“Gosto de pensar no movimento Me Too como o início de uma revolução”

Uma amiga escreveu-lhe para que lhe desse conselhos sobre como educar para o feminismo a filha recém-nascida. A nigeriana hesitou, mas endereçou-lhe 15 sugestões. Querida Ijeawele é um manifesto que ecoa em pleno movimento Me Too, com a escritora a dizer que não quer ser porta-voz de nada para ter a liberdade de poder ter opiniões fora da caixa.

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Chimamanda Ngozi Adiche, nigeriana, 40 anos, um dos rostos mais celebrados do feminismo Rui Gaudêncio

“Estou mais velha e mais sensata”, diz Chimamanda Ngozi Adiche em resposta à pergunta “o que mudou desde Todos Devemos Ser Feministas?, título da TED Talk que tornou a nigeriana de 40 anos num dos rostos mais celebrados do feminismo. Foi em 2012. Essa conversa deu origem a um ensaio publicado pouco depois que se pode considerar o precursor de Querida Ijeawele — Como Educar para o Feminismo, carta a uma amiga de infância que lhe pediu conselhos sobre como educar para o feminismo a filha recém-nascida. “O meu primeiro impulso foi dizer que não sabia”, escreve Chimamanda na introdução deste volume breve, para depois justificar: “Mas eu tinha falado em público sobre o feminismo e talvez isso a tivesse feito sentir que era especialista no assunto.” Pensou e elaborou uma cartilha em que usou a sensatez de que falava no início. É uma palavra que repetirá ao longo da conversa com o Ípsilon, a partir de New Jersey, Estados Unidos.

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“Estou mais velha e mais sensata”, diz Chimamanda Ngozi Adiche em resposta à pergunta “o que mudou desde Todos Devemos Ser Feministas?, título da TED Talk que tornou a nigeriana de 40 anos num dos rostos mais celebrados do feminismo. Foi em 2012. Essa conversa deu origem a um ensaio publicado pouco depois que se pode considerar o precursor de Querida Ijeawele — Como Educar para o Feminismo, carta a uma amiga de infância que lhe pediu conselhos sobre como educar para o feminismo a filha recém-nascida. “O meu primeiro impulso foi dizer que não sabia”, escreve Chimamanda na introdução deste volume breve, para depois justificar: “Mas eu tinha falado em público sobre o feminismo e talvez isso a tivesse feito sentir que era especialista no assunto.” Pensou e elaborou uma cartilha em que usou a sensatez de que falava no início. É uma palavra que repetirá ao longo da conversa com o Ípsilon, a partir de New Jersey, Estados Unidos.

Numa voz grave, atende o telefone com a filha de dois anos por perto. Se não houvesse mais nada, bastaria um facto para alterar muito desde essa aparição pública em nome da igualdade de género: em 2012, Chimamanda não era mãe. Mais: não era mãe de uma rapariga. “Ser mãe não mudou nada nas minhas crenças feministas, mas fez-me senti-las mais urgentes. Gostaria de viver num mundo diferente...” Um mundo onde as mulheres, pelo facto de serem mulheres, não se sintam constrangidas a serem plenamente quem são. Eis a súmula dos 15 conselhos ou sugestões que endereçou a Ijeawele — soletra-se idjeaouéle, esclarece —, nome fictício de uma amiga real a viver na Nigéria.

Num tom entre o carinhoso e o assertivo, directa, de uma franqueza e clareza por vezes desconcertantes, emotiva ou irónica, Chimamanda começa por recomendar a Ijeawele que não se esqueça que é mais do que mãe. “Sê uma pessoa inteira”, pede, “a tua filha beneficiará com isso.” E em cada palavra de Querida Ijeawele seguimos o breviário da educação que a autora de Americanah (D. Quixote, 2013) quer para a sua filha. Diz-lhe: “Ensina a tua filha a rejeitar o desejo de agradar. O dever dela não é tornar-se alguém de quem se gosta, o seu dever é ser uma pessoa em pleno, uma pessoa que é honesta e tem consciência da humanidade igual das outras pessoas.” Ou: “Não penses que criá-la como feminista significa forçá-la a rejeitar a feminilidade. O feminismo e a feminilidade não se excluem mutuamente.”  

Quem leu Todos Devemos Ser Feministas [D. Quixote, 2015] sente agora uma maior contenção, mas nem por isso se depara com uma Chimamanda menos afirmativa. A escritora explica, recuando a 2012. “Escrevi aquilo sabendo que estava a ter uma audiência [um público numa sala e a transmissão online]. Naquele momento achei que ninguém se interessava realmente pelo assunto. Estava a falar sobre algo que não era muito popular, que era controverso, que fazia com que as pessoas reagissem com hostilidade. Por tudo isso a minha mentalidade era diferente.”

Publicado originalmente em 2017, Querida Ijeawele ganhou protagonismo com o eclodir do movimento Me Too. No final do ano, e a partir de Hollywood, um coro feminino cada vez mais alargado denunciava abusos. Nada, no entanto, que fizesse Chimamanda Ngozi Adichie mudar uma vírgula ao seu texto. “É verdade, não teria mudado nada”, esclarece, revelando a sua solidariedade para com essas mulheres. “Sinto-me muito esperançosa. Gosto de pensar no movimento Me Too como o início de uma revolução. Muitas vezes as revoluções começam e não chegam a terminar. Espero que seja o princípio de alguma coisa. Claro que reconheço que como todas as revoluções as pessoas têm posições extremadas; não há uma revolução perfeita, mas em geral acho que é uma coisa maravilhosa, as mulheres podem finalmente falar e as pessoas ouvem e isso tem de trazer consequências.”

Palavras que eram escutadas com suspeição são agora usadas abertamente. Não é apenas a palavra “assédio”. É um novo discurso a ser construído, incipiente ainda, mas talvez o início dessa outra coisa chamada “revolução”. No ponto 6 deste livro, a escritora sugere justamente que se questione a linguagem. “Ensina-a a questionar a linguagem. A língua é o repositório dos nossos preconceitos, das nossas crenças, das nossas pressuposições”, lê-se em Querida Ijeawele. Nesta conversa, Chimamanda justifica o conselho: “Acho que a linguagem muda a realidade e, por causa disso, as coisas que tomamos por garantidas. Mas é porque a linguagem pode normalizar que tendemos a não questionar. Há palavras que gostaria de ver retiradas do dicionário inglês. Por exemplo, a palavra emasculate [emascular, enfraquecer alguém]. É uma das palavras mais ridículas; é uma palavra tão deslocada da sua função; o fundamento dessa palavra é a superioridade masculina, porque sem a ideia de superioridade masculina essa palavra não faz sentido.”

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Rui Gaudêncio

Não espanta que uma das questões centrais de Querida Ijeawele seja a linguagem. “Sirvo-me da minha experiência. Quando somos crianças, absorvemos muitas coisas que nos são ditas e não pensamos em questioná-las, porque elas moldam a nossa realidade. Dizem-nos, por exemplo, que, se não somos muito boas nas tarefas domésticas, não nos estamos a comportar como meninas; a dada altura pensamos que isso, ser bom nas tarefas domésticas, é o que define uma menina.”

Sim, questione-se a linguagem, insiste, como ela começou a questionar, porque deu por si a questionar tudo. “E questiono-me a mim mesma. Penso em ser feminista como o processo da aprendizagem de uma vida. Há tanta coisa que interiorizamos, enquanto crescemos no mundo, e o mundo é misógino. Vivemos num mundo que valoriza os homens e o masculino mais do que valoriza as mulheres. As coisas que absorvemos por viver num mundo misógino fazem-me estar sempre a questionar-me.”

Questionar e adequar

E deparar-se com o próprio preconceito. Ela, que questiona, já escorregou na linguagem. Conta um episódio para sublinhar “como a língua pode ser um subgénero”. “Sou bilingue, falo inglês e igbo [língua da etnia africana com o mesmo nome a que pertence Chimamanda]. O igbo não tem género da mesma forma que o inglês. O pronome é o mesmo para homens ou mulheres. Muito recentemente falava com uma amiga que também é bilingue como eu. Ela tinha ido ao médico. Contava-me isso em igbo, e o pronome era neutro. Depois perguntei-lhe em inglês: ‘O que é que ele disse?’ Ela riu-se e disse-me que o médico era uma mulher. Lembro de ter sentido uma vergonha imensa. ‘Ora aqui estou eu, a pessoa que ensina toda a gente!’, pensei. Foi a minha forma de perceber como é que estas coisas estão profundamente enraizadas e vêm da socialização e do modo como usamos a linguagem e como a masculinidade é vista como o standard.” 

