Armas químicas e jogos de guerra na Síria
Poucas dúvidas restam de que as questões humanitárias são instrumentais para as potências que intervêm, ou ambicionam intervir, na guerra da Síria. Isto vale tanto para os que apoiam Bashar al-Assad como para aqueles que o querem derrubar.
1. A 7 de Abril, em Douma, na região de Goutha nos arredores de Damasco, ocorreu um ataque com armas químicas cuja autoria terá sido das forças governamentais de Bashar-al Assad. Provocou várias dezenas de mortos. Como é habitual em situações de guerra, os relatos são contraditórios e ao sabor dos interesses das partes envolvidas — a Rússia e o Irão negam essa ocorrência. Sem surpresa, o Conselho de Segurança das Nações Unidas ficou paralisado. Neste caso, pelo veto da Rússia. Nada de anormal. A atitude russa protegendo a Síria é similar à dos EUA protegendo Israel nos conflitos da região. Interessa agora olhar para as partes em confronto. A zona onde ocorreu o ataque era controlada pelo Jaysh al-Islam (literalmente Exército do Islão), um grupo islamista-jihadista que pretende depor Bashar al-Assad. Nos seus objectivos originais estava “limpar Damasco de todos os xiitas e alauitas”. Mais recentemente, provavelmente por conveniência de melhorar a imagem internacional, este foi negado. Desde a sua fundação, o Jaysh al-Islam tem sido financiado pelas potências sunitas da região — Arábia Saudita, Turquia e Qatar. (Ver Stanford University, “Mapping militant organizations”). Claro que o intuito não é abrir caminho a uma democracia pluralista. Essa é uma ilusão conveniente para a opinião pública ocidental. O objectivo é substituir um regime autoritário de tipo secular por um governo islamista sunita, que será opressor de uma forma talvez ainda mais odiosa.
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1. A 7 de Abril, em Douma, na região de Goutha nos arredores de Damasco, ocorreu um ataque com armas químicas cuja autoria terá sido das forças governamentais de Bashar-al Assad. Provocou várias dezenas de mortos. Como é habitual em situações de guerra, os relatos são contraditórios e ao sabor dos interesses das partes envolvidas — a Rússia e o Irão negam essa ocorrência. Sem surpresa, o Conselho de Segurança das Nações Unidas ficou paralisado. Neste caso, pelo veto da Rússia. Nada de anormal. A atitude russa protegendo a Síria é similar à dos EUA protegendo Israel nos conflitos da região. Interessa agora olhar para as partes em confronto. A zona onde ocorreu o ataque era controlada pelo Jaysh al-Islam (literalmente Exército do Islão), um grupo islamista-jihadista que pretende depor Bashar al-Assad. Nos seus objectivos originais estava “limpar Damasco de todos os xiitas e alauitas”. Mais recentemente, provavelmente por conveniência de melhorar a imagem internacional, este foi negado. Desde a sua fundação, o Jaysh al-Islam tem sido financiado pelas potências sunitas da região — Arábia Saudita, Turquia e Qatar. (Ver Stanford University, “Mapping militant organizations”). Claro que o intuito não é abrir caminho a uma democracia pluralista. Essa é uma ilusão conveniente para a opinião pública ocidental. O objectivo é substituir um regime autoritário de tipo secular por um governo islamista sunita, que será opressor de uma forma talvez ainda mais odiosa.
2. Se as práticas militares das forças de Bashar al-Assad são censuráveis, olhemos agora para o Jaysh al-Islam. As suas formas de actuar durante a guerra já foram várias vezes objecto de relatos na imprensa ocidental. Em finais de 2015, após um bombardeamento pelas forças governamentais que provocou algumas dezenas de mortos, o Jaysh al-Islam fez uma macabra exibição pelas ruas de Douma. Grupos de prisioneiros enjaulados, provavelmente alauitas do exército de Bashar al-Assad, terão sido usados como escudos humanos face a possíveis novos ataques do exército governamental. (Ver “Caged Hostages From Syrian President’s Sect Paraded Through Rebel-Held Suburb” in New York Times, 1/11/2015). Não há dúvida que as forças governamentais e os seus apoiantes, incluindo a Rússia e o Irão, têm uma quota importante de responsabilidade nas atrocidades da guerra. Mas ilibar ou negligenciar o papel dos múltiplos grupos da oposição ao regime — Jaysh al-Islam, Frente al-Nusra, Daesh, etc., bem como os seus instigadores externos (Arábia Saudita, Qatar, Turquia) — nessas atrocidades, é enviesar a lógica da guerra. É uma forma de desviar a atenção, de maneira deliberadamente desproporcional, para o governo de Bashar al-Assad.
