A “Primavera de Praga”, 1968
Há 50 anos a Checoslováquia era a 8.ª potência industrial do mundo. Chegaram porém os tanques, não o socialismo.
A invasão pelas tropas russas da Checoslováquia teve lugar na noite de 20 para 21 de Agosto de 1968. Às 11h da noite, entre 400 a 500 mil soldados do Pacto de Varsóvia atravessaram a fronteira.
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A invasão pelas tropas russas da Checoslováquia teve lugar na noite de 20 para 21 de Agosto de 1968. Às 11h da noite, entre 400 a 500 mil soldados do Pacto de Varsóvia atravessaram a fronteira.
Uma série de reformas tinham mudado a face da Checoslováquia a partir de Janeiro de 1968, a “Primavera de Praga”: liberalização da imprensa, rádio e TV, e a partir de Abril um plano económico (O Programa de Acção) que diminuía o controlo centralizado do Estado sobre a economia, atribuindo mais poder aos comités de fábricas. Este era um dos pontos nevrálgicos das reivindicações da oposição popular, trabalhadores e intelectuais porque um plano altamente centralizado (e não um plano democrático) malogrou a prestação de serviços essenciais, não tinha em conta as necessidades da população. Foram também nestes meses renovados os estatutos do partido, permitindo o debate interno, sufocado desde o final dos anos 40. Anunciava-se um novo congresso para 9 de Setembro de 1968 que, com a pressão social externa ao partido, ia reforçar as posições reformadoras de Alexander Dubcek, eleito em Janeiro de 1968.
Ao contrário dos outros países da Europa de Leste, libertados do nazismo pelo Exército Vermelho, a Checoslováquia tinha uma longa tradição comunista, organizada num partido legal, durante o regime de democracia liberal, vigente no país entre 1918 e 1938.
O Partido Comunista Checoslovaco tinha desenvolvido alguma independência do Comintern até 1929. Nessa altura, um congresso de bolchevização — frequentemente as purgas nos partidos estalinistas eram acompanhadas pelo uso simbólico da palavra “bolchevismo” (projecto político morto no fim da década de 20) — impôs a linha estalinista de “socialismo num só país”, e a defesa da URSS como “um centro monolítico do movimento revolucionário internacional”. Começam então uma série de conflitos que levam à perda paulatina de membros, 70% terão então abandonado o Partido. Com a mudança, em 1935-1936, para a linha da “frente-popular” antifascista, o Partido volta a crescer de forma significativa. Porém, o núcleo duro das suas lideranças tinha sido formado na fidelidade à URSS, educado aliás na própria URSS. Os comunistas mais ligados ao país — do interior — eram vistos por estas lideranças “exteriores” com desconfiança.
A URSS vai pressionar o Partido no interior para que em 1945 a Checoslováquia seja libertada pelas tropas de Exército Vermelho, enquanto as lideranças no interior apostavam num levantamento liderado pela resistência. De facto, os comités de resistência clandestinos organizaram, em algumas fábricas, o levantamento popular de 5 de Maio de 1945, contra a direcção exterior do Partido. E o mesmo aconteceu com o levantamento eslovaco, em Agosto de 1944, que foi realizado à revelia das chefias checas e eslovacas pró-soviéticas. Soma-se a isto a divisão de Yalta e Potsdam, o “tratado de Tordesilhas” que dividia o mundo em áreas de influência dos EUA e da URSS..
Na sequência da libertação, entre 1945 e 1949, o país vive um período de abertura, as letras e artes são o sector mais dinâmico — não por acaso a literatura ou o cinema checo estarão entre as principais vanguardas artísticas europeias até ao final dos anos 60. Os artistas e intelectuais vão opor-se à linha oficial do partido de uma “arte proletária”. Este foi apenas um dos debates que levaram a uma intervenção dramática de purgas no partido, entre 1949 e 1954, que impuseram uma férrea ditadura, até 1968.
