As linhas vermelhas do “manifesto Centeno”
Centeno faz-nos acreditar que país aprendeu com os seus próprios erros. E essa é uma suprema manifestação de inteligência.
Há muito tempo que Portugal não tinha um “statement” tão majestático e relevante para situar o presente e desenhar o futuro como o que esta semana Mário Centeno publicou nas páginas do PÚBLICO. Vindo de um político, o seu diagnóstico e a sua profecia estão obviamente contaminados por verdades incompletas ou constatações imperfeitas, mas não é isso que importa observar na sua reflexão sobre “A credibilidade da política económica, 2017”: é o desenho de linhas vermelhas. É a sua garantia de que, com ele ao comando das Finanças, não haverá amanhãs que cantam. Com o seu texto enxuto, de construção pobre e de literariedade sofrível, Mário Centeno acaba por produzir o mais relevante documento político para o futuro do Governo, do PS e do bloco parlamentar que o apoia desde que os socialistas anunciaram o seu impreciso manifesto eleitoral.
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Há muito tempo que Portugal não tinha um “statement” tão majestático e relevante para situar o presente e desenhar o futuro como o que esta semana Mário Centeno publicou nas páginas do PÚBLICO. Vindo de um político, o seu diagnóstico e a sua profecia estão obviamente contaminados por verdades incompletas ou constatações imperfeitas, mas não é isso que importa observar na sua reflexão sobre “A credibilidade da política económica, 2017”: é o desenho de linhas vermelhas. É a sua garantia de que, com ele ao comando das Finanças, não haverá amanhãs que cantam. Com o seu texto enxuto, de construção pobre e de literariedade sofrível, Mário Centeno acaba por produzir o mais relevante documento político para o futuro do Governo, do PS e do bloco parlamentar que o apoia desde que os socialistas anunciaram o seu impreciso manifesto eleitoral.
Um programa tão assertivo e determinado não deixará de causar ansiedades, polémica e dissídio para os segmentos da esquerda que abominam qualquer equação com o mais leve travo da austeridade. É por isso que, à partida, se impõe uma pergunta: Centeno combinou a sua publicação com António Costa? Ou fez da sua iniciativa uma espécie de proclamação para tornar claro que, com ele ao comando, as regras serão as suas regras? E, tratando-se de avisos sérios que desde logo motivaram reacções ásperas do Bloco e do PCP, vale a pena perguntar que alvos queria atingir Mário Centeno com os seus avisos. Vitor Costa, no editorial do PÚBLICO de segunda-feira, dava uma boa resposta a esta dúvida: “À primeira vista, podemos ser levados a pensar que são recados para os partidos à esquerda do PS que suportam o Governo. Mas são muito mais do que isso. São recados para o próprio PS e para o Governo.”
Os recados fazem sentido. É normal que perante a folga orçamental que o ministro invoca para sublinhar o “sucesso” do Governo haja quem reclame o reforço da despesa na cultura, nas remunerações dos funcionários ou em obras capazes de mitigar as condições escandalosas em que crianças com cancro são tratadas no Hospital de São João, no Porto. Não custa a perceber que este quadro de pressão crescente sobre o reforço da despesa está na origem do texto que Mário Centeno quis publicar. Todo ele é uma resposta a essa pressão. Numa minuciosa operação de escolha de palavras, Centeno adverte-nos que Portugal não pode esquecer o que aprendeu com o sofrimento da troika. Diz-nos que a credibilidade externa que o país conquistou é a melhor medida do sucesso “da economia e da sociedade portuguesa”. Lembra-nos que “o futuro se constrói hoje e sem estabilidade não o conseguimos alcançar”. E promete-nos que essa estabilidade conseguida pelo rigor na gestão das contas públicas, que está na base da “credibilidade” e do “sucesso” do país, não será colocado em risco.
