A Catalunha e os novos fariseus: uma justiça ao serviço da opressão
As independências, quando são suportadas pela maioria de um povo, não são impedidas nem por exércitos ou governos, muito menos por tribunais. A ver vamos.
Os fariseus modernos proclamaram a prevalência da Constituição espanhola para justificar a prisão de uma dezena de dirigentes catalães eleitos. Há presos catalães por motivos políticos que têm a respaldá-los o voto popular em eleições livres. Tão livres que, mesmo com dirigentes presos, o povo da Catalunha votou maioritariamente nos independentistas.
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Os fariseus modernos proclamaram a prevalência da Constituição espanhola para justificar a prisão de uma dezena de dirigentes catalães eleitos. Há presos catalães por motivos políticos que têm a respaldá-los o voto popular em eleições livres. Tão livres que, mesmo com dirigentes presos, o povo da Catalunha votou maioritariamente nos independentistas.
É preciso ter presente que as secessões nunca se basearam na legalidade existente, pois ela jamais comportou a separação. Ainda hoje Portugal seria uma província ou uma região de Espanha se não fosse a secessão pelas armas de D. Afonso Henriques que levou ao reconhecimento da independência portuguesa em 5 de abril de 1143, no Tratado de Zamora.
Toda a gente sabe que Espanha tem dentro de si nações com língua própria e que, de acordo com os mais elementares princípios do direito internacional, têm o direito à autodeterminação, no quadro de uma legalidade que contemple esse princípio. No quadro de uma legalidade que não contemple tal princípio, os povos têm o direito à chamada guerra justa contra o opressor; é uma exceção ao n.º 4 do artigo 2.º da Carta das Nações Unidas que interdita a guerra.
Nunca a independência de um país foi defendida por todos os autóctones desse país. Sempre houve filipistas em Portugal na altura da perda da independência de Portugal para Castela. Sempre houve nos EUA quem pretendesse manter a ligação à Inglaterra ou na Argélia à França, ou nas colónias portuguesas a Portugal; é dos livros e da História.
Cabe, assim, perguntar se o que se passa na Catalunha é um problema interno. E o que se passa no Irão? É um problema da União Europeia ou também é só interno? E o que se passa na Venezuela? E o que se passava no Kosovo, era um problema de que país? E o que se passa na Sara Ocidental é um problema de Marrocos? E o que se passa na Palestina é um problema dos palestinianos, face ao qual a comunidade internacional baixa os olhos para fazer de conta que não vê os milhares de mortos, vendo apenas os mortos sírios, esses, sim, envolvidos num conflito interno? E o problema de Timor-Leste era um assunto interno da Indonésia, não era? E o problema da minoria rohingya na Birmânia, não é interno?
Os independentistas catalães circunscreveram a sua ação a um quadro pacífico no qual pretendem que lhes seja reconhecido o direito à independência.
Independentemente da realização do referendo, convocado sem sustento legal, o problema da independência da Catalunha tem de ser resolvido através do meio que permita ao povo catalão optar pela independência ou manter a sua integração na Espanha. O modo como o Governo espanhol está a tentar resolvê-lo, por via dos tribunais, é insustentável. Quantos mais independentistas prenderem e condenarem, mais agravam a situação criada. Só dando a palavra ao povo catalão se pode encontrar a solução que permitirá resolver a equação em questão.
Aliás, a prova da derrota de Rajoy foi o quase desaparecimento do PP na Catalunha; naturalmente que o Partido Ciudadanos ganhou porque houve uma transferência de votos que provavelmente não se repetirá na mesma escala.
O certo é que a repetição das eleições, em dezembro do ano passado, confirmou que os catalães têm a preferência pelos partidos independentistas. E, assim sendo, continuar a fazer de conta que o problema se resolve com prisões e eventuais condenações significa acrescentar lenha ao fogo existente.
Os juízes-conselheiros do STJ de Espanha, ao ordenarem a prisão dos independentistas catalães, estão a dar guarida às teses do Governo espanhol que pretende tapar o problema com a repressão que se está a abater sobre os dirigentes catalães a quem o povo catalão deu o seu voto de modo maioritário. Querem fazer passar o que é impensável passar – que Puigdemont e os seus companheiros são criminosos; só mentes perversas o concebem. Os tribunais não foram feitos para impor a tirania centralista.
Se as tentativas de negociação dos catalães enfrentam o punho centralista e brutal dos juízes a fazer de políticos, a crise não só se vai agudizar, como o afastamento da Catalunha será maior, devido exatamente a essa cegueira.
As independências, quando são suportadas pela maioria de um povo, não são impedidas nem por exércitos ou governos, muito menos por tribunais. A ver vamos.
Os juízes alemães de Schleswig-Holstein não quiseram ficar na fotografia como Pôncio Pilatos. Pelo menos para já. Os do STJ de Espanha ficarão como tendo colocado a justiça ao serviço da repressão e opressão. É triste não poder contar com a justiça.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico