VHM: “Orgíaco e solene, monumental e fútil…”
Um anedotário pesaroso, em que o sofrimento é tudo quanto há: exposto, exacerbado, erguido ao plano de condição e tema de todos os esforços desenvolvidos.
Comecemos por ousar, depois deixemos qualquer ousadia para Valter Hugo Mãe (VHM). No fim, poderemos tentar apurar se de verdadeiras ousadias se trata. A leitura de Publicação da Mortalidade, recolha dos seus poemas que o autor quis preservar, sugere a descrição de uma grande cidade. Essa cidade é Paris, e descreveu-a Mário de Sá-Carneiro: “Orgíaco e solene, monumental e fútil...” Porque todo o livro oscila entre contrários que nem se conciliam, nem mantêm uma posição firmemente antagónica — antes reforçam a sua condição de forças em desequilíbrio, numa permanente fragilidade expressiva e retórica. O arrebatamento cede demasiadas vezes lugar à pudicícia; a sensualidade perde posição para a algidez; a ousadia deixa-se vencer pelo recato. O que faz pensar que nenhuma das atitudes, realmente, prevalece. Paralelamente a essa condição, a solenidade de tom tantas vezes se vê preterida pela banalidade tímbrica, e é tão frequente que a estilização seja ultrapassada pelo desleixo estilístico, que nada do que parece um momento afirmar-se, resiste ao teste de uma leitura integral de Publicação de Mortalidade.
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Comecemos por ousar, depois deixemos qualquer ousadia para Valter Hugo Mãe (VHM). No fim, poderemos tentar apurar se de verdadeiras ousadias se trata. A leitura de Publicação da Mortalidade, recolha dos seus poemas que o autor quis preservar, sugere a descrição de uma grande cidade. Essa cidade é Paris, e descreveu-a Mário de Sá-Carneiro: “Orgíaco e solene, monumental e fútil...” Porque todo o livro oscila entre contrários que nem se conciliam, nem mantêm uma posição firmemente antagónica — antes reforçam a sua condição de forças em desequilíbrio, numa permanente fragilidade expressiva e retórica. O arrebatamento cede demasiadas vezes lugar à pudicícia; a sensualidade perde posição para a algidez; a ousadia deixa-se vencer pelo recato. O que faz pensar que nenhuma das atitudes, realmente, prevalece. Paralelamente a essa condição, a solenidade de tom tantas vezes se vê preterida pela banalidade tímbrica, e é tão frequente que a estilização seja ultrapassada pelo desleixo estilístico, que nada do que parece um momento afirmar-se, resiste ao teste de uma leitura integral de Publicação de Mortalidade.
Publicação da Mortalidade constitui uma antologia abrangente, porque esta “poesia reunida” correspondeu a um processo de escolha, exclusão, reescrita, reorganização e acrescento de inéditos. Por exemplo, os poemas publicados antes do ano 2000 terão sido alvo de afastamento, neste volume, e alterou-se mais do que uma vez a ordem dos núcleos de poemas, em relação à sequência das edições originais. No cômputo geral, é difícil asseverar se tais operações tiveram uma influência decisiva, sequer relevante, uma vez que não existe qualquer texto que justifique, problematize, ou contextualize estes poemas reunidos relativamente à sua existência editorial prévia. O que se pode determinar é a presença de certos núcleos temáticos, como a questão de Deus, que, de uma forma geral, se vai mitigando ao longo do volume, ou se desloca, invertendo o eixo orientador. Deus começa por ser um fulcro inteligível desta poesia. A primeira palavra de Publicação da Mortalidade é, precisamente, “deus” e ela ocupa mesmo o espaço explícito de mais do que um poema — “página/ coágulo branco// deus dentro/ do coágulo branco” (p.15). A orientação dos poemas para o tema de Deus pode também marcar a sua fraseologia com recorrências bíblicas: “à mesa a palavra/ é meu cordeiro” (p.21); “passarei pelo buraco da agulha/ a biblioteca” (p.23). Mas, mais frequentemente, Deus é uma presença lexical explícita — “deus ajusta a santidade/ à minha fé” (p.27). Essa prevalência vai-se, em parte, perdendo ao longo de Publicação da Mortalidade, até que, num giro conceptual e poético, é como se a transcendência se tornasse imanência: com resultados menos do que animadores — “serei excelso como/ lâmina de céu ou pedaço/ de deus ensimesmado escasso/ esparso avulso” (p.128); “sei que um dia/ deus virá e entrará/ como se/ me entrasse pelo cu adentro” (p.133). Não sendo esta uma análise de cariz teológico, tão-pouco havendo aqui qualquer lugar a uma censura de carácter moral, o tipo de imagética empregada sugere uma das constantes ao longo de Publicação da Mortalidade: uma profunda inconsequência de processos e conseguimentos.
