Lula: a queda e o mito
O Brasil é uma sociedade polarizada, em que se combinam a judicialização da política, a paralisia do poder político e a degradação dos partidos. Condenado o líder do PT, poderá emergir um lulismo radical e nascer um mito político.
A crise política brasileira está hoje centrada em Lula mas tem um contexto muito mais vasto. A sociedade parece perigosamente polarizada desde a eleição de Dilma Rouseff, em 2010. A paralisia do sistema político favorece a radicalização dos dois campos — o petista e o antipetista. Avança a judicialização da política e, com ela, o risco de politização da Justiça. As decisões judiciais acabam por ser politicamente interpretadas, negativa ou positivamente. E tornaram-se, de facto, numa espécie de regulador do sistema político.
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A crise política brasileira está hoje centrada em Lula mas tem um contexto muito mais vasto. A sociedade parece perigosamente polarizada desde a eleição de Dilma Rouseff, em 2010. A paralisia do sistema político favorece a radicalização dos dois campos — o petista e o antipetista. Avança a judicialização da política e, com ela, o risco de politização da Justiça. As decisões judiciais acabam por ser politicamente interpretadas, negativa ou positivamente. E tornaram-se, de facto, numa espécie de regulador do sistema político.
Comecemos por aqui. Não foram os juízes quem promoveu a judicialização da política, foram o sistema político brasileiro e os seus históricos vícios que a proporcionaram. De escândalo em escândalo, disse alguém, “a política está hoje nas páginas policiais”. Numa entrevista à BBC, adverte o historiador José Murilo de Carvalho: “O poder judiciário — incluindo aí o Ministério Público e a Polícia Federal — tornou-se quase hegemónico diante do [descrédito moral] do Executivo e do Parlamento.” Riscos? A descrença nos políticos pode “abrir caminho para aventureiros populistas”. Ou, noutra variante, acabar como a “Operação Mãos Limpas” da Itália, reduzindo ou anulando a própria luta contra a corrupção. É que a “velha política” não disse ainda a última palavra.
Anotava, em 2016, o jurista Daniel Vargas, antigo colaborador de Lula, que a “interferência do Judiciário não é um remédio mas um sintoma de doença”. O facto de o Supremo Tribunal Federal se estar a transformar “no grande protagonista das decisões políticas, e também de muitas das económicas, indicia apenas como a democracia brasileira sangra cada vez mais. Não conseguimos mais apresentar um caminho sem uma intervenção judicial.”
O PT e a polarização
O Partido dos Trabalhadores (PT) está no epicentro da crispação. Escrevia, em 2015, o historiador Lincoln Secco, autor do livro História do PT (2011): “O que o PT talvez não tenha entendido é que existe um sentimento difuso na sociedade desde 2005 que é o antipetismo, traduzido pelo discurso anticorrupção e ‘anti-aparelhismo’ do Estado, por mais que sejam noções que se aplicam também a governos anteriores. Mas não basta ao PT dizer isso porque o partido está no poder há 13 anos.” O ano de 2005 é o do escândalo do Mensalão, suborno de deputados da oposição para fazer passar leis.
O PT apresentou-se desde a origem como um “partido ético”, o que agrava o juízo moral. Observa Murilo de Carvalho: “O facto de o PT, com, no mínimo, a aprovação de Lula, ter-se deixado atrair por práticas [condenáveis], causou um grande dano à esquerda e à política brasileira.” Sublinha Secco: “Dois ex-presidentes do partido foram para a cadeia. Acredito que não haja paralelo em nenhum partido social-democrata do mundo.” O PT ofereceu à direita as munições para se descredibilizar.
A polarização política não tem apenas a ver com os partidos de direita, dispostos a tudo para afastar o PT da área do poder. Tem muito a ver com as classes médias. De início, estas apoiaram o PT. A partir do fim do primeiro mandato de Lula tornaram-se hostis. Houve um efeito perverso. Lula não tinha força nem base eleitoral para realizar o programa do PT. Teve de fazer alianças com partidos de direita de duvidosa moral política. Forçado ao realismo, desenvolveu um programa de “conciliação” entre os muito pobres e os muito ricos. Tratava-se de cumprir a promessa da guerra contra a pobreza e, ao mesmo tempo, garantir a cooperação e o investimento dos grandes empresários.
As classes médias ficaram de fora dos benefícios. Aquele difícil equilíbrio, a que se chamou “pacto social rentista”, só era possível durante os anos de expansão e de alto valor das exportações brasileiras. Acabada esta renda, a ruptura acontece no mandato de Dilma.
As classes médias indignam-se: sentem a erosão dos seus rendimentos e, sobretudo, pagam impostos altos e o Estado não as compensa com serviços públicos eficientes. Mas era um tabu para o PT seguir a via “radical” de aumentar a pressão fiscal sobre as grandes fortunas e negócios de modo a transferir recursos para os serviços públicos. O PT paga, paradoxalmente, o preço da “moderação” e da “conciliação” de Lula. Os seus adversários apostam agora na exacerbação do protesto das classes médias.
O lulismo
O PT histórico foi decapitado no processo do Mensalão. Hoje, é um partido vulnerável, no meio de uma cena partidária cada vez mais estilhaçada e degradada. A direita tradicional está “sem discurso” e progride a extrema-direita nacionalista.
Chegamos, enfim, à condenação de Lula. O lulismo é um fenómeno mais difuso do que o petismo. Recorro uma vez mais a Secco. Disse em Janeiro, quando Lula foi condenado: “O que aconteceu foi um recado claro. Lula não pode ser candidato e deve ser preso como exemplo. O PT vai reagir com força verbal à sentença, mas será difícil no curto prazo mobilizar resistência nas ruas porque os dirigentes actuais não comandam manifestações há 20 anos e desconhecem a sua base social. [...] A percepção da base social [de Lula] vai mudar. Ele se torna vítima dos poderosos.”
Conclusão? “É possível que os juízes tenham contribuído para consolidar o mito Lula por uma ou duas gerações e venhamos a ter um lulismo mais radical sem Lula e até sem esta actual direcção do PT.”