Pode parecer que em causa está apenas um discurso meio apologético, meio messiânico. Mas é muito mais do que isso. É um compromisso que enterra dúvidas e esclarece o que está para vir. É um exercício destinado a esvaziar as potenciais críticas ao Programa de Estabilidade que Centeno em breve vai ter de apresentar à Comissão Europeia. É a prova de que, com esta declaração programática, Centeno exige ficar com as mãos livres para poder avançar com um Orçamento do Estado para 2019 isento de qualquer contaminação eleitoral. O ministro das Finanças, fica-se a saber, não trocará votos pela disciplina orçamental. Não cairá na tentação do facilitismo. Ele promete ser o homem forte da ortodoxia fiscal da União Europeia no seio do Governo. Mais do que uma mera declaração, o seu texto é uma proposta de contrato que dá a assinar ao Governo e ao eleitorado no qual ele assume uma posição dominante – pelo teor e também pela iniciativa. Um contrato que, como seria fácil adivinhar, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa recusam. Que António Costa aceitará com provável relutância, porque em curso está um ano pré-eleitoral. E que a ala esquerda do PS lerá como um ultimato de um recém-chegado que, deslumbrado pelo seu sucesso, julga ter nas mãos o poder sobre o seu futuro político.
A verdade é que Mário Centeno tem poder e é esse poder que lhe permite dar à estampa um texto que reconstrói (ou constrói?) o programa do Governo. Desde que apresentou o seu primeiro Programa de Estabilidade em Bruxelas, em Fevereiro de 2015, Mário Centeno fez um longo caminho. No primeiro choque com a ortodoxia europeia, o ministro ficou a saber que o controlo das contas públicas para reduzir o défice e gerar uma réstia de esperança para enfrentar a dívida tinha de contemplar “medidas decisivas” e não apenas a crença nos resultados de um crescimento económico incerto. E desde então, mesmo que tenha mantido a letra do “virar a página da austeridade”, o seu Governo alterou por completo a música.
O sucesso desta estratégia tornou as críticas de que Centeno é alvo em meros exercícios de oratória que coroam a hipocrisia facilmente detectada na contradição entre os horrores que o Bloco e o PCP apontam à política económica e a aprovação dos orçamentos que os consagram. Com o seu manifesto, Mário Centeno vai mais longe. Eleva a fasquia. O seu tom e os argumentos que utiliza raiam o desafio, quase a provocação. Sabendo que a sua insolência nada mais gerará do que as habituais palavras críticas dos parceiros de apoio parlamentar, o ministro reforça o seu poder. Ele avisou que o défice será uma obsessão e pode agora cumprir o que prometeu. A aura do “fenómeno” que enterrou de vez o diabo de Passos Coelho, que chegou à presidência do Eurogrupo, dá para tudo. Até para um manifesto que promete uma “margem fiscal e orçamental para fazer face a futuras crises”, em oposição aos que consideram haver margem nas contas públicas para aumentar salários, despesas e investimento. Com o seu manifesto, o ministro cria uma barricada. “Os poderes públicos são a maior fonte de ‘paciência’ e estabilidade numa sociedade. O contrário é o berço do populismo das receitas fáceis”, escreveu.
Estando as medidas acordadas nas posições conjuntas assinadas entre o PS, o Bloco e o PCP praticamente cumpridas, o que Centeno diz aos parceiros do Governo e à ala socialista que sonha com uma quimérica frente popular é que não. Que não haverá margem para aumentos salariais na função pública antes de 2020, que o défice dará lugar a um superávite, que a dívida pública caiará para o limiar dos 100% do produto, que o reforço do investimento nas áreas sociais será feito à medida que a riqueza produza mais receita para o Estado gastar. Pode parecer coisa pouca, mas o manifesto Centeno é uma prova de coragem. Porque recusa os devaneios que a véspera de eleições costuma provocar na classe política. Acabaram-se as dúvidas, se as houvesse: Centeno faz-nos acreditar que país aprendeu com os seus próprios erros. E essa é uma suprema manifestação de inteligência.