É outra revolução. Como conciliar tradição e modernidade? Como pôr em causa comportamentos que integram o que se pode chamar “a textura da sociedade”? “É uma questão dúplice. Sou uma mulher igbo muito orgulhosa. Amo a minha cultura, mas ao mesmo tempo há coisas de que não gosto e falo contra elas. “Por exemplo? “Acho que as mulheres deveriam ser capazes de escolher; não têm de aceitar tudo o que lhes é apresentado como tradição. Acho muito possível insistir em total igualdade e continuar a gostar, por exemplo, de ser mãe. Eu gosto, e isso é tão importante para mim! Mas continua a ser muito importante fazer o meu trabalho, porque me preenche. Não quero sentir que tenho de alguma forma de justificar isso. Gosto de usar o meu cérebro, gosto de pensar e quero poder fazer isso. Não quero sentir que o meu papel de mãe tradicional significa que mais nada importa tanto.” 

Como ensinar, então, uma criança a “rejeitar o desejo de agradar”, porque é isso que se espera de uma mulher, de uma menina? É a oitava sugestão de Chimamanda para a amiga. Que ensine Chizalum, a sua filha, de que “o dever dela não é tornar-se alguém de quem se gosta — o seu dever é ser uma pessoa em pleno, uma pessoa que é honesta e tem consciência da humanidade igual de outras pessoas. O feminismo é uma ideia universal e tem manifestações culturais específicas. Universal é a ideia de um homem ou uma mulher serem iguais. Não é sequer uma coisa que queira debater.” Mas para passar a mensagem é preciso adequar o discurso ao interlocutor. Uma mulher urbana não tem as mesmas prioridades que uma mulher rural. “Por exemplo, se pensar nas mulheres das zonas rurais da Nigéria, não lhes vou falar de igualdade de pagamento para trabalho igual, porque isso não faz sentido.” Os contextos serão distintos para uma mesma premissa: “As mulheres são seres humanos, os homens são seres humanos, os dois dão iguais. Temos de pensar nas pessoas como indivíduos. Não acredito que ter nascido com uma vagina dê determinadas capacidades ou fragilidades. Muito do que vemos citado como características femininas é o resultado da socialização.” 

Este é um manifesto a clamar por ajustes. Há que saber adequar discursos conforme a geografia, a sociedade ou a cultura. É outra vez a linguagem. Saber passar a mensagem para a tornar eficaz. Chimamanda Ngozie Adichie, nigeriana, conhece sabe as circunstâncias das mulheres com quem cresceu e sabe que tem de falar numa linguagem que elas entendam, ou seja, uma linguagem que fale para a realidade daquelas mulheres com necessidade diferentes das que vivem em cidades da América ou da Europa. “Antes da colonização, eram mulheres com autonomia. Os ingleses vieram e isso mudou. Com eles veio um sistema segundo o qual só os homens eram capazes de fazer coisas. Quando as mulheres falam em não ter acesso a oportunidades iguais, pensemos nas mulheres com muitos filhos... A última vez que estive na minha terra, uma mulher fez uma piada com isso. As piadas são um modo de perceber o que as pessoas pensam. Ela disse que passou dez anos a ter filhos e que se não os tivesse sabe-se lá onde estaria hoje. E riu-se muito. O que estava realmente a dizer era muita coisa; por exemplo, não ter autonomia sobre a própria vida. Ao mesmo tempo questionou o controlo de natalidade, o acesso à contracepção, que continua a ser um assunto determinante para muitas mulheres sem a possibilidade de uma educação sólida, que não vivem em zonas urbanas. E tornou muito claro que quantos mais filhos uma mulher tem — já que cuidar das crianças é da sua responsabilidade nessas zonas — mais difícil é lutar pelo que se sonhou ser. É profundamente triste pensar em todas as mulheres que continuam a viver tendo sonhos que nunca realizarão.”