3. Donald Trump é um caso gritante de indignação “humanitária” errática, ao sabor de humores e conveniências políticas. Num tweet, a 11 de Abril, escrevia de forma ameaçadora: “A Rússia promete abater todos e quaisquer mísseis disparados para a Síria. Prepara-te Rússia, porque eles estão a chegar, bonitos, novos e ‘inteligentes’!” (Ver “Trump ameaça Rússia e diz que os mísseis ‘estão a chegar’ à Síria” in PÚBLICO, 11/04/2018). O episódio lembra outro acontecimento do ano passado. Em 2017, a 4 de Abril, ocorreu um ataque com armas químicas em Khan Shaykhun, na província do Idlib. A região era controlada pela Frente al-Nusra, outro grupo islamista-jihadista financiado pelas potências sunitas do Médio Oriente. Na altura, Donald Trump decidiu retaliar. A 7 de Abril foram lançadas algumas dezenas de mísseis Tomahawk contra a base aérea síria de Shayrat. Aparentemente, a decisão terá sido influenciada por Ivanka Trump, que ficou comovida com as imagens das vítimas. (Ver “Eric Trump: Ivanka influenced Syria strike decision” in CNN, 11/04/2017). Mas a maior ironia é que, em 2013, quando, durante a presidência de Barack Obama, se chegou a colocar a hipótese de uma intervenção na guerra da Síria, e de bombardeamentos contra as forças de Bashar-al Assad, Donald Trump foi um cáustico opositor. (Ver “Tweets show Trump was against bombing Syria before he was for it” in USA Today, 7/04/2017).
4. Tudo isto é contraditório, oportunístico e pouco racional. É também particularmente perigoso pois ocorre ligado a um dos cenários mais complexos e tensos do mundo. Mesmo com o apoio político e militar do Reino Unido e da França, ou da Arábia Saudita, um bombardeamento norte-americano da Síria não tem suficiente legitimidade internacional. Continua a não existir o suporte legal de uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, apesar de britânicos e franceses serem também membros permanentes. No caso da Arábia Saudita, é um país cheio de violações de direitos humanos e que apoia grupos islamistas-jihadistas que nada têm de democrático. A sua preocupação "humanitária" e a oposição ao autoritarismo de Bashar al-Assad soa demasiado a falso. Quanto ao Reino Unido, as fragilidades do governo de Theresa May, as dificuldades das negociações do “Brexit” e as relações tensas com a Rússia devido ao caso Skripal, pesam mais do qualquer sentimento humanitário. Tudo isto converte a intervenção militar contra Bashar al-Assad num redireccionar da opinião pública para outros assuntos, aliviando a pressão política interna. Similar cálculo estará a ser feito por Emmanuel Macron em França. De alguma forma está também à procura do reconhecimento da sua própria liderança, bem como de um novo protagonismo para a França, na União Europeia e no mundo. Provavelmente, sente um direito especial a intervir na Síria, pois a França já administrou o território entre os anos 1920 e 1940, sob um mandato da Sociedade das Nações. Ao mesmo tempo, enfrenta uma quebra de popularidade interna. Uma intervenção “humanitária” na Síria pode também ser útil na sua estratégia de afirmação no palco da política internacional.
5. Para além de todas estas motivações que nada têm a ver com o sofrimento das vítimas do ataque com armas químicas, há a “guerra de sombras” entre Israel e o Irão. Não é um aspecto menor do complexo puzzle da Síria. Várias vezes Israel tem bombardeado alvos militares em território sírio. Um traço usual dessas acções tem sido atacar pontos usados pelos iranianos no seu apoio às forças de Bashar al-Assad. O ataque com armas químicas a 7 de Abril, em Douma, e ampla condenação internacional que se seguiu, deu a Israel a cobertura (ou a distracção) ideal para o que terá sido mais um bombardeamento visando interesses iranianos na Síria. (Ver “Iranian media posts photos of Syrian base allegedly bombed by Israel” in Times of Israel, 11/04/2018). Dada a proximidade do Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, com Donald Trump — e a conhecida hostilidade deste último contra o Irão —, no cálculo estratégico estará também levar os EUA a uma represália de envergadura. Provavelmente na expectativa que esta possa destruir mais instalações e equipamentos militares próximos do território israelita. Na óptica de Israel, o Irão está a tentar cercar o seu território, a Norte, no Líbano, através do Hezbollah, e a Leste directamente por forças iranianas destacadas na Síria. Envolver o aliado norte-americano em bombardeamentos — evitando a anunciada saída militar das forças no terreno —, ajuda os objectivos israelitas contra o Irão.
6. Poucas dúvidas restam de que as questões humanitárias são instrumentais para as potências que intervêm, ou ambicionam intervir, na guerra da Síria. Isto vale tanto para os que apoiam o actual governo (especialmente a Rússia e o Irão), como para aqueles que o querem derrubar (Arábia Saudita, Qatar, EUA, etc.). No caso da Turquia, faz um jogo duplo, (re)posicionando-se em ambos os campos, conforme as conveniências de circunstância. No meio de tantas atrocidades e violência, o episódio de 7 de Abril é, infelizmente, apenas mais um entre muitos acontecimentos trágicos. Não é também um caso isolado de uso, ou suspeita de uso, de armas químicas, durante o conflito. Estas também não recaem exclusivamente sobre as forças de Bashar Al-Assad. Nem foi um dos acontecimentos mais mortíferos em anos de violência: terá provocado algumas dezenas de mortos. (Ver "Syria war: What we know about Douma 'chemical attack’" in BBC 10/04/2018). Não está em causa o horrível sofrimento das populações devido ao uso de armas químicas ou outras violações do Direito Internacional Humanitário. Nem que os seus responsáveis cometeram crimes hediondos de guerra. O que se verifica é que o impacto das imagens na opinião pública está a ser usado para legitimar intervenções que nada têm de humanitário. Fundamentalmente, são úteis para outros fins de política interna e/ou externa. Paradoxalmente, o resultado poderá ser aumentar, ainda mais, o sofrimento da população civil, sobretudo se acabar por prolongar a guerra num perigosíssimo confronto directo entre grandes potências.