“Parte dos gastos é com o tratamento das consequências da falta de qualidade”
Cardiologista João Queiroz e Melo, distinguido neste sábado com o Prémio Nacional de Saúde, alerta para a necessidade de se avaliar urgentemente a qualidade dos cuidados de saúde no sector público.
Quando decidiu pôr fim à actividade cirúrgica, aos 65 anos, João Queiroz e Melo fê-lo porque acreditava que um cirurgião deve sair quando os seus conhecimentos e experiências ainda podem ser úteis à medicina. “Tenho é pena que o Serviço Nacional de Saúde não aproveite estes profissionais, que se tornam injustificadamente dispositivos de uso único." A reflexão do médico responsável pelo primeiro transplante cardíaco feito em Portugal, em 1986, e que neste sábado recebeu o Prémio Nacional de Saúde, leva-o a fazer um retrato dos gastos em saúde. E a sugerir um modelo para os conter.
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Quando decidiu pôr fim à actividade cirúrgica, aos 65 anos, João Queiroz e Melo fê-lo porque acreditava que um cirurgião deve sair quando os seus conhecimentos e experiências ainda podem ser úteis à medicina. “Tenho é pena que o Serviço Nacional de Saúde não aproveite estes profissionais, que se tornam injustificadamente dispositivos de uso único." A reflexão do médico responsável pelo primeiro transplante cardíaco feito em Portugal, em 1986, e que neste sábado recebeu o Prémio Nacional de Saúde, leva-o a fazer um retrato dos gastos em saúde. E a sugerir um modelo para os conter.
João Queiroz e Melo defende a tese de que a saúde não tem preço mas tem um custo, e que o primeiro passo para a sustentabilidade das contas é a boa qualidade dos cuidados. Contudo, hoje em Portugal, “uma parte substancial dos gastos é com o tratamento das consequências da falta de qualidade”, afirma. Esta percepção leva o cardiologista e investigador a afirmar a necessidade urgente de uma entidade independente avaliar a qualidade dos cuidados. “Temos gasto muito tempo e dinheiro com a certificação de procedimentos, mas para saber da validade desses procedimentos temos que produzir informação fiável sobre os resultados obtidos e a sua melhoria. A informação disponível é irrelevante”, sustenta.
Na opinião do cirurgião, “é indispensável saber a taxa de mortalidade de um serviço cirúrgico”. Assim como é imperativo “saber se o doente teve acesso ao cuidado em tempo útil, de forma segura e eficiente, e se o problema que o levou ao tratamento foi solucionado de forma estável (pelo menos até aos seis meses)”. Para estas questões não há resposta nas estatísticas e estudos hoje disponíveis.
Queiroz e Melo coloca ainda a tónica nos “erros e deficiente coordenação” que acontecem em contexto hospitalar. Uma realidade que considera "grave" mas que, “em harmonia com o que se passa noutros países, não tem merecido a atenção devida”.
“Nos Estados Unidos da América, o erro e a descoordenação de cuidados é a terceira causa de morte hospitalar. E no nosso meio qual será?”, interroga.
Hospitais verdes
Ainda em matéria de gastos, na sua intervenção, Queiroz e Melo chama a atenção para o desperdício e impacto ambiental da saúde. “Os hospitais são dos maiores poluidores. Em Portugal, cada cama hospitalar gerava, há dez anos, seis a oito quilos por dia. A pegada ecológica de um doente internado num hospital é quatro vezes a de um cidadão comum”, sublinhou o cirurgião, vincando a necessidade de pensar nos hospitais com um compromisso ecológico – à imagem dos green hospitals existentes noutros países europeus.
E recorre os números da antiga directora-geral da Organização Mundial de Saúde, Margaret Chan, para o justificar. Em 2010, esta estimava que cerca de 30% dos gastos em saúde eram desperdiçados. “E se os evitássemos não seria necessário cortes orçamentais”.
Reunidas “todas as condições” para a fuga de médicos
Quando compara o número de médicos com outros países desenvolvidos, Queiroz e Melo diz que Portugal os tem “em quantidade suficiente”. No entanto, considera que, em 50 anos, pouco mudou na forma como estes são integrados nas instituições. “O multi-emprego é uma realidade nefasta para muitas especialidades e não vejo grande diferença entre a realidade que se passava em 68 e agora, em 2018."
O que piorou foi a emigração da classe e a ida para o sector privado. “Não temos sido capazes de fixar os médicos aos hospitais e desde 2005 foram criadas todas as condições para que eles fugissem”, alerta. Para o contrariar, é agora urgente “restabelecer a confiança mútua”.
E também dentro dos serviços, há margem para mudança: lideranças claras e mais diálogo. “Não é mais possível haver estruturas de saúde em que haja ausência de diálogo entre as diferentes profissionais. Sendo que muitas vezes existe até hostilidade”, vincou.
“Profissionais não devem ter receio de ser descartáveis”
Ao reflectir sobre o “potencial inesgotável” das inovações no campo da tecnologia da saúde – telemedicina, medicina celular e personalizada, genómica e inteligência artificial – Queiroz e Melo acredita que os profissionais não só não podem “ter receio do progresso”, como devem contribuir para ele.
“Sabendo que a tecnologia pode ter comportamentos, [ela] não tem sentimentos, e estes são a base da medicina. Por isso, os profissionais não devem ter receio de ser descartáveis”, constatou.
Coragem para investir nos cuidados primários
No seu discurso de agradecimento, João Queiroz e Melo partilhou o prémio com aqueles com quem trabalhou nestes 50 anos de carreira, em sete países, de três continentes. Assistiu, neste período, a “um progresso notável nos indicadores de saúde” em Portugal, alcançado “com um investimento muito reduzido quando comparado com o de outros países”.
“Devemos orgulhar-nos dessas melhorias, mas ter a percepção do que elas significam”, afirmou, dando o exemplo da esperança média de vida situada aos 81 anos, mas que não reflecte um prolongamento da vida com saúde.
Para fazer corresponder o aumento dos anos de vida a uma melhoria da sua qualidade, “o financiamento tem que aumentar substancialmente em cuidados de saúde primários”. Para o cardiologista esta é, no entanto, uma medida que exige “coragem”, porque os resultados aparecerão apenas a médio prazo. “Mas é urgente fazê-lo."
Colocar o ênfase dos cuidados nos doentes, é outro dos seus desígnios. Não duvida que tal acontecerá no futuro, mas recorda que, em 1968, quando se iniciou na medicina, o foco estava nos médicos e, “hoje, passados 50 anos, está nos gestores”. Para mudar, profissionais de saúde e gestores devem garantir que os cidadãos têm todas as ferramentas e informação que precisam para tomar decisões por si.
“Se é possível fazer melhor o que já temos?” O cardiologista não duvida que sim, “tendo presente que o mundo só muda se cada uma de nós mudar”.