O fingimento

São mulheres-mães-esposas. Perde-se um nome em troca de um parentesco que confere uma função. É outra vez a linguagem a impor a norma. Mas e quando isso salta para as manchetes e mesmo assim permanece invisível? Um nome: Mrs. Clinton. Não é só um nome. “Essas duas palavras definem-na como esposa”, afirma a escritora, que traz a ex-candidata à Casa Branca para o seu livro como exemplo do que não se quer que aconteça. É a sétima sugestão: “Nunca fales do casamento como uma forma de realização pessoal.” Chimamanda retoma agora o tema. “Sinto-me mal por ela. Por si só, é muito difícil ser uma mulher a concorrer àquele cargo. Está-se sempre a procurar equilíbrios. Há os eleitores que vão votar na mulher de alguém e não o farão a não ser que ela fale desse papel de mulher e de mãe. Ela desempenhou esse papel, porque teve de o desempenhar. Mas, imagine, ser uma mulher muito estabelecida e inteligente e aceitar que se seja chamada “mulher de alguém”... Mais: tendo como marido alguém que nunca foi apresentado como marido. Em geral, deve ser muito desrespeitoso definir-se no sentido doméstico da sua existência. Espera-se que falem da sua vida como mães e como mulheres de alguém de um modo que não se espera dos homens... que falem dos seus papéis de pais e de maridos. As mulheres são penalizadas por isso. Há quem diga que [Hillary Clinton] é fria e não gostam dela só porque não está a desempenhar o papel de esposa. Nos Estados Unidos tende a dizer-se que tal não é verdade, que não se julga ninguém assim, mas é verdade. Na Nigéria assume-se; é muito claro que se se é uma mulher e se está a concorrer a um cargo político ou à procura de um emprego, lhe perguntem se é casada, com quem; se tem filhos, quantos. Não fingem. Na América finge-se muito e na Europa também, o que torna difícil abordar o problema. Se se tiver de passar o tempo a provar que há um problema, as coisas ficam ainda mais difíceis.”

Este foi talvez o momento em que o tom calmo de toda a conversa ganhou maior ênfase. O fingimento não é palavra que encaixe no discurso de Chimamanda.  Na ficção, quando cria personagens como Ifamelu, heroína de Americanah, ou Olanna, de Meio Sol Amarelo [D. Quixote, 2017], opta por não as criar à imagem de ideais feministas. Seria desonesto e explica: “O eu que escreve ficção é diferente da pessoa em mim que escreve textos zangados sobre feminismo. Na ficção estou a ser transportada, a pensar num carácter, em estados de espírito e emoções. É importante não deixar que a minha ideologia molde demasiado a minha ficção, de outra forma sentiria que estou a mentir. Tenho de ser livre e honesta, e ser honesta significa escrever sobre o mundo como ele é e não como gostaria que fosse. Por isso tenho de escrever sobre mulheres que não são necessariamente feministas, ou que não são fortes. Há diferentes tipos de mulheres no mundo e é importante para mim representá-las na minha ficção.”

E ela, Chimamanda Ngozie Adichie, como se vê? Uma porta-voz das causas de outras mulheres? “Não. As pessoas acham que sei mais do que realmente sei sobre estas coisas. Penso em mim como escritora, é o meu amor principal, a coisa que dá significado à minha vida. Fico feliz por poder falar de assuntos que me preocupam. Mas é uma coisa sobre a qual tenho sentimentos ambivalentes: ser a face pública de uma causa é sempre limitativo. As pessoas passam a ver-nos como um símbolo e esperam que diga sempre coisas sensatas e sábias sobre questões de género, neste caso. Não quero necessariamente ser isso. Quero poder ter opiniões que não encaixem no que é esperado.”

Quanto a Ijeawele, apetece perguntar se sente que a conhecemos depois desta leitura. “Ela está muito bem, a filha está a crescer seguindo as minhas sugestões.” Há uma gargalhada muito sonora. “Disse-me que a filha não está interessada em bonecas. Acho que se uma criança se interessa por bonecas que lhe dêem bonecas, ou então está-se a alimentar uma rebelião. Mas fico muito feliz por saber que a filha dela não se interessa por bonecas. A minha filha tem dois anos, não lhe comprei nenhuma boneca. Compro-lhe brinquedos que ajudem a pensar; quero que tenha ferramentas. Espero que não se interesse por bonecas quando for mais velha, mas, se se interessar, dou-lhas.” 

Notícia actualizada: no dia 16 de Abril, às 13h, foi corrigido o título do livro que estava escrito com Y em vez de Ij