A violência das imagens, nos poemas desta reunião, é semelhante a um acto de violência gratuita. Frívola, derramada sem controlo, nem investimento inteligível ou imaginável. O catastrofismo imagético, proveniente de algo como um hiperexpressionismo, surge em consonância com essa gratuitidade — “parirei todos os filhos/ como feixes de luz saberei/ saciá-los de almas farei/ o ruído da noite/ para que imperem num sopro/ até que venhas/ ateado sobre nós” (p.117). O uso de uma terminologia pertencente ao âmbito biológico — “engravido a partir dos filhos/ para azedar o sangue/ agonizo na noite/ que percorro por gangrena/ num corpo atingido” (p.118) — foi já encetado por Álvaro de Campos, no poema Opiário — “E, por mais que procure até que adoeça,/ Já não encontro a mola pra adaptar-me.// Em paradoxo e incompetência astral/ Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,/ Onda onde o pundonor é uma descida/ E os próprios gozos gânglios do meu mal.” Mas neste poema a intromissão da nomenclatura científica é um sofisticado instrumento de boicote, através do qual Pessoa desconstruía e minava a veracidade da encenação heteronímica do Campos decadentista — a exactidão da ciência, um poderoso contraste com o “ilogismo” do decadentismo. Em VHM, pelo contrário, trata-se de um mecanismo de choque (e, teme-se, de choque pelo choque) — “elas sentam-se pernas abertas/ sobre crianças para saciá-las também incendiárias/ emergindo nos corpos/ como fungos// anseiam expostas/ contemplando o miasma/ anuncia a tua migração” (p.119) Alguma da imagética de VHM parece uma tentativa de adivinhar formas na aparência de nuvens: informe, infantil, sem consequências de maior — “como me ocuparei/ longamente com a/ extracção da humidade/ à sede encimado pela/ eclosão dos pássaros oblíquos/ minha boca dentro” (p.129) O poema parece exigir a pergunta: porquê “oblíquos”? Porquê, de todo?
Ao longo destes poemas, não é tanto o que o autor faz, mas o que ele consegue com aquilo que faz. Em Requiem, de Jorge Gomes Miranda (Assírio & Alvim, 2005) — cujo título torna fútil explicitar quanto todo o livro parte de uma circunstância dolorosamente biográfica —, o poeta transcendia o que era circunstancialismo. Ao substituir a constatação magoada da perda por uma expressividade tão concentrada, uma sobriedade atingida de forma tão digna, o lastro daqueles poemas passava a ser humano e não já estritamente pessoal. Miranda é clássico e, nessa reinterpretação do legado canónico, profundamente moderno. Em VHM, há apenas uma aparência de modernidade, que oculta um substrato profundamente conservador, que desleixa a forma, relaxando a expressão até ao plebeísmo, permitindo que a confissão, a inconfidência, irrompa dos seus versos de forma destravada e pouco motivante do ponto de vista especificamente literário — “os bichos já devem ter/ comido o corpo do meu pai/ a casa expirou pulmões cheios/ seu odor todos vieram/ ver inclinaram as cabeças e cacarejaram” (p.44); “fica comigo pai/ surtidos pelos lugares/ enquanto o céu senta/ o cu nas nossas cabeças” (p.182).
