Os Unknown Mortal Orchestra não têm tempo para o tédio
Sex & Food foi gravado entre o Vietname e o México porque Ruban Nielson precisava de fugir de uns Estados Unidos "mais loucos do que eram antes". Fugiu com Jimi Hendrix como figura tutelar para fazer sentido do mundo.
Essencial era fugir dos Estados Unidos. Fugir para se confrontar melhor com aquilo que é hoje esse país acometido de tanta turbulência. “Com a eleição de Donald Trump, com a forma como os media têm lidado com tudo o que foi acontecendo depois dela, os Estados Unidos tornaram-se ainda mais loucos do que eram antes. E eu estava mesmo a precisar de me afastar, de ir a sítios diferentes, de respirar um pouco de ar fresco e reavaliar tudo”. Assim o fez Ruban Nielson.
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Essencial era fugir dos Estados Unidos. Fugir para se confrontar melhor com aquilo que é hoje esse país acometido de tanta turbulência. “Com a eleição de Donald Trump, com a forma como os media têm lidado com tudo o que foi acontecendo depois dela, os Estados Unidos tornaram-se ainda mais loucos do que eram antes. E eu estava mesmo a precisar de me afastar, de ir a sítios diferentes, de respirar um pouco de ar fresco e reavaliar tudo”. Assim o fez Ruban Nielson.
Neo-zelandês nascido em 1980, habitante dos Estados Unidos há década e meia, esteve a gravar em Hanoi, no Vietname, durante a época das monções, estava na cidade do México a trabalhar em nova música quando, em Setembro do ano passado, o país sofreu um violento sismo. O álbum que nasceu dessa fuga (que passou ainda por Seul, na Coreia do Sul, por Reiquiavique, na Islândia, ou pela Nova Zelândia natal) chama-se Sex & Food. É o quarto álbum dos Unknown Mortal Orchestra. “É a minha tentativa de fazer sentido, de uma forma honesta, sobre o que sinto em relação aos tempos que vivemos”, explica ao Ípsilon.
É um álbum criado com Jimi Hendrix, herói de longa data, como figura tutelar. Um álbum em que vamos do furacão eléctrico rock’n’roll a batida funk lânguida enquanto Ruban Nielson canta com voz sussurrada este versos “heartbreak and thunder / days are getting darker”, enquanto Ruban Nielson provoca “my thinking is done by your computer / can’t escape the 20th century”. Ruban Nielson, que tinha por hábito gravar no quarto ou no estúdio caseiro, viajou como nunca viajara antes para criar música. Viajou para perceber como lidar com um sentimento que, ano após ano, o foi invadindo cada vez mais.
“Estou nos Estados Unidos há 15 anos e, quanto mais aqui estou, mais sou acometido daquilo que a chamo a ‘culpa americana’, o sentir-me implicado naquilo que esta sociedade faz e como se comporta”. Através da música, Ruban pretendia dar relevo “às tensões entre as visões a preto e branco que envolvem as questões em que os americanos são viciados: as divisões raciais e as divisões políticas”. Sónica e liricamente, diríamos que o conseguiu de forma exemplar. Este é, afinal, um álbum que alterna entre guitarras em ebulição, como no auge das jams de Hendrix na alvorada de Woodstock (Major league chemicals ou American guilt), psicadelismo encantatório criado com guitarra em cascata e voz dolente, como nos tempos lo-fi de II, o segundo álbum da banda (Ministry of alienation), folk acústica primaveril (Chronos feasts on his children) e o funk mutante, um pé no groove, outro em hedonismo soft-rock (Hunnybee, Everyone acts crazy nowadays), que a banda revelou no anterior Multi-Love, editado em 2015.
Em Multi-Love, Ruban Nielson redireccionou os Unknown Mortal Orchestra, conduzindo-os do lo-fi Beatlesco de clássicos modernos como So good at being in trouble até novos territórios: entrou em cena o gosto por Sly & The Family Stone, Stevie Wonder ou Prince, as guitarras passaram para segundo plano, teclas e baixo ganharam preponderância, e o psicadelismo cobriu-se de groove – funk passou a ser parte da genética da banda. Tal como os anteriores, Multi-Love era um disco de intimidades feitas letra de canção – mas, naquele caso, chamou mais a atenção pelo contexto: Ruban Nielson relatava e questionava a relação poliamorosa que mantivera enquanto o gravava (durante algum tempo, viveu enquanto casal formado por três pessoas, quando à sua mulher e filha se juntou uma segunda mulher). O impacto que teve na família a forma desassombrada com que falou à imprensa da relação, e a forma como a família se viu retratada na música levou-o a resguardar-se mais. Além disso, o mundo intrometeu-se e Ruban não podia, e não quis fugir dele.
“Sempre tentei que a minha música falasse de temas globais e pessoais ao mesmo tempo, mas neste tentei explicar de forma muito precisa o que sinto [em relação ao tempo que vivemos]”. Sex & Love, o título, refere-se ao imutável desde o início dos tempos: “São duas das coisas que as pessoas mais apreciam na vida, certo? Se tropeçássemos numa tribo amazónica perdida, compreenderiam os prazeres do sexo e da comida da mesma forma que uma pessoa do mundo moderno”, afirmou em entrevista recente ao site neo-zelandês Stuff. As canções que encontramos no novo disco enquadram esses traços humanos intemporais com as ansiedades, frustrações e perigos da era em que vivemos: a sensação de alienação numa era de informação total, a dependência tecnológica que frustra e entorpece, a sobremedicação galopante, o receio constante pelo futuro perante as sombras negras em formação acelerada no horizonte. Fazem-no com música que pode ser lúdica, eufórica, explosiva, até pastoral, enquanto exprime esses sentimentos. “Olhando para tudo, não consigo sentir uma coisa apenas. Sinto-me esperançado e assustado ao mesmo tempo”, confessa ao Ípsilon.
