagamento da pensão durante todo o período em que durar aquele exercício de funções”. Assim, conclui, “não está legalmente consagrada a faculdade de optar entre a remuneração e a pensão de aposentação sendo que os membros do secretariado executivo intermunicipal exercem sempre as funções em regime de exclusividade”.