Nesta aldeia o tempo é outra coisa e o barro é para todos

Na Lousã há uma aldeia de xisto que esteve abandonada e hoje tem alojamento e uma escola de artes aberta a todos. Na Cerdeira os dias passam mais devagar e ganha-se a serra, o vale. Para os que gostam de experimentar, há cursos de cerâmica, desenho e muito mais. Tudo para nos ligar à terra, à água, aos carvalhos e castanheiros.

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Ainda de longe, sob a chuva cerrada, é difícil perceber que tamanho tem. Do fim da estrada, no largo onde se deixam os carros e onde há uma capela muito pequenina com as paredes rebocadas, coisa pouco comum para aqueles lados, é impossível dizer quantas casas terá. À medida que se caminha, começa a ouvir-se a água do riacho, de cascatas vigorosas nesta época do ano, e o canto dos pássaros. Se estivéssemos na chamada época da brama (entre Setembro e Novembro), período de acasalamento do maior mamífero da serra da Lousã, talvez pudéssemos juntar os veados a esta banda sonora de boas-vindas a uma das mais bem preservadas aldeias de xisto da região.

Rodeada por um emaranhado de caminhos que apetece percorrer, plantada na encosta como se sempre ali tivesse estado, a Cerdeira passou dez anos abandonada, antes de renascer graças ao impulso de dois casais — o dos alemães Kerstin Thomas e Bernard Langer e o dos portugueses Natália e José Serra —, e tem hoje um projecto de turismo rural que inclui uma escola de artes voltada para as práticas manuais como a olaria, a pintura em cerâmica e a tecelagem (Cerdeira, Arts & Crafts School).

“O que queremos é que as pessoas venham até aqui para se desligar do mundo que conhecem e para viverem mais perto esta natureza que é tão inspiradora e que, por isso mesmo, pode fazer com que lhes apeteça experimentar o trabalho do barro ou da madeira. Aqui o tempo é outra coisa”, diz Kerstin Thomas, a escultora alemã de 54 anos que descobriu a Cerdeira aos 24, quando estudava em Coimbra e quando tudo o que queria, lembra à Fugas, era um espaço para o seu atelier. Acabou por encontrar um para viver, e isso foi há já 30 anos. Desde então, foi apresentando a aldeia aos amigos e alguns deles estão hoje a ajudar a recuperá-la.

“Quando chegámos, a maioria das casas estava muito degradada, não havia saneamento, nem electricidade, a rua que atravessa a aldeia não estava arranjada. Hoje tudo isso está mudado.” Na parte de cima da Cerdeira Kerstin encontrou o local ideal para montar o seu estúdio e bastou isso para que desse início a um projecto que levou à recuperação de metade das casas. As contas são simples: “A aldeia tem 30 casas, todas em xisto, e nós recuperámos 16, mas nem todas são para ficar — temos a biblioteca, o café, a galeria, a oficina, a casa das artes…”

Nove delas estão preparadas para alojamento e foram recuperadas respeitando técnicas tradicionais e usando materiais locais, tornando a construção tão sustentável quanto possível.

Foi a Casa das Artes, que hoje serve de sala de exposições e de trabalho para grupos maiores (a aldeia é também muito usada para “retiros” de empresa) e que tem uma vista soberba sobre o vale, o “balão de ensaio” para o projecto de alojamento que arrancou em 2012 com duas casas.

“Para nós era muito importante que as casas fossem muito eficientes em termos energéticos, mas que mantivessem não só a traça arquitectónica, como métodos de construção da região.” Usar materiais e mão-de-obra locais, estabelecendo modelos para intervenções semelhantes na serra, também estava entre os objectivos. A arte, essa, seria sempre um factor diferenciador.

As nove casas que recebem com todo o conforto os hóspedes — o projecto deverá ficar por aqui no que ao alojamento diz respeito — têm intervenções de escultores ou ceramistas. É assim na Casa do Sol, que deve o nome ao facto de ser a primeira a recebê-lo (quando ele se deixa ver) pela manhã, com as portas e janelas de João Gomes; na da Azeitona, em que as criações em têxtil de Vânia Kosta homenageiam animais ligados à aldeia (é lá que ficamos a saber que Branquinha é nome de cadela e que o Azeitona era um gato); na das Vizinhas, em que as esculturas em madeira da própria Kerstin Thomas sublinham a importância das relações porta a porta nestas pequenas comunidades serranas, durante décadas muito isoladas; ou na das Estórias, com as peças de Carmina Anastácio e de Martim Santa Rita a recordarem o papel da oralidade nas noites rigorosas de Inverno, à lareira, ou nas tardes de Verão, à sombra, quando o calor não deixava trabalhar. 

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Kerstin Thomas e Renato Costa e Silva junto à oficina da Cerdeira

“As pessoas que vêm não querem só dormir num lugar bonito. Querem mais e nós queremos dar-lhes mais.”