Rock'n'roll na época das monções
Ele bem tentava escapar, mas, nesta segunda década do século XXI, escapar é impossível. “O simples acto de pegar no telemóvel para falar com um amigo faz com que acabe a ler as notícias do dia e a ser sugado para toda uma série de narrativas em confronto. Queria forçar-me a libertar-me. Precisava disso”. Ruban Nielson já nos explicara que, desta vez, “a ideia de passar um ano e meio na cave” onde gravava habitualmente não lhe pareceu, de todo, uma boa ideia – “sinto-me muito solitário ali e receei que pudesse enlouquecer”. Há-de dizer-nos depois que tudo aquilo que é Sex & Food nasceu de uma vontade – “queria tocar mais guitarra neste disco” – e de um reencontro – “na guitarra, para mim, a influência mais óbvia é Jimi Hendrix”. E é precisamente aqui que começa a viagem para longe dos Estados Unidos.
“Associo muita da música dos anos 1960 que mais me inspira, como Jimi Hendrix, à guerra do Vietname”, conta. “Neste momento há uma vaga de socialismo entre a juventude americana, algo que seria impensável quando me mudei para lá. Nessa altura, o simples acto de acusar alguém de ser socialista podia destruir uma carreira. Achei que ir até ao Vietname, país comunista, país onde os Estados Unidos foram derrotados quando tentaram conter a maré vermelha, me poderia ensinar algumas coisas sobre o que está errado com os americanos”.
Em Hanoi, juntamente com o baixista Jake Portrait e o irmão Kody Nielson, baterista, viveu entre o apartamento alugado e um estúdio usado habitualmente para gravar música tradicional vietnamita. “Gravar ali foi um trabalho duro – é de loucos imaginar uma guerra a acontecer durante a época das monções”. Foi também uma aprendizagem: “Romantizava muito o comunismo, mas deparei-me com os problemas com que lidam ali”. Durante o período de gravações a banda conheceu um cantautor local com quem espera editar no futuro um álbum em conjunto. “Será algo entre kraut-rock e jazz”. O seu nome? Ruban Nielson não o diz. “Ele escreve muitas canções de protesto e teve um concerto interrompido pela polícia enquanto lá estávamos. Teve que subornar para não ser preso. Tenho receio que, se contar esta história e juntar o nome dele, lhe possa arranjar problemas. E também seria bom que eu pudesse voltar ao Vietname”.
Algum tempo depois, percorridas mais uma série de cidades em gravações, a banda estava na Cidade do México entregue à rotina habitual entre o apartamento alugado e o estúdio – “não fizemos quaisquer viagens, nem nos metemos em grandes diversões para além do trabalho que, de qualquer maneira, é a coisa mais divertida que fazemos”. Foi então que a terra abanou violentamente. “Foi uma experiência assustadora, com os edifícios a colapsar e nós presos num parque à noite sem conseguir voltar ao apartamento”. Nesses momentos de angústia, esperavam assistir a um caos violento, mas a entreajuda que testemunharam chegou como um bálsamo. Em determinado momento, um homem irrompeu entre os escombros e fez ouvir a sua voz: “Viva México!”, gritou – e o grito surge agora cantado por Ruban Nielson em American guilt.
“Suponho que uma das melhores coisas que existe na música é a possibilidade de usar experiências diferentes e reuni-las de forma a que não pareçam fruto do acaso. Nas canções, consegues fazer sentido de todas as tuas experiências”. Sex & Food, onde convivem e se mesclam pedaços daquilo que os Unknown Mortal Orchestra foram sendo ao longo dos anos, é um álbum diverso que nunca se sente disperso – na verdade, sentimos as suas variações de humor e de intensidade como enriquecedoras. “Inicialmente temi que resultasse num disco pouco coerente, mas depois pensei em como o streaming mudou a forma como se ouve música e, em vez de me deixar intimidar, vi nisso um desafio criativo”, diz Ruban Nielson. “Permiti-me a liberdade de explorar ideias diferentes sobre o que a banda poderia ser e balançar entre extremos. Achei que, entre a produção, a minha forma de escrever letras e de cantar, conseguiria coser estes elementos diferentes num som. Talvez seja esse, de facto, o meu trabalho”.
Largos minutos antes, em início de conversa, o fundador dos Unknown Mortal Orchestra definia-se como obcecado pelo trabalho. Dizia: “A versão adulta do Ruban Nielson está a fazer tudo o que o adolescente Ruban Nielson queria fazer. Já o adulto Ruban Nielson gostava de ter o privilégio de se poder sentir entediado como o adolescente Ruban Nielson”. Felizmente, há discos para fazer e um Ruban Nielson workhalolic a tentar fazer sentido de um mundo em ebulição. Não há tempo para o tédio.