Aviso ao leitor
Colectânea de textos em jeito de prefácio, mas a livros inexistentes, que serviram a Kierkgaard como inspirados exercícios de sátira e de paródia.
Numa semana de Junho do ano de 1844, o filósofo, teólogo e escritor dinamarquês, Søren Kierkegaard (1813-1855), publicou intencionalmente três obras de uma assentada: Migalhas Filosóficas, O Conceito de Angústia e Prefácios, e todas elas assinados com pseudónimos diferentes — alguns talvez possam ser quase considerados heterónimos pois parecem dialogar com outros ao longo das suas obras. O último dos títulos acima referidos, Prefácios (agora traduzido para português, resultado de um protocolo entre as universidades de Lisboa e de Copenhaga), da “autoria” de um tal Nicolaus Notabene, é, como o título sugere, uma colectânea de prefácios escritos para livros inexistentes — há uma excepção, o capítulo VII que, sabe-se, foi escrito “inicialmente” para prefaciar o seu livro O Conceito de Angústia, no entanto, não abdicando de ser crítico em relação ao meio cultural: “O presente livro, que aqui envio, foi escrito como creio que em tempos mais antigos se escreviam livros. Aquele que o escreveu é alguém que pensou bastante sobre o assunto acerca do qual fala, e acredita por isso que sabe um pouco mais sobre ele do que em geral se sabe.”
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Numa semana de Junho do ano de 1844, o filósofo, teólogo e escritor dinamarquês, Søren Kierkegaard (1813-1855), publicou intencionalmente três obras de uma assentada: Migalhas Filosóficas, O Conceito de Angústia e Prefácios, e todas elas assinados com pseudónimos diferentes — alguns talvez possam ser quase considerados heterónimos pois parecem dialogar com outros ao longo das suas obras. O último dos títulos acima referidos, Prefácios (agora traduzido para português, resultado de um protocolo entre as universidades de Lisboa e de Copenhaga), da “autoria” de um tal Nicolaus Notabene, é, como o título sugere, uma colectânea de prefácios escritos para livros inexistentes — há uma excepção, o capítulo VII que, sabe-se, foi escrito “inicialmente” para prefaciar o seu livro O Conceito de Angústia, no entanto, não abdicando de ser crítico em relação ao meio cultural: “O presente livro, que aqui envio, foi escrito como creio que em tempos mais antigos se escreviam livros. Aquele que o escreveu é alguém que pensou bastante sobre o assunto acerca do qual fala, e acredita por isso que sabe um pouco mais sobre ele do que em geral se sabe.”
O suposto autor, o senhor Nicolaus Notabene, no prefácio inicial, confessa em tom claramente humorístico, parodiando costumes conjugais — um tema que parece ter interessado bastante a Kierkgaard pois dedicou-lhe um longo capítulo, “Um ensaio para salvar esteticamente o casamento”, na segunda parte do livro Ou-Ou (Um Fragmento de Vida) — que abdicou de escrever livros por causa de a sua mulher entender que “ser autor quando se está casado é uma flagrante infidelidade”; por isso, ele apenas escreve prefácios, mantendo-se assim ‘fiel’ no casamento.
Esta colectânea de textos em jeito de introduções, ou de apresentações, mais não é do que uma nova forma imaginativa de fazer sátira e paródia, pois extravasa em muito a habitual forma do “prefácio”; lendo-os (com a necessária e completa ajuda do aparato crítico desta edição, em notas explicativas de referências e de citações) entendemos que vários destes textos (sobretudo os quatro primeiros) são um implacável “acerto de contas” com o dramaturgo e filósofo Johan Ludvig Heiberg (de quem faz uma exposição pública dos defeitos), mas também com Hegel, com os hegelianos dinamarqueses, e com a igreja da Dinamarca na pessoa de um bispo. Prefácios caracteriza-se, ao contrário dos outros dois livros publicados por Kierkgaard na mesma semana, pelo referido tom satírico e polémico, mas reunindo também um curioso “conjunto de avisos ao leitor” que não “devem ser descurados”, avisos estes para onde o apelido do autor nos remete, Notabene, como refere Elisabete M. de Sousa na brilhante e informada introdução.
Mas do que nos avisa Kierkgaard nestas suas sátiras escritas à maneira de prefácios? Ao explicitar e ridicularizar as interferências e confusões entre os limites das esferas da filosofia e da sua “miséria”, da teologia e da literatura, o escritor dinamarquês expõe a promiscuidade, com todos os seus efeitos nocivos, dos contactos dos vários agentes envolvidos nos usos do “mundo das letras” e da cultura de Copenhaga à época. Da sua exposição mordaz ninguém sai incólume, desde professores a filósofos, de autores a editores, a leitores, a autores de recensões, a jornalistas e livreiros. Para extrair o máximo efeito do género satírico por si escolhido, recorre ao ridículo de várias situações, como o faz, por exemplo, em relação à crítica literária (note-se que alguns dos seus livros não foram bem recebidos pela crítica dinamarquesa da época, e vários dos textos são também um ‘ajuste de contas’ com a imprensa): “O tal amigo da província não leu o livro, mas recebeu uma carta de um homem da capital que também não leu o livro, mas que leu a recensão, por sua vez escrita por um homem que não lera o livro, mas ouvira o que aquele homem digno de confiança, que folheara um pouco o livro na [livraria] Reitzel, tinha dito.”
Estes textos mordazes de Kierkgaard mostram a sua vontade demolidora do conceito de cultura “em função da sua época”, bem como a ideia de “nocivo” entre a proximidade da filosofia e da teologia.