A maioria das 27 povoações abrangidas pela Agência para o Desenvolvimento Turístico das Aldeias do Xisto (Adxtur), que envolve também a Cerdeira, não chegou a ser abandonada, lembra Thomas: “Na Cerdeira foi diferente. As pessoas começaram a sair nos anos 1920, mais intensamente depois, na década de 60, até isto ficar vazio. Iam para Lisboa, trabalhar na estiva, ou para os Estados Unidos.” A escultora chegou a conhecer alguns dos antigos moradores e ainda hoje mantém contacto com os seus descendentes. Os que foram para a capital ficaram quase todos a morar no mesmo bairro. “Repetiam esta comunidade, mas noutro lugar, noutra rua.”

Tendo ficado deserta, continua, a Cerdeira perdeu a riqueza humana e tudo o que ela traz: “Não temos os campos cultivados, aqui não se produz azeite, não se faz vinho, nem pão, nem chouriços… As histórias que conhecemos sobre este lugar foram aquelas que conseguimos encontrar fora daqui. Tínhamos à partida uma grande riqueza arquitectónica, é verdade, mas faltavam as pessoas.” Hoje já não faltam — oito famílias estão a recuperar a aldeia e os planos de alguns dos seus membros passam por viver ali todo o ano.

Internet só no café

Na aldeia não há televisão, o uso do telemóvel depende do operador que se tiver (só um tem cobertura de rede) e a Internet está limitada ao Café da Videira, onde são servidos os pequenos-almoços e onde se pode ir ler um jornal ou tomar uma bebida a meio da tarde. É também lá que está a chave da biblioteca, um espaço pequeno, mas muito acolhedor, perfeito para trabalhar quando é mesmo preciso roubar algum tempo aos dias ali passados em família ou com amigos.

No café estão também disponíveis nove roteiros para descobrir a região, com paragem em locais de interesse histórico e natural, assim como muitos percursos que se podem fazer a pé ou de bicicleta e que levam a aldeias vizinhas, obrigando a serra a revelar-se, devagarinho. Por baixo do Videira fica uma pequena loja, onde se podem comprar peças da autoria de alguns dos artistas que têm vindo a participar no festival que ali se realiza anualmente desde 2006 — chama-se Elementos à Solta e reúne uns 15 criadores nacionais e estrangeiros, que se desdobram em exposições, palestras e ateliers — e que são hoje convidados para dar formação na escola da aldeia (Cerdeira, Arts & Crafts School).

Desde o ano passado que Kerstin Thomas organiza na Cerdeira, de forma mais estruturada, cursos de cerâmica ou de desenho que ocupam vários dias, semanas criativas que misturam várias artes e workshops temáticos de três horas em que os participantes podem experimentar a tinturaria natural, a fiação de lã, a talha em madeira de castanho, a construção de casas de xisto em miniatura ou, simplesmente, aprender a preparar uma chanfana, prato típico que é servido em muitos dos restaurantes da região.

“Criar este centro na aldeia não tem só a ver com a nossa formação artística, tem a ver com garantir o futuro. Para continuar, a aldeia precisa de ter algo mais do que as infra-estruturas básicas que já tem. A arte dá-lhe uma razão para sobreviver para além da nossa paixão por ela.”

Não se trata apenas de recuperar o passado quando se trabalha em barro ou no tear, defende, trata-se de viver bem o presente e de imaginar o que há-de vir. “Diz o World Craft Council [organização não governamental criada em 1964 e ligada à UNESCO que se destina a promover o desenvolvimento a partir das actividades relacionadas com as artes e ofícios] que o futuro é feito à mão – eu acredito nisso.”

Ligação à terra

Renato Costa e Silva é ceramista e escultor e um dos formadores com que a escola da Cerdeira trabalha. Deu, com Kerstin Thomas, o curso de iniciação à cerâmica que a Fugas acompanhou em meados de Março. Perante um grupo pequeno de “artistas não profissionais” — dos três formandos, dois eram da área da saúde e o outro arquitecto — Renato recorreu à sua experiência de 40 anos para mostrar, com grande serenidade e um sorriso generoso, as possibilidades infinitas do barro.

Começa por explicar como é formado — “microcristais que se organizam de forma lamelar” — para depois poder ensinar a prepará-lo, em camadas, como se fosse massa folhada. “O barro cria memórias”, diz, “se o dobramos de determinada maneira, ele fica com essa memória e depois, mais à frente, quando julgamos estar já a fazer outra coisa, ele vai buscar esse jeito inicial.”

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Renato Costa e Silva trabalhando na roda

Na oficina onde o curso decorre há duas rodas eléctricas, caixas de barro e de outros materiais, duas mesas de marcenaria com um pequeno torno, cadeiras, peças já terminadas e outras que esperam a sua vez para entrar no forno, e uma salamandra que ajuda a tornar ainda mais acolhedor este espaço onde se pode experimentar sem limites, onde se pode “perder” tempo para se ganharem outras coisas.