O excesso enquanto apelo inadiável da arte remonta, para não ir mais longe, a William Blake. E foi um caminho percorrido por grandes poetas portugueses, como Luís Miguel Nava — para quem há dois envios (uma dedicatória e um título), nestes poemas de VHM —; no entanto, o excesso, quando se diz a si mesmo, quando afirma e reafirma a sua condição, torna-se um pleonasmo, uma estrutura pesada. O excesso é, nesse caso, um peso que o poema deve arrastar, em vez de ser uma condição inescapável, nuclear a determinada espécie de escrita, por hipótese — “a velha inclinou-se sobre a minha cabeça/ aflita e disse coisa de leite/ floresce no centeio e deita o corpo/ ao meio da terra coisa de sangue/ levanta o corpo e anda coisa de pó/ és a morte do mundo dá-me vida/ ou estarás sempre só” (p.50). Aqui, o caminho do excesso não conduz, como em Blake, ao palácio da sabedoria, mas à incipiência. Quando muito, o verdadeiro excesso estará direcionado para a sobredosagem de sugestões autobiográficas. Estas traduzem-se na forte implantação de sinais que remetem para épocas passadas da vida (re)conhecida do autor. Localidades como as Caxinas, ou Paços de Ferreira, fazem parte de uma espécie de espaço público associado ao autor. Essa topografia auto-referencial, não sendo, em si mesma, um instrumento de análise especialmente apto a aferir a “eficácia” de um poema, fornece-lhe algo como uma demasia informativa, uma sobrecarga quase sempre de efeitos nefastos para o texto. Porque os espaços mapeados pela poesia, por esta poesia, em particular, constituem o lugar irremediável da confissão, e não de qualquer confronto energético, ou interpelante. Pelo contrário, tudo se fica pelo apontamento sem relevo suficiente, ou pela contestação, o lamento, a reacção desaustinada, de desajuste em desajuste: no tom, no modo, no alcance — “aprendíamos que os pretos eram/ buraquinhos na luz” (p.51); “pensávamos que se partíssemos o osso da pila/ morreríamos num instante sem mais crescer/ sem casar” (p.66). O uso do registo coloquial podia insuflar vitalidade no poema, dotá-lo de uma capacidade conversacional, uma discursividade que o deixasse habitado pela espessura de presenças; mas, em vez disso, provoca um desconforto, não em face do banal, mas perante a fragilidade da expressão e dos edifícios que ela é capaz de levantar. A poesia, que devia (ou podia) ser exaltante, superadora do que é limitativo e mesquinhamente pessoal, apelando a uma hipótese de universalidade, apenas repete estereótipos, estruturas refeitas ad aeternum, fraseologias nunca empolgantes, ditos mil vezes pronunciados — “corro atrás das abelhas mas dá-me/ a dor de burro e dá-me a dor de corno” (p.65).
O estado de hiperconfissão, modalidade dominante nesta poesia, revela-se através de determinadas incidências da gramática, como os diminutivos. Na nossa tradição poética, António Nobre usou-os abundantemente — “Mas foi a uma festa, vestido de anjinho,/ Que fado cruel!/ E a António calhou-lhe levar, coitadinho!/ A Esponja do Fel…”; “Que triste velhinha que vai a passar”. De uma forma menos frequente, e muito distinta, o mesmo fez Camilo Pessanha — “Murmuras baixinho/ não sei que tristezas”; “Coração, quietinho… quietinho... / Porque te insurges e blasfemas?/ Pschiu… Não batas… Devagarinho…” Contudo, ao empregar o diminutivo, Nobre fazia-o no meio de uma renovação global dos usos da língua portuguesa em poesia (não disse Pessoa que “De António Nobre partem todas as palavras com sentido lusitano que de então para cá têm sido pronunciadas.”?), emprestando-lhe um coloquialismo vibrante de elasticidade e de um genuíno absolutamente consciente. Pessanha, em toda a sua poesia, operou uma das revoluções mais profundas e proveitosas de toda a poesia moderna. E até um poeta que nos é cronologicamente mais próximo, Pedro Homem de Mello, aproveitou essa técnica — “Aos vinte anos, cismador,/ Esqueceu que havia as Sortes./ Magrinho, falho de cor...”; “Teu copo de acre vinho novo/ De que me causa náusea o cheiro!/ Eu seja o último ceguinho!” Em VHM, não existindo isso a que Joaquim Manuel Magalhães chamou, falando precisamente de Homem de Mello, “avanços qualitativos e alargamentos significativos no campo do sentido, do exprimido, do confessado” (Os Dois Crepúsculos, A Regra do Jogo, 1981), aquele instrumento gramatical (o diminutivo, aqui tomado como um exemplo entre outros possíveis) está unicamente ao serviço da manipulação sentimental, do confessionalismo mais delido — “tenho uns caixõezinhos no coração que me/ nasceram quando partiste se regados com/ cuidado brotam como flores negras pelo/ interior das veias que assombram o sangue” (p.60). Admitindo que a sequência final da estrofe citada contém uma formulação interessante, que podia ter dado a volta que o poema não ensaiou — “veias que assombram o sangue” —, os versos seguintes limitam-se a ecoar a mesma formulação débil e