Por que razão o sobrolho é tão importante na nossa evolução?
Reconstituição virtual do crânio de um dos nossos antepassados verificou que a mudança da forma das sobrancelhas terá favorecido a nossa comunicação não verbal.
Franzir o sobrolho tem muito que se lhe diga. Nem sempre tivemos umas sobrancelhas expressivas e isso é visível nos fósseis de outras espécies humanas. Como tal, uma equipa de cientistas – que tem como principal autor o antropólogo português Ricardo Godinho – estudou a evolução do sobrolho nos humanos. Num artigo científico esta segunda-feira na revista Nature Ecology & Evolution propõe-se que a alteração para um sobrolho mais expressivo terá melhorado a nossa comunicação não verbal, o que possibilitou redes sociais mais complexas. E isso terá tido impacto na nossa própria sobrevivência.
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Franzir o sobrolho tem muito que se lhe diga. Nem sempre tivemos umas sobrancelhas expressivas e isso é visível nos fósseis de outras espécies humanas. Como tal, uma equipa de cientistas – que tem como principal autor o antropólogo português Ricardo Godinho – estudou a evolução do sobrolho nos humanos. Num artigo científico esta segunda-feira na revista Nature Ecology & Evolution propõe-se que a alteração para um sobrolho mais expressivo terá melhorado a nossa comunicação não verbal, o que possibilitou redes sociais mais complexas. E isso terá tido impacto na nossa própria sobrevivência.
Concentremo-nos no crânio, nomeadamente na arcada supraciliar. É nessa região que está o sobrolho (ou sobrancelhas). Se olharmos para a mesma zona de um crânio chamado “Kabwe 1” de um Homo heidelbergensis – espécie que viveu há entre 600 mil anos e 200 mil anos – e foi encontrado na actual Zâmbia, reparamos que é mais saliente do que a dos humanos actuais. Para perceber por que é que a arcada supraciliar tinha essa forma, fez-se uma reconstituição virtual do crânio.
Como há várias hipóteses para explicar a importância da arcada supraciliar nessa espécie, a equipa testou-as. Uma das hipóteses defende que a arcada supraciliar preenchia um espaço onde as órbitas oculares e a caixa craniana se encontravam: é a hipótese espacial. “Reparámos que [a arcada supraciliar] parecia estar em excesso”, diz Ricardo Godinho, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve e da Universidade de York (Reino Unido). Portanto, descartaram essa hipótese por si só.
Outra hipótese refere que essa região servia para estabilizar o crânio devido à força da mastigação: é a hipótese mastigatória. Mas, quando se retirou a arcada da reconstituição, não havia grandes diferenças na simulação da mastigação. Por isso, também se deixou de lado essa hipótese. Ricardo Godinho acrescenta ainda que o crânio dessa espécie tem excesso de osso naquela região, o que pode ser um sinal de dominância e agressividade, como acontece com os mandris (primatas), que têm crescimentos ósseos ligados a factores hormonais. No fundo, todas estas explicações tiveram um pequeno contributo, mas não valem por si só. Afinal, qual é a explicação?
“Já que a forma da arcada supraciliar não é impulsionada por condições espaciais ou mecânicas por si só, e outras explicações como manter o suor ou o cabelo longe dos olhos já foram excluídas, sugerimos que um contributo plausível seja a comunicação”, considera Paul O’Higgins, coordenador do trabalho e também da Universidade de York, num comunicado da sua instituição.
Independentemente da causa, a nossa testa começou a ficar cada vez mais vertical e a arcada supraciliar reduziu-se nos últimos 100 mil anos. “Este processo tornou-se particularmente rápido nos últimos 20 mil anos e, mais recentemente, quando mudámos de caçadores para agricultores – um estilo de vida que significou menos variedade na dieta e menos esforço físico”, lê-se no comunicado. “A testa tornou-se mais vertical e as sobrancelhas tiveram um papel de maior destaque. Tornámo-nos mais perceptíveis para os outros e mais expressivos”, explica Ricardo Godinho. “A mudança da forma da testa e da arcada supraciliar terá permitido destacar as sobrancelhas na comunicação não verbal.”
Tanto confiança como decepção
“O movimento das sobrancelhas permite-nos expressar emoções complexas como perceber as emoções dos outros”, diz Penny Spikins, outra das autoras do estudo e também da Universidade de York. “Um rápido franzir do sobrolho é um sinal intercultural de reconhecimento e de receptividade para uma interacção social e levantar sobrancelhas é uma expressão de compaixão. Pequenos movimentos das sobrancelhas são também componentes-chave para a identificação da confiança e da decepção.”
Num comentário ao artigo na mesma revista, Markus Bastir, do Museu Nacional de Ciências Naturais, em Madrid (Espanha), escreveu: “As sobrancelhas terão tido um papel cada vez maior na sinalização e comunicação em sociedade, como os humanos modernos [Homo sapiens, a nossa espécie] fazem hoje.” Mesmo assim, chama à atenção para o facto de o crânio estudado não ter mandíbula e ter sido usada uma mandíbula de neandertal (humano que se aproximava mais do Homo heidelbergensis, segundo os autores).
Ricardo Godinho responde a essa crítica dizendo que mesmo qualquer mandíbula de indivíduos diferentes de Homo heidelbergensis teria muita variabilidade relativamente ao crânio. E o antropólogo remata salientando que este estudo não invalida que o sobrolho tenha outras funções. Afinal, percebemos que há uma longa e complexa história sobre as nossas sobrancelhas.