“A causa-efeito é o vosso guia. Se hoje correu mal não façam outra vez sem perceber por que é que correu mal”, continua Renato, que por vezes parece falar como se estivesse a treinar quem o ouve para a vida e não apenas para o trabalho manual. “Gosto do lado de mistério do barro — haverá sempre muita coisa que eu ainda não sei, que ainda não descobri. E isso torna-me mais atento, mais disponível. É como com as pessoas e as coisas que fazem parte da nossa vida — quanto mais elas nos intrigam, mais nos interessam.”

Filho de um minhoto e de uma alentejana, Renato Costa e Silva começou por estudar arquitectura, no Canadá, mas acabou por regressar à Terceira, ilha onde nasceu e onde passa ainda boa parte do ano. Experimentou esculpir em ferro, madeira, pedra e argamassas de cimento, fez gravura, serigrafia e litografia, mas depois voltou-se para o barro e é esse o material que hoje mais trabalha.

Começou sozinho a pegar nele, encomendou uns livros técnicos de cerâmica em Inglaterra e foi explorando. Em meados dos anos 1980, pediram-lhe que fizesse um levantamento dos barros da ilha, que o escultor depois analisava nos laboratórios da Universidade dos Açores: “Demorei algum tempo a perceber que eram barros vulcânicos e que, por causa disso, tinham características muito especiais.”

À Cerdeira chegou pela primeira vez para trabalhar em Setembro de 2015, quando os veados bramavam e não estava ainda construído o forno do japonês Masakazu Kusakabe, um ceramista que há quase 50 anos faz as suas cozeduras a lenha e que estará de regresso à aldeia para mais um curso em Agosto (4 a 11).

Enquanto explica como se fazem placas de barro, onde depois se podem imprimir texturas usando rendas, esteiras, folhas ou pedaços de casca de árvore, Renato vai demonstrando por que razão o barro é um material generoso e sustentável, sempre a refazer-se, a renascer. “As únicas normas são ditadas pela reacção dos materiais”, diz o escultor. “A gente pode experimentar tudo e o que não der… Vamos construindo mas, se começarmos a abusar, a peça sente-se, dá de si. Claro que há truques para fazer com que aguente um pouco mais, mas a engenharia tem limites. Uns limites que só descobrimos fazendo, errando. E toda a gente pode pegar no barro, fazer, errar e fazer outra vez.”

Há muitos criadores, diz, que fazem carreira a partir daquilo que para outros não passa de um defeito. “Gosto disto de não haver regras rígidas. É sempre possível corrigir a mão da próxima vez.” Uma forma de aprender, seja a moldar, a secar, a cozer ou a decorar, é repetir os processos, garante o formador, que começou a trabalhar mais intensamente em escultura há quase 20 anos e que regressa à aldeia para um novo curso com Kerstin já em Julho (7 a 15).

A Cerdeira é uma das protagonistas do Craft+Design+Identidade, projecto da Agência para o Desenvolvimento Turístico das Aldeias do Xisto (Adxtur) que envolveu nos últimos anos nove escolas superiores de design (como a ESAD de Matosinhos e das Caldas da Rainha ou o Instituto Politécnico de Castelo Branco) e 22 ateliers de criação artística com base nas técnicas tradicionais espalhados pelo país.

Este projecto, que toma as 27 Aldeias do Xisto como fonte de inspiração e território de experiências várias, que é coordenado pelo designer João Nunes e que envolveu cerca de 150 pessoas, deu já origem a uma trilogia expositiva que começou em 2013 com Água Musa, continuou no ano seguinte com L4Craft e termina agora com Agricultura Lusitana 2015-18, no Museu de Arte Popular (MAP), em Lisboa, até 30 de Dezembro.

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A Cerdeira é uma das 27 aldeias da rota do xisto

Quem for ao MAP poderá ver dezenas de peças contemporâneas que nasceram da interacção de artistas, alunos e professores com o tecido natural e humano de pequenos (uns mais do que outros) aglomerados do interior centro do país, como Janeiro de Cima, Benfeita, Ferraria de São João, Fajão ou Aldeia das Dez.

“A ideia foi levar os alunos destas escolas a mergulhar no espaço e a interpretá-lo. Mas queríamos que o fizessem com tempo, mantendo esta ligação à terra e às pessoas. E uns conseguiram-no melhor do que outros, o que é natural”, diz Kerstin.

Na escola da Cerdeira, continua a escultora, também se pretende que as pessoas se envolvam com o que as rodeia, divertindo-se e aprendendo ao mesmo tempo. “A ligação à terra, aos materiais, é absolutamente fundamental para ganharmos equilíbrio. É como fazer BTT ou correr. Trabalhar o barro ou a lã enriquece a nossa vida. É altamente satisfatório fazer uma coisa com as mãos e chegar ao fim do dia e ter um objecto a mostrar-nos o que aprendemos e, ao mesmo tempo, o que ainda não sabemos.” E é altamente satisfatório fazê-lo num lugar como este.

A Fugas viajou a convite da Cerdeira Village