A Checoslováquia foi o país onde as purgas foram mais violentas. Porquê? Segundo Jirí Pelojkán, director da TV Checoslovaca em 1968, e oposicionista de esquerda, porque era aí que o socialismo era mais forte. E, portanto, uma ameaça à burocracia incrustada no poder: “Foi na Checoslováquia que houve condições mais favoráveis para o socialismo em toda a Europa Oriental; por causa da industrialização do país, porque tinha uma ampla e formada classe trabalhadora [...]. Deste ponto de vista, parece estranho que a maior purga em qualquer partido comunista seja a que aconteceu na Checoslováquia em 1949-54. Eu acho que foi precisamente porque a Checoslováquia teve as condições mais favoráveis, parecia ser a mais independente na procura do seu próprio caminho de desenvolvimento. Isso não se adequava à liderança soviética. Eles queriam monopolizar a Europa Oriental e impor o modelo soviético. Por esta razão, foram obrigados a atacar mais forte o Partido Comunista da Checoslováquia. Partidos como o polaco, húngaro ou búlgaro eram apenas pequenos grupos de vanguarda que haviam estado subterrâneos, na clandestinidade, por 20 a 30 anos. Não era tão difícil para eles aceitar a hegemonia soviética. [...] Naturalmente, parecia paradoxal e chocante para nós que o número de vítimas da repressão fosse o mais alto na Checoslováquia, apesar de todas as nossas tradições democráticas. Nada em escala comparável ocorreu em outros lugares da Europa do Leste.”
Durante 1967, o país sofre os efeitos da crise económica de 1963. Crescem as manifestações de estudantes e de intelectuais contra a falta de liberdade e a exigirem reformas. Este era o “Estado dos trabalhadores”, mas os mesmos nem conheciam as contas das fábricas — das quais, em teoria, eram donos colectivos. Há uma forte questão nacional que adensa a crise, a questão eslovaca.
Na sequência da pressão popular, Dubcek é, em Janeiro de 1968, eleito. Era um reformista, mas não um dissidente. Não era um homem anti-soviético, e tentou gerir a pressão da sua base social para a mudança sem melindrar a URSS. Um equilíbrio que se demonstrou impossível. Não queria apoiar-se nos “comités de iniciativa”, que seriam a base para estabelecer conselhos de trabalhadores, os únicos que podiam ter resistido aos tanques soviéticos.
Assim, quando a URSS invadiu o país, Dubcek e os homens à sua volta não propuseram nenhum tipo de resistência, mesmo civil, como uma greve geral, limitando-se a ficar, e não o escondendo publicamente, paralisados e desalentados com a invasão. A qual era realizada, segundo os russos, para “evitar a liberalização económica” do país. A “Primavera de Praga” era vista publicamente pela URSS como uma adesão do país ao capitalismo. Mas a maioria das forças sociais no país estavam de facto a lutar pela democratização e não pela liberalização económica, embora um sector fosse favorável a uma mudança para um Estado capitalista. A realidade era que o exemplo checo ia ter repercussões imediatas na Polónia e na Ucrânia. Em tempos de crise do Pacto quando a URSS já não controlava a Jugoslávia e a Roménia.
Os privilégios da casta dirigente da URSS e seus satélites estavam potencialmente postos em causa se avançasse para um Estado socialista com base em conselhos operários, o que era mais realista em 1968 do que nunca porque a guerra tinha dado um impulso à industrialização pesada que colocava mais perto, e não mais longe, a abundância, como condição e expressão de uma sociedade socialista. A Checoslováquia era a 8.ª potência industrial do mundo. Chegaram porém os tanques, não o socialismo.
Em Novembro de 1968, um estudante checo declara que “todo o país tem-se sentido doente”. Os líderes têm feito tudo o que os russos querem. E não é claro — diz ele — se o fazem obrigados ou por vontade própria. Milan Kundera, na Insustentável Leveza do Ser, romance premiado que se passa durante a Primavera de Praga, expressa a profunda desilusão com o rumo da vida política na Checoslováquia: “Se digo totalitário, é porque tudo quanto possa fazer perigar o kitsh é banido da vida [...]. O gulag seria [...] a fossa séptica para onde o kitsh despeja a porcaria.”
As tropas russas chegaram e ocuparam, com escassa resistência. Morrem 50 a 100 pessoas, nada de comparável, por exemplo, com a resistência húngara de 1956, em que morreram 20.000. Mas nada foi como antes no mundo comunista. O Maio de 68 e a Primavera de Praga impulsionaram ainda mais a ruptura social-democrata dos PCs fiéis à URSS. Se mostraram a sua força na contenção dos movimentos sociais, em Paris, Berlim ou Praga, não evitaram, com essa contenção, o seu constante declínio desde então.