ingénua — “tenho uns caixõezinhos no coração que se/ abrem a toda a hora quando me deito ouço-os/ embatendo de encontro ao peito talvez com vontade/ de ir embora talvez só por ser o amor tão estreito” (id.). O diminutivo, que recorre noutros pontos, nem mesmo parece, satisfatoriamente, usado para fins irónicos, derrisórios ou de amotinação de sentidos. Em todo o caso, é provável que tenha expirado o prazo para usar diminutivos em poesia — “estávamos a grelhar o anjinho cupido/ e o anjinho cupido é um/ frango encolhido sem muita diferença/ resolvemos comer o amor porque a fome/ era tanta e o amor um desperdício” (p.67); “penteou uma a uma pacientemente as suas bonecas/ terá um domingo especial agora que lhes comprou/ um sofá vermelho pequeno à medida dos seus corpinhos perfeitos” (p.85) Por vezes, há aqui trechos que sobrevivem, ganham força, erguem-se acima da sentimentalidade ou do queixume — “os velhos morrem à/ tardinha espevitados pelo sol/ vejo-lhes as viúvas como travessões largos nos passeios” (p.167). Infelizmente, porém, são escassos, e não subsistem muitos versos que lhes deem continuidade, ou que irrompam com sinal contrário, mas forte, energético, empolgante. Os “travessões largos”, que talvez pudessem ter salvado (ou remediado) o poema, são lamentáveis casos isolados num revolutear de imagens desgovernadas, sem rei nem roque. Demasiadas vezes, esta poesia é uma mera questão de sintaxe. Mas a questão é apenas essa — “quem deixou sobre o coração/ um feixe de luz/ cega nunca” (p.56); “quero que os nossos corações se ponham de festa/ quero que exista senão alegria” (p.86); “tarda nada chega a primavera” (p.91); “tenho amigos como/ bocas como já deus/ me mordem assim tivesse/ vindo enxertar o meu/ corpo” (p.183). A modificação sintáctica, que pode ser um poderoso veio de construção, um mecanismo de força e idiossincrasia, limita-se, nestes poemas, a uma torção minúscula, a um tique, um vício.
Esta poesia está demasiado perto do kitsch para seu bem — “o que vejo é o poema no fim do arco-íris” (p.176) Quando o poema acumula lugares-comuns sem tentar desmontá-los, nem perverter a sua platitude, ou usá-los para lá do seu monolitismo estático e infrutífero, o cliché apenas alastra, multiplica-se, sem que nenhum benefício provenha de utilizar formas e formulações cristalizadas por um uso continuado, inconsciente e acrítico — “quantas vezes te inventei ao pé das águas do lago/ e imaginei que me empurravas ladeira/ abaixo para enfim/ morrer de amor// sozinho lentamente/ como só lentamente se deve morrer de amor” (p.106). Um poema como o que se acaba de citar na íntegra, limitando o seu âmbito desta forma, afasta-se irremediavelmente, por exemplo, da exacta fulgurância do haicai, ao mesmo tempo que é, em definitivo, incapaz de superar a exiguidade da sua extensão como texto com outra ordem de sentidos e com outro aproveitamento das suas próprias constrições de espaço.
Muitos poemas de Publicação da Mortalidade se quedam num anedotário pesaroso, em que o sofrimento, mais do que motor de arranque, é tudo quanto há: exposto, exacerbado, erguido ao plano de condição e tema de todos os esforços desenvolvidos; não há outro nível, qualquer mediação, ou possibilidade de extrapolar para fora dos limites estreitos de um acontecimento circunscrito — “a mulher não suportava o filho/ bateu-lhe com a vassoura muito forte na anca esquerda/ e com a própria mão na cara e nos olhos/ bateu-lhe com os pés saltando em cima dele/ interessada em perfurar-lhe a barriga/ exausta pô-lo numa caixa e arrumou-o na garagem assim esteve uns anos” (p.97). Tudo se queda num remoer magoado e dramático, mas, em última análise, estéril e acabrunhante. Porque estes poemas não ousam, realmente: aproximam-se de situações extremas, mas sempre como se as vissem de fora. Ou demasiadamente por dentro de tudo, sem distância, nem medição de forças. Como comentadores indignados, mas sem um furor que transformasse a constatação em revolta, que vivesse cabalmente o excesso que parece apenas rondar, ou enunciar. No fazer destes poemas, o circunstancial irrompe por entre o hierático, o trivial suspende a solenidade, mas todas as energias que se encontram em contradição parecem anular-se mutuamente — “gritamos em erupção/ persuadidas pelo ventre que/ nos imagina os filhos e/ recebemos o silêncio pênsil dessa/ angústia com o corpo muito/ só e em redor da casa/ o chão da cozinha ainda/ húmido as portas abertas por/ onde a aragem da tarde/ cata a nossa voz e empurra/ as vizinhas” (p.149). A tensão que este desnível poderia introduzir nos poemas talvez gerasse efeitos produtivos, mas a verdade é que se limita a ser inconsequente. Publicação da Mortalidade ousa pouco. Quando esta poesia é ousada, é-o apenas no sentido em que se expõe, em que publica a sua mortalidade, a sua incapacidade de sobreviver para lá de um ciclo de vida estrito e estéril.