Viagem à Madeira (inclui vertigem)
A visão cada vez mais larga do que podem ser os Paus chega à Madeira. Com uma excelente queda para fricções e tropicalismos mancos.
Os Paus sempre funcionaram ao contrário. Para praticamente todas as bandas de filiação rock que alguma vez existiram, desde as mais ranhosas que nunca conseguiram sequer dar um passo para lá da porta da garagem, até às maiores máquinas comerciais que não vivem sem uma equipa de advogados e de agentes a mediar as relações entre os músicos, os temas ganham forma na sala de ensaios e só quando estão prontos são encaminhados para o estúdio. Mesmo nos casos das bandas robustas que ensaiam em estúdio, a gravação de um disco é coisa planeada demoradamente e não se arrisca um processo simultâneo de gravação e composição.
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Os Paus sempre funcionaram ao contrário. Para praticamente todas as bandas de filiação rock que alguma vez existiram, desde as mais ranhosas que nunca conseguiram sequer dar um passo para lá da porta da garagem, até às maiores máquinas comerciais que não vivem sem uma equipa de advogados e de agentes a mediar as relações entre os músicos, os temas ganham forma na sala de ensaios e só quando estão prontos são encaminhados para o estúdio. Mesmo nos casos das bandas robustas que ensaiam em estúdio, a gravação de um disco é coisa planeada demoradamente e não se arrisca um processo simultâneo de gravação e composição.
Com os Paus, no entanto, sempre foi assim. “Preguiça”, dizem uns, “desafio”, sugerem outros, “cérebros que em 30 segundos fazem delete a todos os ficheiros temporários” varrendo para sempre quaisquer ideias que não tenham ficado gravadas, acrescentam ainda outros. “Acho piada ao desafio e ainda hoje me surpreende não ter falhado nenhuma vez”, comenta Hélio Morais. “Porque pode acontecer: marca-se duas semanas, não sai um disco e é uma grande merda porque se gastou dinheiro com o estúdio e não acontece nada. Mas até agora temo-nos safado, o que é inacreditável.”
A vantagem evidente é que para a maioria das bandas de rock a chegada ao estúdio também traz sempre surpresas, mesmo com canções ensaiadas até ao osso. E isto porque é normal que numa sala em que há baterias, amplificadores com o volume no vermelho e vozes desesperadamente a tentar fazer-se ouvir, cada um tão concentrado no que está a fazer, muitas das ideias menos explosivas acabem tapadas por um manto de ruído e só se descubram em estúdio. E aí acontece amiúde que boas ideias, que poderiam estimular outras em tempo útil, mesmo mais audíveis continuam subaproveitadas; ou descobre-se que há notas e frequências em choque, impossíveis de fazer coabitar, e geralmente pouca margem de manobra para encontrar alternativas à altura.
No processo dos Paus, a noção do todo é permanente. E se essa minúcia transborda incólume para a música, os quatro conseguem ainda fazer com que os seus discos não soem laboratoriais, mas sim carregados de presente, de uma composição que estamos a ouvir acontecer à nossa frente, numa abordagem que, não fosse a exploração exímia da ferramenta-estúdio, quase se diria ser próxima do jazz ou da música improvisada.
Tem sido assim desde o início, com a gravação do EP É Só Uma Água e com o álbum homónimo. Mas cada disco soube evitar ser uma repetição do anterior, até porque a entrada de Fábio Jevelim obrigou a uma nova dinâmica, reforçado quando o novo recruta conseguiu livrar-se da guitarra (que tocava na altura) e a dispensou por completo para passar a assumir apenas os teclados – aconteceu pela primeira vez no anterior Mitra. E aquilo que trouxe Jevelim, com um passado no drum’n’bass na mesma altura em que os restantes Paus encharcavam os ouvidos com hardcore, foi um complemento essencial à forma como hoje escutamos o grupo.
A bateria siamesa de Hélio e Quim sempre foi um espantoso motor rítmico, quebrado, com tanto de afrobeat quanto de rock marginal (basta ouvir Blusão de ganza I para perceber como se encadeiam), e Makoto nunca deixou de derramar uma viciante mestria num baixo vulcânico que tanto dança e faz dançar com um prazer físico e mental de quem tem ancas para a cumbia e cabeça para o psicadelismo. Fábio tem não apenas um infalível apuro melódico como torna cada tema mais deliciosamente instável e trôpego, mercê de uma abordagem singular aos tempos das músicas, em que, com frequência, parece tocar contra o resto da banda. Ao criar essas fricções, na verdade, amplia os motivos de interesse no interior de cada criação do grupo, ajudando a um sentido de vertigem que muitas vezes se apodera da música.
Extraordinariamente, e apesar de inícios como o de Sebo na estrada – que parece sugerir estarmos a entrar de mansinho num filme policial dos anos 80 –, aquilo que os Paus conseguem a dobrar palavras até encaixarem em letras é uma colecção de canções arrasadoras – Madeira, L123, 970 espadas (belíssimo tropical manco), Fera cega (“o reggaetonzinho”, chama-lhe Quim Albergaria), todas diferentes, todas soberbas. A experiência de assistir a tudo isto em vídeos rodados na Madeira por Ernesto Bacalhau é muito bem-vinda, mas é sobretudo o traço cada vez mais largo do que pode ser a música do quarteto a recompensar a visita a Madeira.